1 INTRODUÇÃO
O artigo pretende identificar as principais finalidades da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), figura introduzida no Código Civil por meio da Lei 12.441, de 11.07.2011. Para tanto, serão apresentados os objetivos pretendidos pelo autor do projeto, a problemática relativa à ilimitação da responsabilidade civil da pessoa natural que exerce empresa no Brasil, perscrutando-se outras possíveis funções para o instituto.
Estrutura-se o presente em seis seguimentos: i. introdução: ii. apresentação do cenário jurídico brasileiro anterior à promulgação da Lei de 2011; iii. um breve exame comparativo entre as técnicas de limitação da responsabilidade da pessoa física (criação de patrimônios de afetação x sociedade unipessoal); iv. demais aplicabilidades para EIRELI; v. síntese conclusiva autoral, buscando-se evidenciar quais são as instrumentalidades da EIRELI, verificando-se se, de fato, a empresa individual de responsabilidade limitada se destina apenas a possibilitar a redução da responsabilidade do empresário individual; e, por fim, vi. as referências consultadas durante a investigação.
Finalmente, impede mencionar que o trabalho se funda em pesquisa eminentemente teórica, utilizando-se das fontes jurídicas ortodoxas, notadamente o ordenamento jurídico positivo, a doutrina especializada e a jurisprudência dos tribunais brasileiros.
2 PANORAMA JURÍDICO ANTERIOR AO SURGIMENTO DA EIRELI
Primeiramente, cabe salientar que a Lei 12.441/2011, desde sua formulação original expressa no Projeto de Lei da Câmara dos Deputados 4.605/2009, teve o objetivo declarado de possibilitar a constituição de sociedade por pessoa natural singularmente, utilizando-a como instrumento para a limitação da responsabilidade do titular único2.
Essa proposta se baseava no fato de que, até a entrada em vigor da nova Lei, a legislação brasileira possibilitava somente às pessoas jurídicas instituir sociedades unipessoais, fossem sociedades brasileiras, no caso de subsidiária integral (art. 251 da Lei 6.404/1976), ou os entes federativos, na hipótese das empresas públicas (art. 3º da Lei 13.303/2016).
Restavam, portanto, às pessoas naturais duas opções: desempenhar diretamente as atividades negociais3, respondendo ilimitadamente pelas obrigações advindas desse exercício, nos termos do art. 391 do Código Civil4, ou buscar um sócio a fim de cumprir a exigência da pluripessoalidade permanente, então obrigatória para todas as sociedades criadas por pessoas físicas, a fim de obter o benefício da limitação de sua responsabilidade5.
Sem embargo, é necessário frisar que, em diversas situações, o empreendedor pessoa natural não pretendia ter efetivamente um sócio, mas valia-se de outrem para cumprir o requisito formal da pluralidade, facultando-lhe participação societária praticamente irrisória, muitas vezes menor que 1% (um por cento) do capital social, e nenhuma atuação significativa na gestão da sociedade6.
A utilização de um sócio de palha, especialmente como meio de inviabilizar à responsabilização do sócio controlador perante os terceiros credores, sofreu diversas críticas da doutrina por ser considerada um abuso do instituto da sociedade, um uso fraudulento da estrutura concebida pelo legislador7.
Essa prática, que pode ser caracterizada como abuso da personalidade, seja pelo desvio de finalidade do instituto da sociedade, ao ser criada como um subterfúgio, seja pela eventual confusão patrimonial entre o ente e seu controlador, daria margem à desconsideração de sua personalidade jurídica pelo Poder Judiciário, consoante o art. 50 do Código Civil.
Por outro lado, a pessoa natural ao exercer a atividade econômica em nome próprio, assumiria a responsabilidade total e irrestrita sobre o desempenho dos negócios. Essa diferença considerável no risco assumido em relação às sociedades com responsabilidade limitada acabava por desestimular o exercício solitário das atividades econômicas8.
Nesse prisma, Sylvio Marcondes Machado9 lecionava desde 1956 que a dinâmica contemporânea das relações jurídicas concernentes ao desenvolvimento de atividades econômicas não se harmonizava com a ideia de ilimitação da responsabilidade da pessoa natural que atua no mercado.
Já Antonio Martins Filho10, ao defender a inserção da limitação da responsabilidade do empreendedor pessoa natural no direito brasileiro, se referia a esta como a última fase do processo evolutivo da limitação de riscos, questionando o panorama legal que possibilitava a limitação de responsabilidade quando duas ou mais pessoas estão reunidas por meio de sociedade e determinava a responsabilização ilimitada quando o exercício era feito por pessoa singular.
Outro argumento elencado pela literatura que apontava para a incongruência do sistema então vigente seria a violação ao postulado da isonomia, uma vez que não haveria razões suficientes para justificar o tratamento diferenciado entre aqueles que desempenham negócios coletiva (como, por exemplo, por intermédio de uma sociedade limitada) ou individualmente11.
Nesse contexto, a doutrina12 apresenta essencialmente duas técnicas para a limitação da responsabilidade da pessoa natural que realiza atividade negocial: i. a afetação de parcela do patrimônio especificamente para o desenvolvimento de negócios; e ii. a constituição de pessoa jurídica de titular único, notadamente concebida na forma de sociedade unipessoal13, as quais se passam a analisar.
3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS TÉCNICAS DE LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DA PESSOA NATURAL
Quanto à primeira técnica de limitação de responsabilidade da pessoa natural, por meio da afetação, cabe destacar que esta só foi possível com a superação da teoria clássica subjetiva da conceituação de patrimônio, estudada notadamente pelos juristas franceses Charles Marie Barbe Antoine Aubry e Charles Frédéric Rau.
Para tais autores, o patrimônio seria uma universalidade de direito, um conjunto de bens que, apesar de natureza e origem distintas entre si, se encontram reunidos pelo fato de pertencerem a uma mesma pessoa. Desse modo, entendem que a ideia de patrimônio derivaria da própria noção de personalidade14/15.
Assim sendo, diante dessa estreita conexão entre patrimônio e personalidade, não seria possível se admitir uma pessoa sem patrimônio, mesmo que negativo. Ademais, se depreendia dessa íntima relação que o patrimônio, tal qual a personalidade, seria sempre uno e indivisível, consequentemente, impossível de ser afetado16.
Orlando Gomes (2016, p. 203), a seu turno, resume essa visão doutrinária em quatro princípios fundamentais: i. só as pessoas, naturais ou jurídicas, podem ter patrimônio; ii. toda pessoa tem necessariamente um patrimônio; iii. cada pessoa só pode ter um patrimônio; e iv. o patrimônio é inseparável da pessoa.
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira (2015, p. 399) as principais vantagens dessa unicidade patrimonial seriam i. a garantia dos credores, haja vista que todos os bens do devedor a princípio amparariam a satisfação do débito, e ii. a fixação do estado patrimonial do de cujus no momento da abertura da sucessão.
Contudo, tal conceito de patrimônio foi sendo revisitado ao longo do tempo pela doutrina, especialmente por causa de sua incapacidade de lidar com algumas previsões legais expressas em sentido oposto a tais lições. Nesse sentido, por exemplo, Sylvio Marcondes Marchado (1970, p. 91), ao comentar o art. 57 do Código Civil de 1916, salientava a coexistência entre o patrimônio e a herança:
Em face de nosso direito positivo, portanto, o patrimônio e a herança - para ficar apenas nessas universalidades - são universalidades de direito. E mais. Colocado o observador na posição do herdeiro, verifica-se que elas coexistem, por pertinência ao mesmo titular. Sem negar aos objetos de direito o suporte do sujeito de direito, o legislador pátrio contradiz, assim, a indivisibilidade e, pois, a unicidade do patrimônio, deduzidas ambas pela teoria clássica. (grifo do autor)
Para a doutrina moderna objetivista, não haveria sempre uma unidade patrimonial, podendo existir simultaneamente, em relação a uma pessoa, um patrimônio geral e patrimônios separados ou autônomos, destinados à atingimento de um propósito previamente estipulado, nos termos previstos em Lei17. Dessa maneira, o patrimônio separado seria “o conjunto de bens coesos pela afetação a fim econômico determinado”18 (GOMES, 2016, p. 210).
No direito brasileiro, a possibilidade de constituição de patrimônio de afetação está prevista, por exemplo, no âmbito das incorporações imobiliárias como umas das garantias do sistema de proteção dos adquirentes19, ante o art. 31-A da Lei 4.591, de 16.12.1964, incluído pela Lei 10.931, de 02.08.2004.
Nesse quadro, o patrimônio separado serve como uma importante figura direcionada à salvaguarda do prosseguimento das obras e da efetiva entrega das unidades autônomas a seus compradores, mesmo que a incorporadora passe dificuldades financeiras, inclusive em caso de sua falência20.
Entretanto, no que tange à limitação de responsabilidade da pessoa natural que desenvolve atividade econômica, a legislação nacional não traz qualquer possibilidade de instituição de patrimônio segregado voltado exclusivamente ao risco do negócio desempenhado.
Diferentemente, verbi gratia, do direito português que concebe no art. 1º do Decreto-Lei 248, de 25.08.1986, o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada, espécie de afetação de patrimônio formulada por pessoa natural para o exercício de atividade de comércio21.
A intenção do legislador lusitano, conforme se percebe da Exposição de Motivos do Decreto-Lei 248/198622, foi clara no sentido de permitir à pessoa natural a limitação do risco empresarial, optando-se, todavia, pela técnica do patrimônio separado a fim de se preservar a conceituação clássica de sociedade como contrato, a qual seria incompatível com a unipessoalidade permanente23.
Em terras brasileiras, Sylvio Marcondes Machado é considerando o principal defensor da adoção da limitação de responsabilidade por meio de afetação de patrimônio24. Para o autor, a afetação de patrimônio seria o melhor expediente para conceder a limitação de responsabilidade à pessoa natural, haja vista que, segundo ele, não seria possível a constituição de uma sociedade unipessoal por ausência de pluripessoalidade, ainda que mediante uma sociedade fictícia, composta pelo verdadeiro titular do negócio e um sócio de palha, para cumprimento do referido requisito legal25.
Sem embargo, a concepção de sociedades unipessoais permanentes não é só possível, como foi paulatinamente reconhecida em diversos ordenamentos jurídicos, não havendo qualquer impossibilidade concreta de seu uso no direito brasileiro. Ademais, a utilização da técnica de limitação de responsabilidade por meio da sociedade unipessoal possui algumas vantagens em relação à criação de patrimônios de afetação.
Primeiramente, cabe ressaltar que, na afetação, ainda que o empreendedor utilize o mecanismo da firma, o discernimento entre o patrimônio geral e especial se encontra bem menos perceptível do que no caso da sociedade unipessoal em relação a seu sócio, especialmente no que se refere aos lucros obtidos na exploração da atividade econômica, o que poderia aumentar as chances de haver confusão patrimonial e conflitos de interesses26.
Além disso, a técnica do patrimônio separado, a princípio, não permite a admissão de novos parceiros a fim de se ampliar os negócios, diferentemente da estrutura societária que, nos termos dos arts. 1.113 e 1.115 do Código Civil, facilita a transformação da sociedade unipessoal para a pluripessoal, sem prejudicar os direitos de terceiros27.
De outro giro, no que se refere ao patrimônio afetado, haveria também uma dificuldade maior na inclusão ou exclusão de bens vinculados ao desempenho da atividade, uma vez que as modificações nesse conjunto de bens poderiam afetar substancialmente a garantia dos credores, sejam os pessoais, sejam referentes aos negócios28.
Igualmente, impende salientar que a ausência da atribuição da personalidade jurídica inibiria a obtenção de financiamento dos negócios desvinculado da esfera privada do empreendedor, tendo em conta que concerniria a pessoa natural celebrar os contratos de mútuo, obstaculizando, portanto, o acesso ao crédito29.
Por outro lado, destaca-se o fato de que as possibilidades de transferência por ato inter vivos a outrem da universalidade especial seriam mais limitadas, justamente para preservar os interesses dos credores.
Nesse sentido, recordar-se, por exemplo, da norma insculpida no art. 1.145 do Código Civil, que declara a ineficácia do trespasse realizado por alienante que não possua bens suficientes para pagar seu passivo, salvo se houver o pagamento de todos os credores ou o consentimento, expresso ou tácitos, destes no prazo de 30 (trinta) dias a contar de sua notificação.
No caso de falecimento da pessoa natural, a transferência do patrimônio separado causa mortis seria ainda mais problemática, posto que é muito difícil haver um consenso entre os herdeiros acerca da forma de continuidade da atividade ou da forma de alienação a terceiros, de modo que, o mais provável seria a liquidação do conjunto especial de bens no juízo do inventário30.
Considerando todas essas diferenças, entende-se que a técnica de limitação de responsabilidade por meio de constituição de sociedade unipessoal se torna muito mais vantajosa para a pessoa natural que pretende exercer atividade econômica em relação à criação de patrimônio afetado31. Contudo, a EIRELI não se destina apenas para esse fim, como se demonstrará a seguir.
4 OUTRAS FINALIDADES DA EIRELI
Ainda que se reconheça que o principal intuito vislumbrado pelo legislador ao introduzir a EIRELI foi possibilitar, por meio da estrutura societária, a limitação de responsabilidade da pessoa natural empreendedora, não se pode negar que a redação final do caput do art. 980-A facultou a constituição dessa sociedade unipessoal também por pessoa jurídica, ainda que haja corrente doutrinária divergente32.
Isso se dá porque a redação final dada à norma expressa que a EIRELI “será constituída por uma única pessoa titular”, sem qualificá-la, dando margem tanto a instituição por pessoa natural, como jurídica, mesmo que não detenha natureza societária, como fundações e associações33.
Nesse ponto de vista, a empresa individual de responsabilidade limitada pode ser utilizada no bojo da organização de estruturas complexas, sendo instrumento para descentralização de atividades pela pessoa jurídica instituidora.
Contudo, destaca-se que essa instrumentalização pode, no aspecto subjetivo, ser ainda mais ampla do que no caso da subsidiária integral, considerando-se que esta última só poderia ser constituída por sociedade brasileira conforme o art. 251 da Lei 6.404/1976, enquanto a EIRELI pode ser criada por qualquer pessoa, sem restrição quanto ao tipo ou a sua nacionalidade.
Por fim, enfatiza-se que a EIRELI também pode ser usada como meio de se obter uma tributação significativamente menor34 para a pessoa natural que exerce atividade econômica simples, cuja a receita bruta anual não seja superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), ante o art. 3º da Lei Complementar 123, de 14.12.2006, com a redação dada pelo art. 1º da Lei Complementar 155, de 27.10.2016.
Em que pese o fato de o art. 2º da Lei Complementar 139, de 10.11.2011 ter modificado a Lei Complementar 123/2006 para incluir expressamente a EIRELI, entende-se que a esta figura, mesmo antes da menção explícita, já poderia se valer do regime especial, haja vista que o art. 3º do diploma de 2006, desde sua concepção original35, se referia às sociedades, sejam empresárias ou não.
Nesse ponto, cabe salientar, no entanto, que esse tratamento diferenciado não é extensível à empresa individual de responsabilidade limitada constituída por pessoa jurídica, uma vez que o art. 3º, § 4º, da Lei Complementar 123/2006 veda sua aplicação à sociedade de cujo capital participe outra entidade de direito privado.
Em contrapartida, frisa-se que a pessoa natural que desempenha uma empresa não necessita da formação de EIRELI para receber esses benefícios fiscais, haja vista que o caput do supramencionado dispositivo mencionada expressamente “o empresário a que se refere o art. 966 da Lei 10.406, de 10.01.2002”.
Dessa maneira, se constata, portanto, que a constituição da empresa individual de responsabilidade limitada para fins de obtenção do regime diferenciado da microempresa e da empresa de pequeno porte interessa sobretudo às pessoas naturais que desenvolvem atividades econômicas simples, as quais, sem a utilização da estrutura societária, não poderiam usufruir das vantagens previstas na Lei Complementar 123/2006.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, percebeu-se que o principal intuito vislumbrado pelo legislador ao introduzir a EIRELI foi possibilitar, por meio da estrutura societária, a limitação de responsabilidade da pessoa natural empreendedora, a qual, a princípio, não gozaria desse direito, consoante o art. 391 do Código Civil.
No entanto, restou demonstrado que a legislação em vigor, também oportuniza o uso da EIRELI como meio de se obter uma tributação significativamente menor para a pessoa física que exerce atividade econômica simples, cuja a receita bruta anual não seja superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), através do regime diferenciado da microempresa e da empresa de pequeno porte, fixado na Lei Complementar 123/2006.
Além disso, reconheceu-se que a composição escrita utilizada pelo legislador na redação do caput do art. 980-A da Codificação de Direito Privado permitiu a adoção de uma terceira funcionalidade ao instituto.
Isto porque, ao se empregar a expressão “constituída por uma única pessoa titular”, não sendo esta sócia definida expressamente como pessoal natural, propiciou a constituição de EIRELI por pessoa jurídica, de modo que a sociedade unipessoal passou a ser aproveitada na composição de estruturas econômicas sofisticadas, como ferramenta para descentralização de atividades por sua instituidora.