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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.9 Vila Nova de Gaia dez. 2019  Epub 18-Dez-2019

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00009.31 

Artigos Originais

A COORDENAÇÃO REGULATÓRIA SOBRE PROCEDIMENTOS ESTÉTICOS AUTORIZADOS PELOS CONSELHOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE: O PAPEL DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

REGULATORY COORDINATION ON AESTHETIC PROCEDURES AUTHORIZED BY PROFESSIONAL HEALTH COUNCILS: THE ROLE OF THE BRAZILIAN JUDICIARY

Mayrinkellison Peres Wanderley1
http://orcid.org/0000-0003-2905-0872

Raphael Corrêa2
http://orcid.org/0000-0001-7067-3073


Resumo

Os procedimentos estéticos são uma realidade na sociedade hodierna. Neste domínio, a medicina e as ciências médicas rapidamente absorveram este mercado e os conselhos profissionais não tardaram em editar Resoluções para regulamentar tais atividades, sempre prezando pela legitimidade de cada filiado a exercer a dermatologia estética ou cosmiatria. Os conflitos decorrentes da falta de coordenação regulatória chegaram ao Judiciário, que tem sido o órgão eleito pelos conselhos para resolver as controvérsias decorrentes da superposição de atribuições editadas através de suas normas e regulamentos. As decisões, porém, não têm sido suficientes ou não têm atendido à imperiosa necessidade de coordenação regulatória desse setor da economia e da atividade profissional. O presente artigo pretende apresentar as bases normativas geradas pelos conselhos profissionais para autorizar seus associados a exercerem a dermatologia estética e como o Judiciário vem julgando tais demandas. Conclui-se pela necessidade de se forjar um modelo de coordenação regulatória que promova uma interação entre os conselhos como medida para ponderar o atual sistema de autorregulação dos conselhos profissionais no Brasil.

Palavras-chave: Conselhos profissionais; Judiciário; Cosmiatria; Regulação; Coordenação regulatória

Abstract

Aesthetic procedures are a reality in today's society. In this field, medicine and the health sciences quickly absorbed this market, and the professional councils were quick to publish Resolutions to regulate such activity, always emphasizing the legitimacy of their member to practice aesthetic dermatology or cosmiatry. The conflicts arising from the lack of regulatory coordination and have reached the Judiciary, which has been the institution elected by the councils to resolve the controversies arising from the superposition of attributions edited through its rules and regulations. Its decisions, however, have not been sufficient or have not met the imperative need for regulatory coordination of this sector of the economy and professional activity. The present article intends to present the normative bases generated by the professional councils to authorize their associates to exercise the aesthetic dermatology and how the Judiciary has judged such demands. It concludes by the need to forge a model of regulatory coordination that promotes an interaction between the councils as a measure to consider the current system of self-regulation of professional councils in Brazil.

Keywords: Professionals councils; Regulatory coordination; Judiciary; Cosmiatry; Regulation

INTRODUÇÃO

As atividades na área de saúde têm estado em evidência no mundo jurídico, especialmente aquelas que lidam diretamente com o corpo humano. A mídia tem contribuído para alertar sobre a relevância e a responsabilidade dos procedimentos médicos e estéticos, que visam proporcionar melhoria na qualidade de vida, minorar o sofrimento decorrente de doenças ou possibilitar um bem-estar aos indivíduos3.

Hodiernamente, o escopo de atuação desses profissionais se alterou. Além da atividade curativa, clássica da Medicina e suas ciências acessórias, o médico passou a exercer seu ofício com fins extra-hospitais, isto é, não apenas cura trata dos doentes, mas também possibilita transformações no seu corpo, visando ao seu bem-estar, qualidade de vida ou elevação da autoestima dos seus pacientes. Houve uma migração para a busca pela descoberta do cuidado do paciente em sua integralidade, valorizando aspectos existenciais até pouco tempo negligenciados ou ignorados, como a medicina integrativa e práticas interdisciplinares.

Nesse contexto, tomam relevo as atividades estéticas, voltadas para o cuidado com o corpo e a qualidade de vida do paciente, agora também chamado de cliente ou paciente estético4. O interesse precípuo não é mais necessariamente a dor, a enfermidade, o mal-estar, mas a imagem, a autoestima, a juventude, a sensação de uma beleza cada vez mais buscada pelo avanço tecnológico possibilitado pela indústria farmacêutica. A cosmética e a dermatologia têm evoluído de modo extraordinário nos últimos anos, somando recursos e esforços para que os tratamentos de pele tenham resultados cada vez mais promissores5.

Neste domínio, a medicina e as ciências médicas rapidamente se adaptaram e inúmeras clínicas e consultórios foram abertos, cursos foram criados e os conselhos profissionais não tardaram em editarem resoluções e pareceres para regulamentar a atividade, sempre prezando pela legitimidade de cada filiado a exercer a dermatologia estética.

Os conflitos daí resultantes surgiram em forma de debates judiciais e manifestos, principalmente da classe médica. Os riscos à saúde pública foi o principal argumento, uma vez que, segundo os médicos, esses procedimentos seriam atividade privativa da medicina. A reação foi imediata, com debates acalorados e novos regulamentos. Tem-se, portanto, um problema resultante da autorregulação própria dos conselhos profissionais6 e a necessidade premente de coordenação regulatória.

O presente trabalho se propõe a apresentar as principais discussões acerca da legalidade da atuação dos profissionais da área da saúde nos procedimentos aqui considerados como dermatologia estética, ou cosmiatria, a partir da Lei do Ato Médico e das resoluções dos conselhos profissionais de classe. A discussão será acentuada com as intervenções que o Poder Judiciário tem sido chamado a responder à (falta de) coordenação regulatória quando normas infralegais entram em conflito sobre o exercício das diversas profissões da saúde.

Não há muita bibliografia sobre o tema, sendo a grande parte dos trabalhos limitada a discutir a questão da responsabilidade civil diante de um erro médico ou dos profissionais da saúde em geral. O propósito aqui apresentado busca contribuir para preencher essa lacuna acadêmica, sem esgotar, obviamente, toda a temática que exigiria pesquisa mais acurada, não cabendo na modalidade de um artigo.

O referencial teórico baseou-se na literatura médica, especialmente aquelas ligadas à dermatologia e a pesquisa na jurisprudência dos tribunais federais que têm sido provocados para decidir sobre os conflitos regulatórios. Não houve tempo ou utilização de métodos quantitativos, mas primordialmente a uma análise descritiva, com revisão bibliográfica.

1 A ESTÉTICA E A SAÚDE

O cuidado com a estética, sobretudo com a pele, não é um fenômeno novo: “Desde os primórdios da humanidade, em todas as civilizações, se buscam formas de melhorar a aparência física. A juventude sempre ocupou um lugar de destaque na mente das pessoas7. O ser humano tem se preocupado com aparência e o extraordinário acervo de obras de artes espalhados pelo mundo demonstra o quanto o homem valoriza os aspectos estéticos8, seja na natureza seja no corpo humano, e o cuidado com a saúde e a beleza não estão excluídos.

As dietas, as atividades físicas, as maquiagens e a efusão de clínicas e spas especializados em cuidado com a beleza corroboram para incluir o homem como um ser vaidoso. Com efeito, “a sociedade impõe, periodicamente, valores estéticos, segundo interesses de grupos e mercadológicos, que devem ser ponderados para não se tornarem padrões obrigatoriamente aceitáveis e adequados a todas as pessoas9.

Até recentemente, não se duvidava da imprescindibilidade de um profissional habilitado - isto é, o médico - para o exercício de qualquer atividade que envolvesse manipular o corpo humano, especialmente se a atividade envolvesse introdução de fármacos ou produtos manipulados, qualquer tipo de corte ou incisão, diagnóstico e prescrição de medicamentos. No entanto, a partir dos primeiros anos do século XX, outros profissionais da saúde têm avocado para si a prerrogativa de, em pé de igualdade com os médicos, realizar procedimentos estéticos, com autorização de seus respectivos conselhos profissionais.

Atualmente, são os conselhos profissionais das diversas áreas da saúde que têm desempenhado o papel de regulamentar a abrangência e os limites do que é permitido ou vedado a cada profissional a ele vinculado. Tal liberdade de atuação - que se enquadra no conceito de autorregulação - tem trazido controvérsia sobre a interferência de uma profissão sobre a outra e tais conflitos têm sido levados ao Judiciário como órgão, a priori, responsável por uma tentativa de coordenação regulatória imprópria, uma vez que pela natureza dos conselhos profissionais, não há um órgão central ou descentralizado designado para resolver conflitos que ocorram entre si, tornando-se o problema, hoje, uma questão de disputa jurídica.

2 A “DERMATOLOGIA ESTÉTICA” OU COSMIATRIA

Médicos e esteticistas, utilizando-se essa última expressão de forma ampla, tinham funções bem definidas. Estes se ocupavam de cuidar da aparência das pessoas valendo-se de técnicas não invasivas, conhecidas como maquiagem, podologia, depilação, massagens etc.; aqueles, embora tivessem ainda a precípua função de curar doenças, estariam em tese habilitados para cuidar da aparência, mas especialmente quando se referisse a procedimentos médicos, como perfurações, cirurgias e aplicação de produtos considerados de “uso exclusivo para médicos”, ou, mutatis mutandis, de cirurgiões-dentistas.

Neste mister, os médicos exerceram, por longo tempo, o monopólio no tratamento de saúde dos pacientes para fins não apenas terapêuticos, mas também estéticos, primeiramente através da cirurgia plástica, reconhecidamente como ato médico10, atravessando pelos avanços da dermatologia, ramo da Medicina que se ocupa dos estudos e tratamento da pele11, criando uma subdivisão relativamente nova que passou a se chamar de cosmiatria ou dermatologia estética12.

Para a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SDB)13,

A cosmiatria é a área da medicina que estuda e trata da beleza de forma ampla, ética e profissional. A Dermatologia Cosmiátrica usa conceito de cosmiatria para realizar procedimentos e tratamentos que tenha como finalidade a manutenção da beleza e a melhora da aparência da pele e seus anexos. É importante salientar que procedimentos cosmiátricos são por definição procedimentos médicos. É um engano acreditar que esses procedimentos são simples, fáceis de realizar e livres de riscos. Escolher um dermatologista experiente e qualificado para realizar um procedimento cosmético é sempre muito importante. (...) Esse profissional executa com habilidade e capacitação inúmeros procedimentos cosméticos, dentre os quais: aplicação de toxina botulínica, preenchimentos, laser para rejuvenescimento, peelings, tratamentos para cicatrizes de acne, depilação a laser, remoção de tatuagens (...)14.

Como visto, de acordo com o texto publicado no sítio oficial da SBD, a dermatologia se subdivide em clínica e preventiva, oncológica, cirúrgica e a cosmiátrica, sendo esta, segundo a SBD, exclusivamente uma área da medicina, que os procedimentos médicos são privativos para médicos e que seu objetivo é a manutenção da beleza e a aparência.

Nessa confluência de interesses de médicos pela área estética, surgiu no Brasil, em 1973, a Sociedade Brasileira de Medicina Estética (SBME)15, que afirma de forma clara em seu sítio oficial:

Os pontos essenciais do seu campo de ação são: o tratamento das alterações físicas, estéticas e constitucionais; os tratamentos das seqüelas inestéticas das doenças e dos traumatismos; a postergação do envelhecimento e principalmente das suas formas de exteriorização e de suas repercussões físicas e psicológicas; a reeducação perante no sentido de proporcionar ao indivíduo a possibilidade de preservar o seu patrimônio biológico, através do desenvolvimento de programas de higiene mental, física e alimentar.

Ora, em nota oficial, em solidariedade à Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, a SBE afirmou peremptoriamente “que medicina estética não é uma especialidade médica e não é reconhecida por esses órgãos, sendo exercida e divulgada de forma ilegal16.

Como se não bastasse, em 2000 foi criada a Academia Brasileira de Dermatologia (ABD), elencando em seu sítio oficial os seguintes objetivos:

promover e incentivar o estudo e a pesquisa da Dermatologia; divulgar estudos científicos; fomentar o intercâmbio entre os profissionais ligados à Dermatologia; atribuir título de Especialista em Dermatologia, de acordo com as normas e regulamentos que lhes forem peculiares; identificar e estimular temas prioritários de pesquisa em Dermatologia; pronunciar-se sobre quaisquer atos ou fatos do interesse do Dermatologista; viabilizar acordos, convênios, ajustes e outros instrumentos jurídicos com instituições públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, que assegurem meios e recursos para consecução dos seus objetivos17.

Assim, temos no Brasil quatro grupos de profissionais médicos que afirmam legitimamente atuar no tratamento da pele, sobretudo para fins estéticos18: A Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP)19, ambas com diálogo aberto e reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB)20; e de outro a Sociedade Brasileira de Medicina Estética (SBME), que se intitula ramo independente da Medicina, e a Academia Brasileira de Dermatologia (ABD)21, que surgiu para fazer frente à SBD, nenhuma das duas reconhecidas pela AMB ou o CFM.

Os procedimentos estéticos são variados e variáveis são também as técnicas que podem ser utilizadas. O anseio pelo rejuvenescimento e a sensação de bem-estar ultrapassou as fronteiras da estética comum e adentrou no domínio da Saúde, e, em particular, da Medicina, a qual acabou por buscar o monopólio de sua execução.

A própria definição de saúde pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como sendo “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades22, aumenta a abrangência do que seria estar saudável e entre elas se encontra o bem-estar estético. Os procedimentos estéticos, ainda que minimamente invasivos, têm como foco o cuidado do corpo humano e quem está apto para exercê-lo é objeto de diversas críticas.

No entanto, a situação se altera sensivelmente quanto à exclusividade dos médicos para o exercício da dermatologia estética, uma vez que não se está necessariamente buscando a cura ou tratamento de alguma doença. Na mesma nota supracitada, a SBD classifica aqueles que não têm diploma em Medicina de “não médicos”, expressão encontrada no linguajar corriqueiro da classe médica para se referir a outros profissionais da área da saúde que vêm atuando nos procedimentos estéticos citados neste artigo, como os peelings químicos, os preenchimentos cutâneos e a aplicação da toxina botulínica.

Neste diapasão, uma série de normas de ordem legal se impõe e diversos regulamentos profissionais se sobrepõem quanto à legitimidade do exercício de tais procedimentos.

3 OS MÉDICOS E O CFM

A discussão sobre a legitimidade dos médicos praticarem procedimentos estéticos que envolvam introdução de produtos químicos ou métodos abrasivos não gera tanta polêmica, além dos problemas políticos e deontológicos internos das diversas organizações médicas. Embora algumas sociedades médicas vindiquem serem as legítimas representantes dos profissionais médicos nas diversas especialidades, sobretudo na dermatologia estética ou cosmiátrica, todos estão respaldados pelo Código de Ética como estando habilitados para qualquer atividade médica.

O próprio Código de Ética Médica prevê (Resolução 1.931/2009, do CFM), em seu Capítulo I - Dos Princípios Fundamentais:

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.

(...).

VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. (grifo nosso)

No mesmo Código deontológico, no Capítulo II - Do Direito dos Médicos, a norma é expressa:

É direito do médico:

I - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza.

II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. (grifo nosso)

A atividade médica é regida pela Lei 12.842/2013, que dispôs sobre o exercício da Medicina (conhecida como Lei do Ato Médico):

Art. 1º. O exercício da Medicina é regido pelas disposições desta Lei.

Art. 2º. O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.

Art. 4º. São atividades privativas do médico:

I - (VETADO);

II - indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;

III - indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias. (grifo nosso)

Entre os próprios médicos existe a divergência acerca da necessidade de uma melhor e específica preparação do profissional para a atividade da cosmiatria. Tal divergência pôde ser percebida na Nota Oficial da SBD, em que afirmou que não existe medicina estética, que é imprescindível a filiação dos médicos a essa sociedade, que há requisitos teóricos e práticos para o exercício da cosmiatria e que a atividade exercida por qualquer profissional médico ou não em dermatologia estética sem o devido credenciamento seria exercício ilegal da profissão23.

Neste aspecto, cabe uma análise das leis e normas deontológicas que disciplinam as atividades profissionais dos que militam na área da saúde e que hoje atuam na “dermatologia estética24, a fim de se perceber a dificuldade de coordenação regulatória dessa atividade sensível não apenas da economia, mas também do exercício regular de uma profissão e suas consequências para a sociedade, representada pelos pacientes.

4 OS CIRURGIÕES-DENTISTAS E O CFO

A profissão de cirurgião-dentista é disciplinada pelo Decreto 20.931/193225 (que também disciplina o exercício e a fiscalização da profissão da medicina, do farmacêutico, da medicina veterinária e do farmacêutico, parteira e enfermeira (sic!)). Neste decreto, a atividade está limitada a prescrever fármacos para os casos estritos da sua especialidade e lhe é vedado promover cirurgias que extrapolem sua área de atuação.

A Lei 5.081/1966 regula o exercício da odontologia e inclui, entre elas, praticar todos os atos pertinentes à Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular ou em cursos de pós-graduação; prescrever e aplicar especialidades farmacêuticas de uso interno e externo, indicadas em Odontologia; e aplicar anestesia local e truncular. Em uma leitura superficial da Lei, não se encontraria, em tese, a indicação da odontologia para utilização do que se poderia chamar de “odontologia estética” nos tecidos da pele.

Por outro lado, como já sinalizado neste artigo, a aplicação de toxina botulínica ou o uso de preenchedores cutâneos têm fins tanto terapêuticos quanto estéticos. Dentre as finalidades terapêuticas, encontram-se o sorriso gengival e o bruxismo, cuja utilização dessas técnicas pode trazer resultados satisfatórios ao paciente que deseja combinar o tratamento odontológico com o estético.

No entanto, a questão se complica quando a atividade do cirurgião-dentista for exclusivamente estética. Sobre isso, o Conselho Federal de Odontologia (CFO) aprovou várias Resoluções tentando disciplinar o tema, entre as quais a Resolução 112/2011, que proibiu o uso do ácido hialurônico na Odontologia. A norma também restringiu o uso da toxina botulínica por cirurgiões-dentistas, proibindo o uso dessa substância para fins estéticos e permitindo seu emprego para fins exclusivamente terapêuticos.

Alguns anos depois, a Resolução 144/2014 alterou a Resolução 112/2011 e permitiu o uso do ácido hialurônico em procedimentos odontológicos com reconhecida comprovação científica e definiu que o uso da toxina botulínica seria permitido para uso terapêutico em procedimentos odontológicos e vedado, exclusivamente, para utilização em procedimentos estéticos. A Resolução 145/2014 voltou a alterar a Resolução 112/2011 e definiu que uso da toxina botulínica seria permitido para procedimentos odontológicos e vedado para fins não odontológicos.

Finalmente, o CFO definiu recentemente que a utilização dos preenchedores faciais e a aplicação da toxina botulínica podem ser empregadas para fins terapêuticos “ou” estéticos, desde que dentro da “área anatômica de atuação” do cirurgião-dentista, conforme a Resolução 176/201626.

Com isso, com relação aos cirurgiões-dentistas, e dentro de seu grupo corporativo, ficou superada a discussão sobre sua habilitação e legitimidade para exercer a odontologia estética com a utilização dos métodos próprios da cosmiatria, desde que esteja restrito às partes do rosto próprias da atuação do cirurgião-dentista.

Essa discussão pacificou entre os cirurgiões-dentistas tal questão, mas não em relação aos médicos, pois ainda que se tenha definido uma área própria para execução de procedimentos estéticos, há vários contornos de interpretação na norma que podem levar a uma extensão dessa área, conforme a necessidade, sobretudo na face.

Por outro lado, isso não evitou que a AMB e a SBCP, entre outras associações médicas, ingressassem com uma ação civil pública contra a Resolução 176/2016. O Ministério Público Federal deu parecer pela improcedência do pleito liminar. No entanto, a petição inicial foi indeferida e o feito julgado improcedente sem resolução de mérito, por entender o Juízo que as autoras não tinham legitimidade ativa para ingressar em juízo pela via eleita (ACP) e o CFM ingressou no feito como mero assistente:

Patente, portanto, a ilegitimidade ativa das autoras, impõe-se a terminação do processo. Esclareça-se que muito embora o Conselho Federal de Medicina tenha plena legitimidade ativa para propor a presente ação ou se habilitar como litisconsorte, nos termos da Lei 7.347/1985, essa autarquia profissional não o fez, limitando-se a pedir seu ingresso no feito como assistente simples, nos termos do art. 119 do NCPC (fl.130), o que não tem o condão de sanar o vício processual ora detectado. Ante o exposto, manifesta a ilegitimidade ativa apontada, com fundamento no art. 330, II, do NCPC, INDEFIRO A PETIÇÃO INICIAL, extinguindo o feito sem resolução de mérito27.

No entanto, em ação semelhante ajuizada junto à 5ª Vara Federal do Rio Grande do Norte28, confirmada pela 2ª Turma do TRF-5, houve a suspensão dos efeitos da dita Resolução, conforme segue no voto vencedor:

Por tudo o que foi exposto, irretocável a decisão de primeiro grau, que reconhecera o perigo da demora, a justificar o deferimento imediato do pedido para determinar a suspensão da autorização contida na Resolução 176/2016, uma vez que “a regulamentação infralegal impugnada, ao possibilitar aos profissionais de Odontologia, cuja formação não visa à realização de atos médicos, o exercício de atos privativos dessa categoria profissional, põe em rico a saúde da população, sujeita a sofrer danos físicos/estéticos. Assim, considerando que o exercício dessas atividades tangencia as funções previstas privativamente a profissionais da medicina, e considerando-se o risco comprovado de danos à saúde dos inúmeros pacientes que porventura possam a vir ser afetados, a concessão da tutela pleiteada se mostra imperiosa”29.

Todavia, o processo foi recentemente extinto, sem resolução de mérito, por ter entendido o Juízo que já havia outra ação de igual teor tramitando no TRF-1, da qual já falamos e que igualmente foi extinta sem resolução de mérito.

Das duas decisões, em ambos os tribunais, houve interposição de apelação contra as sentenças terminativas, e voltou-se ao status quo ante, isto é, a permissão de os cirurgiões-dentistas exercerem a cosmiatria, pelo menos enquanto os recursos não forem julgados ou concedido algum efeito suspensivo.

A discussão, porém, está longe de terminar, pois o CFO publicou recentemente a Resolução CFO-198/2019, que Reconhece a Harmonização Orofacial como especialidade odontológica, e dá outras providências. Resta aguardar o posicionamento do Judiciário sobre o tema.

5 OS FARMACÊUTICOS E O CFF

A profissão de farmacêutico é regulada pelo Decreto 20.931/1932 e pelas Leis 5.991/1973 e 13.021/2014. Classicamente, cabe aos farmacêuticos realizar intervenções farmacêuticas, prescrever no âmbito da sua competência, observada a legislação, analisar prescrições e o acompanhamento da produção de medicamentos, na forma da Resolução 585/2013 do Conselho Federal de Farmácia (CFF).

No entanto, a partir da Resolução 616/2015, passou a fazer parte das atribuições desse profissional da saúde o que foi chamado pela classe de “saúde estética”, assim entendidos os seguintes procedimentos que constam como anexos da Resolução: toxina botulínica, preenchimentos dérmicos, caboxiterapia, intradermoterapia/mesoterapia, agulhamento e microagulhamento estético e crilipólise, desde que preenchidos alguns requisitos previstos na própria Resolução.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul ingressou com ação junto à 8ª Vara Federal do Rio Grande do Sul para sustar as Resoluções CFF 585/2013, 586/2013 e 616/201530, mas teve seu pedido de tutela indeferido pelo Juízo a quo, decisão esta mantida pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sob o argumento de que não estariam presentes os requisitos autorizadores do art. 300, do CPC, a saber:

No caso em apreço, não obstante a relevância do fundamento da demanda, vale dizer, a defesa de interesse coletivo “lato sensu”, a saúde pública, entendo não haver risco de ineficácia do provimento final, se concedida a tutela pleiteada após o contraditório ou em sentença31.

Decisão diferente foi proferida pelo TRF-5, em que o juiz da ação na Sessão Judiciária do Rio Grande do Norte pugnou pela suspensão dos efeitos da Resolução do CFF, na forma de tutela de urgência:

Diante do exposto, defiro o pedido liminar deduzido pela ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA - AMB e ASSOCIAÇÃO MÉDICA DO RIO GRANDE DO NORTE na peça inaugural, para suspender os efeitos/eficácia do art. 7º, caput e incisos VII, VIII, XVI e XXVI da Resolução 585/2013 - Conselho Federal de Farmácia, até ulterior deliberação judicial32.

Posteriormente, no entanto, o processo foi extinto sem resolução de mérito, tendo em vista litispendência, conforme segue, ainda sem definições concretas:

O presente processo deve ser extinto sem julgamento de mérito por ser litispendente às ações civis públicas 0060624-78.2013.4.01.3400, 0007846-97.2014.4.01.3400, 0027374-49.2016.4.01.3400 e 00051244-60.2015.4.01.3400, todas em trâmite na 17ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília/DF33.

Desta forma, foi ampliado o rol da ação de atuação do farmacêutico e estes passaram a competir no mercado da cosmiatria brasileiro34.

6 OS FISIOTERAPEUTAS E O COFFITO

Antes conhecidos como profissionais que cuidavam da recuperação dos pacientes traumatizados, da reabilitação e técnicas de ergonomia e correção, os fisioterapeutas também disputam o mercado da dermatologia estética. A profissão de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional é regulamentada pelo Decreto-Lei 938/196935 e pelas Leis 6.316/1975 e 8.856/1994.

De acordo com a Resolução 8/1978, art. 3º, do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), são recursos terapêuticos a ação isolada ou concomitante de agente termoterapêutico, crioterapêutico, hidroterapêutico, aeroterapêutico, fototerapêutico, eletroterapêutico, sonidoterapêutico, massoterapêutico, mecanoterapêutico, cinesioterapêutico motor e cardiorespiratório e utilização de órteses e próteses.

Por outro lado, a “fisioterapia dermatofuncional” foi regulamentada pela Resolução 394/2011 e, por essa Resolução inovadora, o fisioterapeuta utiliza a cosmetologia (RDC/ANVISA 79/2000) e acupuntura (Resolução 219/2000) como recursos terapêuticos, podendo também lançar mão das Práticas Integrativas e Complementares de Saúde (Resolução 380/2010), tecnologias assistidas, entre outros.

A fim de definir os limites da atuação dessa nova especialidade dentro da fisioterapia, o COFFITO aprovou na forma de Acórdão a Normatização das Técnicas e recursos próprios da fisioterapia dermatofuncional, tendo em vista que o tratamento fisioterapêutico dermatofuncional pode oferecer diferentes graus de risco à saúde da população. Como conclusão do Parecer 06/2012, o Acórdão 293/2012 incluiu entre as atividades do fisioterapeuta dermatofuncional o uso das seguintes técnicas da cosmiatria: laser, luz intensa pulsada, radiofrequência, corboxiterapia e o peeling mecânico ou químico. Neste último caso, no entanto, foi vedado ao fisioterapeuta procedimentos de peeling cuja profundidade ultrapasse o limite da epiderme36.

Desta forma, embora com atuação mais limitada que as demais classes de profissionais de saúde, os fisioterapeutas foram autorizados a ingressar nesse mercado de trabalho de dermatologia estética, em quase pé de igualdade com outros profissionais “não médicos”.

7 OS ENFERMEIROS E O COFEN

A profissão de enfermeiro (incluindo técnico e auxiliar de enfermagem) é regulamentada pelos Decretos-Leis 20.931/1932, 8.778/1946 e pelas Leis 2.604/1955 e 7.498/1986. É de conhecimento comum que o enfermeiro e os técnicos em enfermagem são profissionais ligados ao cuidado do paciente e à organização interna nos hospitais, normalmente voltados para o ambiente hospitalar37.

No entanto, assim como os outros profissionais de saúde já mencionados neste artigo, os enfermeiros atribuíram-se a legitimidade para exercer cosmiatria através da Resolução 429/2016 do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), em que foi permitido aos enfermeiros exercer, entre outras atividades previstas no Anexo da Resolução: micropuntura, carboxiterapia, intradermoterapia/mesoterapia, laserterapia, micropigmentação, peeling muito superficiais e superficiais e criolipólise. Nos considerandos da Resolução cunhou-se o termo “enfermagem estética”.

No entanto, em de 10.05.2017, o juiz federal titular da 4ª Vara Federal do Rio Grande do Norte proferiu decisão liminar de âmbito nacional suspendendo a Resolução COFEN 529/2016, em ação movida pela AMB e outras três associações médicas e outras organizações médicas, sob o argumento de que estaria se invadindo área privativa do médico e extrapolando os limites impostos pela Lei à atuação do enfermeiro. A decisão determina, ainda, que o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) se abstenha de editar nova norma sobre o tema, até que seja julgado o mérito da questão38. A decisão foi recentemente confirmada pela 2ª Turma do 5º Tribunal Regional Federal da 5ª Região, sob a justificativa que:

Considerando-se o risco de danos efetivos ocasionados à saúde dos inúmeros pacientes que porventura possam a vir ser afetados, não se mostra descabida, nesse momento, a proibição do exercício de tais funções pelos profissionais de Enfermagem, com a suspensão do que prevê a Resolução do Cofen, mercê da possível extrapolação na atividade regulamentar efetuada por este ato normativo frente à previsão legal das atuações profissionais de enfermeiros e de médicos39.

Na referida ação, o Ministério Público Federal potiguar apresentou seu parecer com a seguinte expressão:

(...) Neste contexto, além das residências médicas e cursos adicionais, os médicos, na sua formação acadêmica, com duração média de seis anos em período integral, estudam, entre outros, o Sistema Cardiovascular, Sistema Respiratório, Sistema Digestório, Imunopatologia, Doenças Infecciosas e Assistência Básica à Saúde. Já o enfermeiro especializado em saúde estética necessita ser graduado em curso superior em Enfermagem e ser pós-graduado Lato Sensu ou Stricto Sensu em Enfermagem Estética por instituição reconhecida pelo MEC. São preparações profissionais diferentes, portanto, não há razão para conferir atribuições médicas àqueles que não têm formação em medicina. Dessa forma, a impugnada Resolução COFEN nº 529/2016 é incompatível com a Lei n. 12.842, de 10 de julho de 2013. III - CONCLUSÃO. Em razão do exposto, o Ministério Público Federal se manifesta pela procedência da demanda, nos termos da manifestação supra. (grifo nosso)

Nesta mesma linha de raciocínio, o Juízo da 20ª Vara Federal do Distrito Federal, ao deferir pedido de tutela provisória requerido pelo CF para suspender Resolução 529/2016 do COFEN, caminhou na mesma linha de entender que:

a lei 12.842/13, que dispõe sobre o exercício da medicina, prevê, expressamente, que “a indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias” são atividades privativas do médico (art. 4º, inciso XII). (...) De igual modo, o inciso X do art. 4º da referida lei estabelece que “a determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico” também é atividade privativa dos médicos. O COFEN, por mera Resolução, atribuiu competência não prevista na lei que regulamenta a profissão e que, a princípio, parece invadir a área de atuação dos médicos, haja vista a Lei nº 12.842/2013, é clara ao afirmar que a execução de procedimentos estéticos é de competência privativa dos médicos. (...) Pelo exposto DEFIRO PARCIALMENTE o pedido de tutela provisória de urgência para suspender os efeitos da Resolução COFEN nº 529/2016 no que diz respeito aos seguintes procedimentos: i) micropuntura (microagrilhamento); ii) laserterapia; iii) depilação a laser; iv) criolipólise; v) escleroterapia; vi) intradermoterapia/mesoterapia; vii) prescrição de nutricêuticos/mutriconsméticos (sic!); e viii) peelings; todos de competência privativa dos médicos40.

Há uma tentativa do COFEN de pedir a reunião dos processos que tramitam no TRF-5 e no TRF-1 (0020776-45.2017.4.01.3400), além de outra demanda referente aos farmacêuticos que está tramitando no TRF-3 (5022754-63.2017.4.03. 6100), ainda sem julgamento e com o ingresso de novos atores.

No despacho saneador, o Juízo do Rio Grande do Norte, influenciado por decisão semelhante deferida no TRF-1 (20778-15.2017.4.01.3400) decidiu reconsiderar em parte a decisão que suspendeu os efeitos da Resolução COFEN 529/2016 nos seguintes termos:

Por tais razões, defiro o pedido de reconsideração formulado pelo COFEN (id. 4058400.3365033), para alterar parcialmente a decisão de id. 4058400.2257428, mantendo a suspensão da Resolução COFEN 0529/2016 apenas quanto aos procedimentos de “Micropuntura, Laserterapia, Depilação a laser, Criolipólise, Escleroterapia, Intradermoterapia/Mesoterapia, Prescrição de Nutracêuticos/Nutricosméticos e Peelings”, até ulterior deliberação.

Como se vê, a tentativa de ingressar plenamente no mercado de trabalho foi, pelo menos provisoriamente, freada pelo Judiciário, mas não o desejo do COFEN em ter legitimidade para atuar na medicina estética.

8 OS BIOMÉDICOS ESTETAS E O CFBM

Talvez nenhum dos grupos acima traga mais polêmica no mercado da cosmiatria quanto a dos “biomédicos estetas”. A profissão de biomédico é regulamentada pela Lei 6.684/1979 e o Decreto 88.439/1983, cujo escopo de atuação é basicamente análises físico-químicas e microbiológicas, a radiologia e os serviços de hemoterapia, sob supervisão médica. O sítio oficial do Conselho Federal de Biomedicina (CFBM) considera:

O Biomédico é o profissional responsável por realizar exames que possibilitem o diagnóstico por imagem, elucidar crimes por meio de análises de tecidos na Polícia Federal ou Civil, realizar exames de biologia molecular, pesquisar e desenvolver produtos obtidos por biotecnologias, fazer manipulação de microrganismos para que possam ser industrializados como medicamento e executar exames clínicos em laboratórios e hospitais para ajudar a identificação de agentes causadores de patologias humanas, entre outras funções.

Quanto à “biomedicina estética”, as Resoluções 197/2011, 200/2011, 214/2012 e especialmente a Resolução 241/2014 definiram que é área de atuação do biomédico a prescrição e aplicação de produtos injetáveis para fins estéticos (art. 2º), a prescrição de formulações magistrais e de referência (arts. 5º e 6º) e o uso do laser de baixa, média e alta frequência, além de outras técnicas disponíveis (art. 8º).

A Resolução Normativa 01/2012 do CFBM, em seu Anexo I, trouxe o rol de atividades dos profissionais em estética, nas modalidades de técnico, tecnólogos e biomédicos, dentre as quais incluiu: eletroterapia, sonoforese (ultrassom estético), iontoforese, radiofrequência estética, laserterapia, luz intensa pulsada, LED, peelings químicos e mecânicos, cosmetologia, carboxiterapia, intradermoterapia (enzimas e toxina botulínica), preenchimentos semipermanentes e mesoterapia. Talvez nenhum dos grupos dos chamados não médicos tenha ido tão longe no alcance da utilização das técnicas de dermatologia estética.

Para os profissionais biomédicos estetas,

a Biomedicina Estética cuida da saúde, bem-estar e beleza do paciente, levando os melhores recursos da saúde relacionados ao seu amplo conhecimento para o tratamento e recuperação dos tecidos e do organismo como um todo. (...) O biomédico possui um preciso entendimento das características da derme, seus anexos, demais tecidos e inclusive o metabolismo, ou seja, todo o funcionamento dermatofisiológico, possibilitando a realização de terapias que promovem uma melhor qualidade de vida ao paciente41.

Em 2011, o COFFITO protocolou uma representação no Ministério Público Federal do Distrito Federal solicitando a anulação das Resoluções (CFBM) 200/2011 e 197/2011, por constatado que as referidas Resoluções afrontam o sistema jurídico vigente, pois extrapolam o poder normativo da autarquia que editou as aludidas Resoluções42.

Ato contínuo, assim como no caso dos enfermeiros, a juíza federal da 3ª Vara Federal do Distrito Federal julgou procedente o pedido interposto pelo CFM para anular as Resoluções CFBM 197/2011, 200/2011, 214/2012 e a Resolução Normativa 01/2012, as quais dispõem em linhas gerais sobre a Biomedicina Estética e requisitos para exercício destas atividades pelo biomédico.

Ante o exposto, reconsidero a decisão de fl. 259, defiro o pedido de tutela de urgência para suspender os efeitos das Resoluções 197/2011, 200/2011, 214/2012 e o Anexo I, item 02 da Normativa 01/2012, do Conselho Federal de Biomedicina e JULGO O PEDIDO PROCEDENTE para anular as Resoluções 197/2011, 200/2011, 214/2012 e o Anexo I, item 02 da Normativa 01/2012, do Conselho Federal de Biomedicina. Declaro extinto o processo, com resolução de mérito, na forma do art. 487, I, do CPC/201543.

Como da decisão cabia recurso, o desembargador federal relator do processo no TRF-1 restaurou as atribuições dos biomédicos, os quais podem continuar exercendo a “biomedicina estética” até decisão que altere o efeito suspensivo concedido, pois, segundo o magistrado:

Sem me vincular de forma definitiva à tese ora adotada, à primeira vista, não vislumbro que as Resoluções do CFBio objetos de impugnação pelo CFM no feito de origem tenham normatizado atividades privativas do médico. É que, no caso, a Lei que dispõe sobre o exercício da Medicina (Lei 12.842/2013), em seu art. 4º, ao apontar as atividades privativas do médico, considerou como tal, em seu inciso III, a “indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias’ e, em seguida, no seu § 4º, ao definir como procedimentos invasivos para os efeitos dessa Lei, considerou apenas aqueles descritos no inciso III, ou seja, os caracterizados pela ‘invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos”44.

Finalmente, vale uma informação adicional de que não se deve confundir o “biomédico esteta” com o “esteticista”. O esteticista é um profissional cuja atividade está ligada à higiene e ao embelezamento, e algumas atividades estão regulamentadas pela Lei 12.592/2012 e a Lei 13.643/201845.

9 O DILEMA DA ÁREA DE COMPETÊNCIA ENTRE OS PROFISSIONAIS DA SAÚDE E A INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO

Diante de tamanha multiplicidade de profissionais que se consideram habilitados para a execução dos procedimentos estéticos, urge ponderar sobre até que ponto tais atos são exclusivamente médicos e, se não o são, qual o alcance de outros profissionais que, igualmente, tratam dos corpos dos pacientes, inclusive com introdução de substâncias subcutâneas.

Por um lado, os médicos afirmam que os procedimentos estéticos, especialmente os invasivos, incluindo os preenchimentos cutâneos e a aplicação de toxina botulínica são privativos dos médicos porque implicam em injeção de produtos tóxicos no corpo dos pacientes, o que poderia trazer sérios riscos à saúde, caso não sejam bem administrados. Por outro, os demais profissionais alegam que a Lei não proíbe que estes executem tais procedimentos porque não se trata de ato exclusivo da Medicina.

Neste âmbito, há que se verificar o que o ordenamento jurídico e a jurisprudência revelam como resposta à inquietação que se levanta na atualidade, uma vez que, em primeira análise, a proteção deve ser dada prioritariamente ao paciente e, secundariamente, aos profissionais que atuam na área, pois aquele é o sujeito determinante da realização dos procedimentos, cujo mau resultado poderá trazer sérios prejuízos a sua saúde.

O que se pode constatar é que o problema é real e precisa de tratamento. A autorregulação exercida pelos conselhos profissionais tem trazido conflito e, por razões de corporativismo profissional, a legislação própria de cada conselho não tem sido atualizada, tendo sido a última alteração a Lei do Ato Médico, já mencionada.

Como meio de solução, as organizações médicas, inclusive o CFM, elegeram o Judiciário como órgão para decidir controvérsias sobre a competência “legislativa” ou normativa dos Conselhos em editar resoluções que legitimam a atividade profissional da cosmiatria. Os demais conselhos têm se defendido ou igualmente buscado amparo junto à Justiça para manter sua atuação, conforme aprovados em suas resoluções.

Não se pode olvidar o fato de que a cosmiatria tornou-se uma atividade lucrativa, pois envolve procedimentos normalmente caros, interessa à indústria farmacêutica, mobiliza muitos profissionais, clínicas e hospitais, atua numa área sensível da vida humana, que é a estética, o bem-estar e isso afeta diretamente a saúde das pessoas.

Desta forma, a participação do Judiciário tem sido, praticamente, o único veículo de contensão das atividades dermatológicas estéticas. A importância do Judiciário na coordenação não é negativa, pois, como afirma Freeman e Rossi, “we consider how Judiciary review might advance or hinder interageny coordination. (...) It requires na appreciation of shared regulatory space46, isto é, pode exercer um papel deveras importante. Por outro lado, uma análise das decisões até aqui proferidas, especialmente as utilizadas neste artigo, a questão não está ainda estabilizada, pois diversos tribunais do País estão proferindo decisões terminativas, por mera inadequação processual, sem julgar o mérito, ou concedendo ou indeferindo tutelas de urgência com conteúdo contraditório, o que pode pôr em risco a segurança jurídica e a saúde pública47.

CONCLUSÃO

Nos últimos anos, a dermatologia estética ou cosmiatria abriu um novo mercado que logo foi assumido pelos médicos e, não muito depois, por praticamente todos os outros profissionais da saúde no País. Isso tem gerado problemas de toda ordem, mas especialmente sobre a habilitação para que profissionais não médicos possam realizar tais procedimentos.

É inegável a reserva de mercado que se abre para tantos quantos tenham acesso à tecnologia e assumam o risco da realização do procedimento, bem como o interesse da população em tais modalidades de assistência à saúde. Dessa forma, presenciou-se os órgãos de classe (conselhos profissionais), por meio de autorregulação, editarem resoluções com o fim de permitir a seus credenciados a realização dos variados procedimentos que, até pouco tempo, eram privativos de médicos, que detinham o mercado protegidos pela Lei do Ato Médico.

Diversas ações judiciais foram ajuizadas e uma “queda de braços” entre os diversos conselhos profissionais se instaurou para determinar se os procedimentos dermatológicos estéticos seriam privativos ou não de médicos. O resultado tem sido decisões conflitantes, algumas delas suspendendo as resoluções, outras aguardando a instrução judicial. No entanto, o Judiciário tem sido o órgão legítimo para tentar dirimir tais conflitos.

Diante de tamanha insegurança jurídica, urge enfrentar o problema não apenas do ponto de vista econômico, da reserva de mercado, mas também da proteção à saúde da população. A parte vulnerável desta “luta de egos” é o cidadão que se submete a todo tido de intervenção, com riscos e resultados muitas vezes indesejáveis.

A legislação é falha no momento em que deixa brechas para interpretações, especialmente os vetos sinalizados pelo Poder Executivo à Lei do Ato Médico que deixou aberto o conceito de “procedimentos invasivos48, permitindo que os outros conselhos compreendessem, a contrario sensu, que o que a Lei não vedou ou não disciplinou como “ato privativo de médico” é liberado a outros profissionais.

Essa afirmação deve ser analisada cum grano salis. A uma, porque as próprias leis que disciplinas as diversas profissões na área da saúde definem as atribuições de cada profissional - desde o auxiliar até o graduado - não estando compreendidas em nenhuma delas procedimentos dermatológicos estéticos invasivos. A duas, porque as resoluções expedidas por seus conselhos têm status de norma formal, mas de orientação a seus profissionais, não vinculando a população, tampouco o poder público.

Como as decisões judiciais atuais têm sido em geral terminativas ou não conclusivas, tem-se que a coordenação regulatória não está adequada, ou é necessário repensar se seria o caso de se criar um órgão regulador ou mesmo um conselho “intercolegiado” para dirimir tais controvérsias, como aconteceu com o CFM e CFO que definiram, finalmente, que em caso de cirurgias e traumatologia buco-maxilo-faciais, o profissional de quem for o paciente será o “chefe da equipe49.

Como consequência da falta de uniformidade normativa e jurisdicional, o legislador deve se debruçar sobre o tema e rever a Lei do Ato Médico para tornar claro o alcance da expressão “procedimentos invasivos”, seja para restringir ou para permitir sua prática por profissionais “não médicos”, o que levará a uma revisão curricular nas grades de disciplinas dos diversos cursos universitários. É necessário, portanto, que se estabeleça coordenação regulatória para essa área sensível da atividade econômico-social exercida por estes profissionais, tendo em vista que a autorregulação tem se demonstrado insuficiente para sanar os inevitáveis conflitos da superposição de regulação exarada pelos diversos conselhos profissionais.

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Recebido: 30 de Abril de 2019; Aceito: 02 de Agosto de 2019

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