O espelho da sociedade, é dizer, o espaço de auto-observação da sociedade é a opinião pública, que se traduz nos meios de comunicação de massa.
(...) A opinião pública é construção complexa pela qual a sociedade representa a si própria e se vê como que num espelho. Se diante do espelho existir outro espelho, quem se olhar num deles verá infinitas imagens de si mesmo. Mas os olhos do espelho não veem nada.
Raffaele De Giorgi.
INTRODUÇÃO
As reflexões aqui desenvolvidas nos permitem reformular antigos problemas de observação do direito face a semântica da ordem social, relacionadas a orientação psicanalítica ou, mais vagamente sociológica, face algumas noções conceituais de Raffaele De Giorgi, em algumas de suas notáveis obras.
Cabe, no entanto, alertarmos que o objeto primário de nosso interesse não é o cérebro, mas os sistemas sociais, ou melhor, a sociedade.
A memória, por exemplo, é uma função que se desenvolve quando o organismo, ou melhor diz De Giorgi, o sistema observa seu “ modus operandi é continuamente definido e redefinido pelo modo de funcionamento do sistema e que, ao mesmo tempo, redefine este modo de funcionamento ”4. A memória é um fenômeno correlato que acompanha as operações do sistema.
A memória é uma função dos sistemas que temporiza as operações recursivas atemporais. Consequentemente, os sistemas que processam sentido também possuem uma memória.
Por meio da memória, o sistema é presente a si mesmo. Ela produz o tempo do sistema e esta é uma função que continuamente reproduz a diferenciação entre recordar e esquecer. A memória, assim como a evolução, está em toda parte. O direito, igualmente, possui uma memória.
Os eventos que considera juridicamente relevantes transformam-se em presente e, fragmentam-se, a cada momento em um antes e um depois5. O tempo é um dado fenomenológico, que possui alto teor de contingência que precisa ser controlado e interfere nas decisões.
1 O PODER DOS ESPELHOS
Ouvindo tais palavras recordamos de imediato, o conto de Alice no País das Maravilhas em seu jogo de espelhos e, divagamos...
1.1 O jogo do poder do espelho e no espelho social
O cérebro interpreta os dados fornecidos pela retina, o espelho não interpreta os objetos que reflete. O espelho é para Lacan um fenômeno limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico.
Entre os seis e oito meses a criança se defronta com a própria imagem refletida no espelho. Numa primeira fase confunde a imagem com a realidade, numa segunda fase percebe tratar-se de uma imagem, numa terceira compreende que a imagem refletida é a sua.
Nesse estado, a criança reconstrói os fragmentos ainda não unificados de seu corpo, mas o corpo é reconstruído como alguma coisa de externo. A experiência especular surge do imaginário. No momento em que se delineia a virada do eu especular para o eu social, o espelho é a encruzilhada estrutural, ou fenômeno limiar.
No plano perceptivo o homem habituou-se a inverter a imagem da retina e a interpretar corretamente, mas no plano conceitual ainda não consegue separar o fenômeno físico das ilusões que esta propicia. Assim, usamos a imagem especular de modo certo, mas falamos a seu respeito como se esta fizesse aquilo que, efetivamente, nós a obrigamos a fazer, ou seja, inverter-se.
O espelho, porém, não diz a verdade? Ou registra tudo que o atinge? Confiamos nos espelhos como nos óculos e binóculos. Os espelhos são como próteses, estendem a ação dos nossos órgãos.
Podem ter a função de aumento (como a lente), como de diminuição (como as pinças, que permitem estender o raio de preensão dos dedos, mas eliminam as sensações térmicas e táteis). Como próteses neutras, os espelhos são canais.
O canal é cada médium material que permite a passagem da informação. Podem existir canais de canais. Cada canal, em funcionamento, é sintoma de uma fonte emissora de sinais.
O espelho usado como sintoma nos diz alguma coisa sobre o próprio espelho e sobre o uso que dele se pode fazer, não sobre a imagem refletida nele. Há uma tentação contínua de me considerar um outro.
A imagem é casualmente produzida pelo objeto e não é possível produzi-la na ausência do objeto.
2 A OPINIÃO PÚBLICA
Neste artigo, O poder dos espelhos, inspirado em Raffaele De Giorgi trabalhamos com as noções de protestos ou movimentos sociais, risco e diferenciação.
Risco é, para ele, uma questão que interessa ao tempo, ou melhor, à temporalidade. Risco refere-se ao futuro, às possibilidades de construir o futuro. Mas, não só ele, também a confiança se dirige ao futuro e o direito desempenha uma função.
Para Luhmann, o risco é uma questão social que se caracteriza por seu aparato conceitual. A palavra neolatina risicum (risco) remonta, como consequência da invenção da imprensa, até o ano 1500.
A linguagem historicamente considerada na época, continha palavras para o perigo, a empresa aventurada, o azar, a fortuna, o valor, o medo, a aventura (como em “não vale arriscar a vida por sua religião”). Parece que o problema se coloca quando é possível alcançar algo, pois, quando se põe em jogo, se arrisca algo.
Já o cálculo de riscos trata, evidentemente, do oposto: de um programa de redução de riscos, de uma posição no curso do tempo. Todavia, isso não nos proporciona por si uma segura informação sobre o cálculo de probabilidades. O significado de securitas se transforma correspondentemente.
Se quer e se deseja seguridade, mas diante das condições atuais do mundo, nada podemos fazer a não ser nos aventurar e correr riscos. A transição da análise do risco determinístico à análise do risco probabilístico, corresponde a isso. Toda avaliação de risco é e se mantém como algo sujeito ao contexto.
Na sociedade moderna, cada sistema social constrói o mundo no seu interior. Trata-se de uma prestação arriscada porque acontece, simultaneamente, a outras prestações arriscadas ocultas entre si, uma vez que um sistema não controla a operação do outro.
Em sua notável metáfora dos espelhos, o autor compreende que o jogo de poder dos espelhos (e no espelho social) é complexo. Se de um lado me comporto como me encontrasse diante de um espelho plano, que diz a verdade, acho, porém, que me devolve uma imagem irreal. Se tomo a imagem como correta, ajudo o espelho a mentir.
Já o conceito de jogo, elaborado por Niklas Luhmann6, estabelece o aspecto de cálculo de um processo concebido ainda de forma causal, mas rico de alternativas. Esta técnica de questionamentos busca uma teoria do poder através de uma teoria da sociedade.
A sociedade é o sistema7 de referência última e fundante de tudo o que acontece. Ela constitui o horizonte de sentido para a experiência e ação humana. Como qualquer sistema, necessita de um limite interno para poder refletir sobre si mesmo. Não pode ser observada ou descrita externamente.
Do ponto de vista formal, a reflexão exige a perspectiva do diferente, o outro. Há destinatários da comunicação, além de espectadores: a opinião pública, em que se reflete o movimento e que deve ser tomada em conta em todas as suas reações.
Como ela é frágil, instável e mutável, a opinião pública, afirma Campilongo8, sempre se vê no presente. Constrói no presente o seu futuro.
2.1 A OPINIÃO PÚBLICA E O ESPELHO
No artigo, Democracia não tão democrática, publicado em 20.02.1997, no Jornal O Estado de São Paulo, Raffaele de Giorgio, explica ser possível entender a democracia como democracia, uma vez que a expansão do sistema político vincula-se à percepção política dos problemas, ou seja à transformação dos problemas em políticos.
Essa percepção, contudo, depende da sensibilidade da opinião pública, onde se vincula o consenso possível, bem como o possível dissenso.
O que ele denomina opinião pública não é nem a opinião dos indivíduos, de forma singular, nem a soma de suas opiniões, mas, sim, o resultado de suas diferenças.
A opinião pública não assume uma função de juiz como se acreditava anteriormente. Não garante, nem reproduz a unidade e sim, a diferença. O ato de diferenciar exige uma forma, uma fronteira e duas partes: interno/externo; sistema/ambiente. A diferença pressupõe o outro lado.
Essa é uma forma de reflexão que se observa pelos meios de comunicação de massa. Esses meios, por sua vez, constituem um sistema sensível à opinião pública que eles mesmo ajudam a produzir. Uma vez que os temas da opinião pública, ou seja, aquilo de que ela se ocupa, são variáveis, mudam continuamente, a opinião pública se torna por si só instável. Nesse ambiente instável, o sistema político deve buscar se estabilizar.
Nesse sentido, afirma Niklas Luhmann9:
(...) Sua função não consiste em tornar visível e impor fundamentos razoáveis de juízo, mas, de forma similar ao mercado, consiste em tornar possível a observação do observador. Independentemente do que os indivíduos pensem, a forma de protesto atua como um espelho onde o conflito pode se ver e confirmar-se em sua significatividade.
Intrinsecamente os meios massivos tem uma relação ambígua com temas como a tecnologia, a ecologia e o risco. (...) Sua característica mais notável é a velocidade.
Ora, o sistema só pode alcançar estabilidade contingente, ou seja, variável, mutável, porque também ele deve variar seus temas no sentido de produzir opinião pública. Se assim não fosse, esse sistema só poderia depender da opinião pública. É desse modo que também o sistema político se instabiliza por si só. Um paradoxo no paradoxo.
3 A COMUNICAÇÃO NA TEORIA DOS SISTEMAS
Luhmann apresenta uma teoria da sociedade baseada na comunicação, desenvolvendo, também, uma teoria da comunicação. Para o teórico, a sociedade é o espelho de sua organização comunicacional.
A comunicação como o núcleo chave da teoria de Luhmann é o que há de mais social, tornando, social tudo o que é comunicação. Tudo o que é social se origina e passa pela comunicação e toda e qualquer forma de comunicação é social. A comunicação é o elemento constituinte do sistema social. Aqui está a delimitação do objeto de estudo da sociologia para Luhmann. Os fenômenos sociais são comunicação.
A comunicação é social, necessitando de mais de uma pessoa para ocorrer. É também um evento passageiro e deixa sempre conexões que permitem a contínua autorreprodução no sistema.
Tudo que se pode comunicar é social. Em outras palavras, não se pode comunicar com as nuvens, com o mar, com o sol, portanto, estes elementos não fazem parte do sistema social, pois são entorno. Da mesma forma, não podemos nos comunicar com o nosso corpo, porque o corpo não é um fenômeno social, mas biológico.
Menos ainda, conseguimos nos comunicar com nossos pensamentos, com a nossa “psique”, pois ela não faz parte do sistema social. Nesta perspectiva, o homem não compõe o sistema social, portanto, os sistemas sociais estão compostos de comunicação.
Quando nos comunicamos uns com outros formamos um sistema por meio da comunicação. Este sistema não nos pertence da forma como pertencem nossos pensamentos. Em suma, a comunicação, que é o social, é distinta do pensamento, que é o individual, uma vez que o indivíduo é uma realidade distinta da sociedade.
O conceito de comunicação de Luhmann tem como ponto de partida a crítica ao conceito comum de comunicação, convencional. Neste conceito, a comunicação transmite notícias ou informações do emissor ao receptor. Maturana já havia criticado o conceito, pelo fato de utilizar a metáfora da transferência (transmissão). Maturana considera que a linguagem10 não pode fazer a transmissão de algo, pois ela é a “supercoordenação da coordenação de coordenação de organismos”11.
Para Luhmann, o conceito traz impropriedades, primeiro, porque o receptor não recebe nada que é transmitido pelo o emissor. O emissor nada dá e nada perde. Segundo, na ideia convencional, a transmissão parece como algo partilhado no processo de comunicação. Porém, na comunicação o que há é uma proposta de seleção, uma sugestão; enquanto não há retorno a esta sugestão não há processamento de estímulo.
A ideia convencional exagera na identidade, como se a informação enviada fosse a mesma recebida. O problema é que a identidade não é garantida, porque a qualidade do conteúdo não garante a identidade, mas sim o processo comunicacional. Outra questão é pertinente ao significado, o significado do conteúdo pode ser distinto para o receptor e para emissor.
Para Luhmann, a comunicação ocorre a partir de três seleções. Tais seleções não são isoladas, não constituindo comunicação a ocorrência de uma seleção de forma isolada. São elas: a) seleção da informação; b) seleção do ato de comunicar; c) a seleção realizada no ato de entender (ou não entender) a informação e o ato de comunicar.
A comunicação ocorre quando se compreende a diferença entre a informação e o ato de comunicar. Se não há esta distinção, o que ocorre é mera percepção, que está dentro da consciência, não podendo ser visível a consciência dos outros ou o sistema de comunicação.
Assim, Alter seleciona o que vai informar - seleção da informação -; seleciona o modo de expressar a informação e de dá-la a conhecer; e por fim Ego elege uma possibilidade, de compreender ou não o que Alter transmitiu (entender a informação).
A distinção feita por Ego da informação e da expressão é aquilo que se entende, o entendimento. Assim, “a síntese que torna possível a comunicação é o ato de entender.”12. A comunicação unitária ocorre quando acontece a terceira seleção, ou seja, a distinção entre informação e dá-la a conhecer, podendo Ego rechaçar ou aceitar a oferta contida na comunicação.
Desse modo, na comunicação, que se processa sempre na via da dupla contingência - de Ego para Alter e de Alter para Ego - , há sempre necessidade de participação de Alter e Ego. Entre eles, toda comunicação é apenas uma proposta, que pode ser aceita ou não.
A comunicação só se inicia e se põe em processo a partir do contingente, de tal modo que uma mensagem de A para B apareça como contingente e que, contingentemente, B possa recusá-la ou rechaçá-la ou contrapor. Sem essa possibilidade de recusa não pode haver comunicação.
Assim é porque, sublinha Luhmann, citando Gregory Bateson13, a informação é uma diferença que produz uma diferença. Dessa maneira, as relações de comunicação se baseiam mais na diferença e na novidade do que na identidade (“uma rosa é uma rosa, é uma rosa”), impondo-se o axioma da dupla contingência como de importância maior do que a causalidade nas relações de comunicação; é dizer, nas relações sociais.
Explica Luhmann que “(..) la comunicación es el proceso social elemental de la constitución de sentido en el contacto entre seres humanos, sin ella serían impensables tanto las personalidades como los sistemas sociales”14. “A comunicação é a união temporária de uma maioria de acontecimentos seletivos sob condicionamento mútuo”15.
O processo de comunicação pode ser uma reação a si mesmo, pode repetir o que foi dito, permite também uma complementação, revisão, contestação do discurso, pressupondo a não arbitrariedade16. O fato é que independente da decisão de Alter a comunicação fixa uma posição. Por atuar como uma limitação, ela exclui as arbitrariedades e amplia as possibilidades. A comunicação gera a liberdade de aceitar ou rechaçar.
Outra questão de relevo é a seleção de temas e de contribuições (aportes), principalmente realizada pelos meios de comunicação. Em um processo de comunicação há sempre a seleção de temas e de aportes, podendo até mesmos existir barreiras de tematização, como os temas de caráter obsceno, religiosos ou ligados a sentimentos.
A aceitação do tema é a condição prévia para que ocorram os aportes (contribuições) e assim, rechaços, podendo o tema ser modificado ou corrigido. A comunicação é dirigida por temas, mas não necessariamente por eles, sendo os temas uma das formas de redução de complexidade abertos pela linguagem.
Para Luhmann, a linguagem é a base em que se desenvolveram os meios de comunicação (escritura, impressa e telecomunicações). Estes meios selecionam, segundo sua própria técnica, criam suas formas de conservação. Essa evolução tornou mais fácil o êxito da comunicação, sendo a comunicação mais exitosa aquela realizada pelos meios de comunicação. Entretanto, as oportunidades de “formação de sistemas sociais são dirigidas para suas funções correspondentes”17. Os meios de comunicação atuam, deste modo, sobre a evolução sociocultural.
Segundo Luhmann, os meios de comunicação de massa têm como campos programáticos, a informação (notícias, reportagem); a publicidade; e o entretenimento. Tais programas se dão pelo código informação/não informação. Quando há um dar-a-conhecer (seleção da informação) volta automaticamente a não informação, pois a informação não pode se repetir. Isto obriga o sistema a oferecer algo novo a todo o momento18.
4 PODER COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO
Poder “é” uma comunicação orientada por um código. Niklas Luhmann
O poder é, “por natureza”, uma relação difusa e espalhada socialmente. No espelho tenho o poder de escolher o enquadramento. O objeto está ali, causando a imagem, até mesmo inicialmente, não a via.
O poder é um código binário (superior/não superior) do subsistema social da política (poder - não poder), e que torna provável a aceitação das ações de Alter19, como as premissas e vínculos para ações de ego.
O poder assim não é característica de alguém que o detenha e sim um meio de comunicação que permite a coordenação de seleções e a criação de uma expectativa. A forma de poder seria a diferença entre a execução da ordem e a alternativa de evitar20.
O código poder ocorre a partir da diferença entre superiores e inferiores, porém tal código não pode, por si mesmo, motivar a aceitação da comunicação. A aceitação da comunicação é feita mediante a distinção superiores/inferiores. Fora deste parâmetro a aceitação só poderia ocorrer com o uso da força física.
O Direito aparece como forma de uma codificação secundária, (lícito/não lícito) que vai permitir que ego aceite o poder não em razão de sua inferioridade, mas porque distingue o que é “poder legítimo”.
Entende-se por meio de comunicação um código de símbolos generalizados, que dirige a transmissão de resultados eletivos. Por generalização entende-se o processo de tornar comuns certas orientações significativas, para diferentes parceiros em diferentes situações, de tal modo que se permita a todos um sentido idêntico e a dedução de, ao menos, consequências semelhantes.
Complementarmente à linguagem, os meios de comunicação possuem uma função de motivação na seleção, colocando parceiros em interação. O poder gera sua capacidade de transmissão através da aptidão a influenciar a seleção de ações (ou omissões) diante de outras possibilidades. A função de um meio de comunicação está na transmissão de complexidade reduzida.
A complexidade reproduz-se mediante as escolhas feitas e que são levadas a efeito para controlá-las. Toda decisão abre espaço a outras decisões. Reduz os problemas, mas, aumenta outros problemas que antes não existiam. E com isso, aumenta o risco das decisões e o risco do consenso.
5 OPERAÇÕES SELETIVAS DO SISTEMA POLÍTICO E A OPINIÃO PÚBLICA
Diria Luhmann que a opinião pública tem caráter contraditório e de instabilidade, e tais características conduzem a sua função. A função da opinião pública não é impor a vontade popular ao sistema político, mas, a ordenação de operações seletivas que ocorrem nos sistemas sociais.
O conceito clássico de opinião pública levou à crença de que ela seria o “o espírito santo do sistema político” (Valdimer Orlando Key). Tal concepção foi desconstruída por Niklas Luhmann, que a definiu como a “contingência política substantivada - substantivo ao qual se confia a solução do problema da redução da discricionariedade do que é juridicamente e politicamente possível”21.
A romântica visão construída a partir do iluminismo de que nos debates públicos há aceitação mútua dos seres humanos, consenso e confiança, não é mais possível. A ausência de tais pressupostos retira qualquer possibilidade de que o tema da discussão do debate seja generalizado pela razão (opinião geral) e a estrutura da razão controle e altere a estrutura do poder. Conforme Luhmman:
A nossa tese é a de que o conceito de opinião pública relaciona este problema com um sector particular da experiência e do comportamento humanos, nomeadamente com a comunicação interpessoal, sobretudo a de tipo político. Se se considerar que a comunicação se deve produzir com um potencial mínimo de atenção consciente - e este é o ponto em que nos diferenciamos da autocompreensão e do conceito de razão do tempo do Iluminismo i -, torna-se evidente que tal comunicação tem de estabelecer pressupostos, tem de estar já na posse de temas possíveis. Aquilo que se designa por opinião pública parece residir no domínio desses temas da comunicação que, enquanto pressupostos, limitam a discricionariedade do que é politicamente possível.
No atual estágio da sociedade há uma diferenciação funcional e uma especialização dos subsistemas, o que leva a uma pressão geral de todos os subsistemas pela complexidade. Os sistemas são obrigados a se adaptarem aos acontecimentos e a outros sistemas.
A diferenciação presente na sociedade complexa conduz a “sobreprodução de correspondentes representações de desejos e de exigências normativas”. O resultado é uma pressão seletiva organizada e os sistemas se ajustam aos processos decisórios que não representam nenhuma vontade ou interesse geral.
A opinião pública é levada ao domínio da comunicação e se coloca em termos de temas de comunicação. Os temas são pressupostos que limitam a discricionariedade daquilo que é possível.
Os temas são plexos de sentidos que orientam a conversação para que possam existir opiniões iguais e diferentes. A comunicação possível se orienta pelo tema e pelas opiniões em torno dos temas, sendo a comunicação conduzida de forma interativa.
Assim, uma “diferenciação dos temas sobre os quais se discute só tem sentido se se pressupor que o receptor da comunicação é alguém que pode responder (...) exprimir outras opiniões (...) introduzindo, dessa forma, no domínio do que deva ser ordenado, a elevada complexidade de outras possibilidades”22.
Os temas políticos captam a atenção fazendo com que possa haver uma resposta do processo político, deixando aberta a questão referente às opiniões e às decisões, sendo ainda alterados em razão da necessidade. Os temas são levados ao patamar decisório por múltiplos fenômenos, surgindo oportunidades de ações que promovam os temas, reunindo forças para serem colocados em evidências.
Os grupos de pressão, os movimentos sociais investem com divulgação, recursos, contatos e tempo para que os temas sejam objeto de atenção e se mantenham na agenda. Em um estágio preliminar, os temas podem ser sepultados, censurados por outros grupos e não entram na agenda política.
Mas, se o tema entrar em evidência e conseguir popularidade assume o que Luhmann chama de estrutura do processo de comunicação23. Assim, o tema torna-se, nas palavras de Luhmann parte integrante da opinião pública, não podendo mais ser rejeitado, mas sim objeto de uma decisão, inclusão em programas, orçamentos e processos decisórios.
Aqui não há mais espaços para grandes projetos e ideais, os temas são selecionados pelo dissenso e pelo consenso, o sistema político opera em dupla contingência com as inúmeras irritações do seu entorno e a variabilidade, mutabilidade das opiniões públicas24.
Ao operar sob a dupla contingência, há um aumento de indiferença do sistema político em relação com o ambiente, ao mesmo tempo que aumenta a sua sensibilidade. Para Rafaelle Giorgi “tal mecanismo aumenta a autonomia da política e sua dependência em face das estruturas de sua seletividade”25.
Os temas ganham uma abstração que podem ser colocados e discutidos de acordo com cada sistema, tendo os temas, em razão da abstração, funções que integram e diferenciam, sendo os temas constituídos de uma forma independente do contexto de cada subsistema.
As operações dos sistemas são feitas de forma simultânea, sendo que a sociedade se conhece e se observa pelos meios de comunicação, e são eles que tornam visíveis a simultaneidade, em tais condições as escolhas são maiores que aquilo que é possível realizar, o que causa absurdo aumento de risco.
Nas palavras de Rafaelle de Giorgi há uma operação de modo cego, mas a cegueira seria a única possibilidade para visão e condição de operação. “Se houvesse transparência, as operações seriam impossíveis, não haveria decisão e o ambiente interno da sociedade não seria diferenciado. Assim, não existe sistema que governe a sociedade”26.
A opinião pública não pode ser simplesmente remetida para o sistema político, sendo que estrutura dos temas no processo de comunicação - opinião pública - é um mecanismo orientador do sistema político estabelecendo as “fronteiras daquilo que é possível”, em um dado momento.
A opinião pública não substitui o detentor do poder, não havendo relação causal, mas apenas de estrutural e processual, ordenando apenas as operações seletivas. A opinião pública é “a estrutura institucionalizadora de temas do processo social de comunicação, ela torna-se problemática num duplo sentido: não só no que respeita à produção de uma forte pressão da opinião sobre aqueles que decidem, mas também no que toca à capacidade da estrutura para produzir temas”. Mas, as atividades das políticas parecem estar sempre em cena diante do espelho da opinião pública27.
CONCLUSÃO
Com o tema do poder dos espelhos, unindo o disperso, a imagem, o espelho de dados imediatos, criou-se a ilusão do conhecimento, destinado a buscar o seu fundamento sempre numa razão exterior a si própria. Razão sempre inalcançável e fugidia que se desloca incessantemente, produzindo um desfiladeiro de espelhos refletindo-se.
No limite desse desfiladeiro, o poder encontrará sempre a justificá-lo, uma pseudo teoria, conjunto de imagens combinadas ao nível da pura abstração, ideologia da facção dominante - classe, grupo ou partido -que simplesmente condensa e dá uma certa unidade aos espelhismos originários.