1 INTRODUÇÃO
A Justiça Militar Federal Brasileira4, historicamente a mais antiga do país5, é um ramo especializado do Poder Judiciário6, tendo seus Órgãos e sua competência ratione legis - para “processar e julgar os crimes militares definidos em lei” - expressamente previstos nos arts. 122 a 124 da Constituição Federal de 1988. Sem embargo, vem buscando soluções de modernização por ainda enfrentar, hodiernamente, batalhas contra o desconhecimento sobre a necessidade de sua existência; e/ou a desconfiança sobre a (i)legitimidade de suas decisões, particularmente no que tange ao processamento de demandas envolvendo civis - não apenas na condição de acusados, mas também enquanto vítimas de crimes dolosos contra a vida cometido por militares federais no contexto de Operações Militares.
Buscando uma conciliação com agenda internacional de contenda pela exclusão de civis da jurisdição penal militar7, a Lei 13.774/20188 inovou na sistemática de Organização da Justiça Militar da União, carreando a submissão do civil - antes direcionada ao julgamento pelo Conselho Permanente de Justiça9 - para a atuação monocrática do, ora denominado, Juiz Federal da Justiça Militar. Contudo, persistem críticas em caso de concurso de agentes - civis e militares acusados no mesmo processo; da perda da condição de militar do acusado no curso do processo - dilema do “ex-militar”10; bem como sobre a formação do Órgão Julgador em segunda instância - Superior Tribunal Militar (STM) também de composição mista.
Por sua vez, em movimento aparentemente inverso, a redução de competência do Tribunal do Júri trazida pela Lei 13.491/201711, tende a causar repercussão social negativa, particularmente em situações de comoção como o “caso Guadalupe”12, ocorrido em 07.04.2019. Na oportunidade, militares do Exército Brasileiro, no exercício de função de natureza militar, alvejaram carro particular na Zona Norte do Rio de Janeiro/RJ, ocasionando a morte de dois civis.
À luz do cenário apresentado, indaga-se - sem perder de vista as especificidades axiológicas capazes de justificar e fundamentar a existência desse ramo especializado do Poder Judiciário - se as alterações citadas são suficientes para abrir caminho para o aprimoramento da Justiça Militar da União.
A finalidade da presente pesquisa é, portanto, refletir sobre o impacto das precitadas Leis 13.774/2018 e 13.491/2017, mormente sobre a temática do Juiz Natural na Justiça Militar Federal Brasileira e seus principais desafios para efetivar o acesso justo à justiça no processamento de demandas envolvendo civis. A metodologia eleita foi o método analítico-dedutivo, por meio de investigação de normas, jurisprudência e doutrina especializada, tendo como marcos teóricos relevantes a obra Direito e Razão, de Luigi Ferrajoli; bem como a distinção habermasiana entre aceitação obrigatória da ordem jurídica decorrente da positivação e sua pretensa aceitabilidade social (a ser) perquirida no plano da legitimidade.
2 O JUIZ NATURAL NA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E AS INOVAÇÕES DA LEI 13.774/2018 PARA O PROCESSAMENTO DE DEMANDAS ENVOLVENDO CIVIS
Como implicação da virada linguístico-pragmática e consequente revolução copernicana das posturas hermenêuticas, as decisões jurídicas - em sua nova e necessária relação racional com os valores morais e a justiça - aproximaram-se paulatinamente dos interesses da sociedade, restando mais afinadas à realidade histórico-social de seus destinatários na busca argumentativa pelo verossímil. Como ramo especializado, a Justiça Militar Brasileira naturalmente alinhou sua práxis aos esteios castrenses da hierarquia e da disciplina, elegendo as pré-compreensões do juiz militar não togado como fundamentais para a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal Militar - em essência as instituições e os deveres militares - e para o justo acesso à justiça:
Da Justiça espera-se que tenha estrutura e formação técnica e humana suficiente para a realizara justiça! Pois de nada adiantaria ao cidadão que lhe fossem franqueadas as portas abertas das Casas de Justiça, se estas não puderem atender adequadamente aos seus reclamos, não compreender a extensão de seus conflitos, se não puder vislumbrar, com experiência e conhecimento, a vastidão dos elementos que permeiam os seus dramas. (ARMANDO RIBEIRO, 2013, p. 84).
Contudo, ao analisar os pressupostos para processar e julgar na Justiça Militar da União, identifica-se que os precitados intérpretes nem sempre se conectam à vivência das partes interessadas, pois, regularmente delimitada no texto constitucional vigente, a competência ratione legis da Justiça Militar da União - associada classicamente a crimes militares e não a crimes praticados por militares13 - não se importa sobre quem seja o autor do delito, possibilitando, inclusive, o julgamento de civis14.
Aderindo de forma estrita aos mandamentos dos arts. 124 e 142 da Constituição Federal Brasileira, os crimes militares são os definidos no art. 9º do Código Penal Militar15 (CPM). Desse modo, conquanto não se apontem falhas concretas na dita demarcação competencial da Justiça Especializada em tela - e que sejam suficientes para eivá-la de vícios insanáveis - indaga-se, no cenário humanitário internacional, se essa não deveria ser restrita ao julgamento de crimes essencialmente militares; e se o julgamento de civis, em tempo de paz, não deveria ser encarado como exceção. A apreciação de mérito desses argumentos encontra-se pendente na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 28916, embora existam diversos precedentes, sobretudo em sede de Habeas Corpus (HC), nos quais o Supremo Tribunal Federal (STF) já entendeu pela incompetência da Justiça Castrense Federal para processar e julgar civis em tempos de paz, com relevante ressalva: caso a ação não tenha infligido as instituições militares. Reiteradamente, são suscitados nas razões de decidir os clássicos casos “Ex parte Milligan”17 - da Suprema Corte Norte-Americana (1866) - e o “Palamara Iribarne Vs. Chile”18 - da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Audiência realizada em 9.05.2005). Outrossim, versando sobre o plano do Direito Comparado, merece transcrição parcial a ementa da Medida Cautelar em Habeas Corpus 110.237 Pará - Rel. Min. Celso de Mello:
A Regulação do Tema Pertinente à Justiça Militar no Plano do Direito Comparado. Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples ) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g. (BRASIL, 2013a).
Paralelamente às indispensáveis salvaguardas penais, as prerrogativas processuais penais - com análoga monta - suscitam as (des)virtudes do modus operandi do sistema punitivo. Nessa conjuntura, destaca-se a construção do Juiz Natural como um dos motores legitimantes da aplicação justa do Direito ao caso concreto (FERRAJOLI, 2014). Não obstante, (re)leituras garantistas - similarmente e/ou por inversão - têm a potencialidade de obstaculizar o dever estatal de pacificação social:
no contexto do garantismo penal integral, a adaptação da clássica teoria garantista ao vigente Estado constitucional democrático de direito traz, como seu principal reflexo, a imposição de que a tutela penal venha a ser aplicada não só com vistas à proteção da liberdade individual, mas também como instrumento de resguardo de outras categorias de direitos fundamentais titulados pela coletividade, notadamente os direitos sociais e difusos envolvidos pela ordem econômico-social desenhada pela Constituição Federal. (MAGALHÃES, 2010, p. 185).
Destarte, a Lei 13.774/2018 - ao modificar a norma de Organização da Justiça Militar da União (BRASIL, 2018a) para submeter o civil ao julgamento monocrático pelo juiz togado - coaduna-se com congruente modelo garantista de Direito Penal e Processual Penal, apresentando proposta factível de alinhamento da Justiça Militar da União às demandas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sem encolher suas competências constitucionais:
Art. 30.Compete ao juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente:
I-B - processar e julgar civis nos casos previstos nosincs. I e III do art. 9º do Dec.-Lei 1.001, de 21.10.1969 (Código Penal Militar), e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo. (BRASIL, 2018a).
Explica-se: tratando especificamente do postulado do Juiz Natural na Justiça Militar da União, é possível extrair da Carta Magna - em seu art. 92, VI - que o escabinato incorpora o próprio conteúdo complexo do devido processo legal e, por conseguinte, garantia de acesso justo à justiça para combatentes federais. Nessa hipótese, a integridade do sistema é corroborada pela reconhecida capacidade do colegiado em assimilar o contexto fático e a perspectiva axiológica do que é levado ao seu conhecimento e análise. Nos dizeres de Alves-Marreiros (2020, p. 168): “o sentido de justiça busca aquilatar a gravidade das lesões do direito sob a ótica de uma classe”.
Entretanto, e para o civil que, de forma oposta, não reconhece julgadores militares como autoridades que partilham de suas experiências vitais? A nova ordem do julgamento monocrático de civis na Justiça Castrense Federal, sem perder de vista as especificidades capazes de justificar e fundamentar a existência desse ramo especializado do Poder Judiciário, teoricamente abre caminho para o aprimoramento da Justiça Militar da União. Trata-se de marco normativo para um moderno movimento de abertura/aproximação com a sociedade civil, identificado ainda, por uma simbólica atualização de “designação” do antigo Juiz Auditor para Juiz Federal da Justiça Militar. Se o cerne do debate não versa sobre a descriminalização dos crimes militares praticados por civis19, mas tão somente sobre competência jurisdicional, a problemática resta amenizada, lembrando que ajustes ainda precisam ser pensados para o caso de concurso de agentes; perda da condição de militar após o cometimento do delito; e/ou no que tange à esfera recursal20. De toda sorte, o argumento de Tribunal de Exceção não se sustenta:
No Brasil, a Justiça Militar da União tem previsão constitucional dentro do Poder Judiciário, assim sendo, qualquer pessoa a ela submetida será ouvida por juiz ou tribunal competente, estabelecido anteriormente, sendo independente e imparcial como parte do Poder Judiciário e será processada pelo Ministério Público Militar, composto por membros do Ministério Público da União, todos civis, vitalícios e com ingresso mediante concurso público de provas e títulos. (ALVES-MARREIROS; ROCHA; FREITAS, 2015, p. 75).
3 A NOVA REDAÇÃO DO ART. 9° DO CÓDIGO PENAL MILITAR VS. A COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI: REFLETINDO SOBRE A (I)LEGITIMIDADE DA LEI 13.491/2017
Desfocando do civil como acusado, lança-se agora um novo olhar tão importante quanto: o civil como vítima de um crime doloso contra a vida cometido por militares federais no contexto de Operações Militares21. Nos moldes da redação vigente do art. 9°, parágrafos primeiro e segundo, do Código Penal Militar:
§ 1 o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (Redação dada pela Lei 13.491, de 2017)
§ 2 o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:(Incluído pela Lei 13.491, de 2017)
I - do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;(Incluído pela Lei 13.491, de 2017)
II - de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou(Incluído pela Lei 13.491, de 2017)
III - de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:(Incluído pela Lei 13.491, de 2017)
a)Lei 7.565, de 19.12.1986- Código Brasileiro de Aeronáutica;(Incluída pela Lei 13.491, de 2017)
b)Lei Complementar 97, de 9.06.1999;(Incluída pela Lei 13.491, de 2017)
c)Dec.-Lei 1.002, de 21.10.1969- Código de Processo Penal Militar; e(Incluída pela Lei 13.491, de 2017)
d)Lei 4.737, de 15.07.1965- Código Eleitoral.(Incluída pela Lei 13.491, de 2017)(BRASIL, 2017, grifo nosso).
De inquestionável importância, a instituição do júri22 possui previsão constitucional e espírito democrático, destacando-se sua dupla face: direito e garantia fundamental. Interessante observar que o escabinato castrense parece tentar captar essa essência, buscando conjugar o conhecimento técnico-jurídico com “uma aproximação visceral com o mundo existencial do qual emergem os conflitos que será chamado a resolver”. (ARMANDO RIBEIRO, 2013, p. 85). A viabilidade da sua abertura “popular” - ou seja, a composição de Júri, mutatis mutandis, na estrutura da Justiça Militar da União - poderia ser trazida à baila como fonte de legitimação de suas novas competências.
Todavia, logo após o advento da Lei 13.491/2017, as críticas a uma suposta “militarização da sociedade” (DE LARA; ROCHA, 2020, p. 177) se avolumaram. O trágico episódio ocorrido, em 2019, no bairro de Guadalupe/Rio de Janeiro (RJ) apenas reacendeu a desavença, indicando uma certa sincronia entre a aprovação das mudanças no Código Penal Militar e um momento de maior reconhecimento, pelas autoridades competentes na área da segurança pública, da necessidade de emprego das Forças Armadas, mormente em operações de garantia da lei e da ordem. Repisa-se, essa destinação encontra-se expressa no art. 142 da Constituição Federal, não se tratando, portanto, de manobras de quaisquer governos específicos.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5901, protocolada em 26.02.2018, segue seu trâmite no Supremo Tribunal Federal com manifestação da Procuradoria-Geral da República23 pela declaração de inconstitucionalidade da norma. Os fundamentos também não são novos para aqueles que acompanham os dilemas de competência da Justiça Militar da União:
a gramática de direitos prevista na CF/88, bem com as obrigações internacionais de tratados de direitos humanos (natureza materialmente constitucional) impõem que a jurisdição penal militar tenha competência restrita ao julgamento de crimes envolvendo violação à hierarquia, disciplina militar ou outros valores tipicamente castrenses. O direito ao devido processo legal e a um julgamento justo por juiz competente, independente e imparcial, previstos na Constituição brasileira (art. 5º, LIV), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º), aliado ao princípio da proibição do retrocesso, exigem que seja mantida a competência atual do Tribunal do Júri para julgar militares (dos Estados membros ou das Forças Armadas) que cometerem crimes dolosos contra a vida de civis, mantendo-se a igualdade e o juiz natural para todos. (BRASIL, 2018b).
Paralelamente, em sede de controle difuso, propalam-se precedentes24 do reconhecimento incidental da “inconstitucionalidade; inconvencionalidade; e/ou não recepção” dos dispositivos do Código Penal Militar que imputam crimes militares a civis em tempos de paz e atribuem à Justiça Militar a competência para julgá-los nessas hipóteses. Perquirindo-se sobre a ratio essendi, despontam supostas violações ao arts 5º, LIII25 e § 2º, da Constituição Federal de 1988, e ao art. 8.1 do Pacto de São José da Costa Rica26.
Nessa senda, em 25.06.2019, a 2ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito n. 0039212-39.2012.4.02.510127 versando sobre o caso conhecido como “Providência”28, acordou em encaminhar os referidos autos ao Órgão Especial daquela Corte para apreciação de inconstitucionalidade da Lei 13.491/2017. Tudo sob o unânime argumento de que “a ampliação legislativa dos crimes militares para além dos interesses da Administração Militar traduz evidente ofensa aos princípios constitucionais da igualdade e do juiz natural”. Em 05.03.2020, o incidente de arguição de inconstitucionalidade29 foi rejeitado por não ter sido alcançada a maioria absoluta, nos termos do voto do Relator.
Com a devida vênia, e como suso comentado, entende-se que nenhum dos argumentos até então suscitados contra a extensão do rol dos delitos castrenses se sustentam para a realidade da Justiça Militar Brasileira: elencada pelo Poder Constituinte como Órgão do Poder Judiciário - tanto quanto a Justiça do Trabalho e/ou a Justiça Eleitoral, verbi gratia - e fundada, portanto, sob rígidos parâmetros constitucionais e legais para salvaguarda do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Conquanto, diante do contexto histórico-social apresentado, seria possível defender, particularmente perante a sociedade civil, que a Lei 13.491/2017 representa um avanço em termos de garantias processuais - uma busca por expertise; e não um uma espécie de foro especial privativo das Forças Armadas com vistas à leniência? Na tentativa de melhor investigar essa problemática, propõe-se o estudo do “caso Guadalupe”30.
Conforme consta nos autos da Ação Penal Militar 7000600-15.2019.7.01.0001 - em curso na 1ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar31 - na tarde do dia 7.04.2019, no bairro de Guadalupe, cidade do Rio de Janeiro/RJ, militares do Exército Brasileiro, durante serviço de patrulhamento32 e alegando perseguição a criminosos, dispararam arma de fogo contra veículo particular, ocasionando - indubitavelmente por erro - a morte de dois civis: o motorista do veículo e um nacional que se aproximou do local para prestar socorro à primeira vítima.
Em caráter imediato, dez agentes33 diretamente envolvidos na operação foram presos em flagrante delito34 lavrado por autoridade de Polícia Judiciária Militar - competência fixada nos moldes do art. 124 da Constituição Federal c/c art. 9°, § 2°, inc. II, do Código Penal Militar. No dia 10.04.2019, após realização de audiência de custódia, nove dos flagranteados tiveram sua prisão preventiva35 decretada por decisão monocrática de Juíza Federal Substituta da Justiça Militar. A inicial acusatória foi oferecida, em 10.05.2019, pelo Ministério Público Militar, sendo recebida em dia subsequente. Em 23.05.2019, levados à apreciação do Superior Tribunal Militar os requisitos do art. 255 do Código de Processo Penal Militar (BRASIL, 2019), a prisão preventiva dos nove militares foi revogada no bojo do Habeas Corpus7000375-25.2019.7.00.000036 , cuja sessão de julgamento foi transmitida online37, em formato aberto e em tempo real. O Processo segue seu movimento regular em primeira instância, já registrados no sistema de consulta processual - e-Proc JMU - um mil e quarenta e cinco (1.045) eventos entre os dias 11.05.2019 e 14.10.202038. Conforme informado pela Agência de Notícias do Superior Tribunal Militar, “neste momento, esta Ação Penal contra os 12 militares está se aproximando da fase final39”.
Da breve síntese acima, extraem-se importantes conclusões para o presente trabalho. Primeiramente, demonstra-se a semelhança procedimental inicial entre as ações criminais comuns e militares, com destaque para a celeridade; a rigidez e a transparência da Justiça Militar da União. Necessário abordar, outrossim, que os fatos ocorreram em situação de plena normalidade institucional, envolvendo a segurança de instituições militares - não se tratando de “militarização” de crimes contra os Direitos Humanos. Por derradeiro, faz-se mister ressaltar que todos os réus no “caso Guadalupe” são militares temporários, na sua maioria soldados oriundos, em regra, do mesmo contexto de vulnerabilidades das vítimas. Jovens que, no cumprimento de dever profissional, são instados a decidir como agir em situações críticas, de forma proporcional e compatível com diretrizes operacionais; regras de engajamento e/ou normas de conduta. “É evidente que, muitas vezes, o agente executor que atua com imediatidade ou urgência elege alternativas ou opções debilitadas de elementos para ações pautadas no Direito, ocasionando ações trágicas .” (SADDY, 2014, p. 280). Ainda nesse sentido:
Na apreciatividade, seu executor normalmente não tem tempo de refletir sobre seus juízos de valor, por isso, está influenciado por questões psicológicas, por pressões emocionais e discriminatórias, por grau de informação, por grau acadêmico e, também, por preconceitos. Ademais, o mais comum é que a eleição ou a decisão não seja reversível, inclusive se, a posteriori, sua opção seja declarada como ilegal. Não há como regressar ao status quo. (SADDY, 2014, p. 287-288).
Por essa ótica, processar e julgar militares no âmbito de uma justiça especializada não significaria endossar tolerância a excessos não escusáveis e/ou a condutas teratológicas. Mas estaria justificado pela expertise garantidora de um processo efetivo e justo. Em complemento, colaciona-se argumento pertinente à função preventiva da pena, diretamente atrelada à manutenção da hierarquia e da disciplina por força do exemplo:
Além dessas especificidades, ainda existe um outro fator: e de sabença que a maior parte do efetivo das Forças Armadas brasileiras é de militares temporários, sendo que grande parte desse efetivo presta apenas o serviço militar obrigatório, o que exige resposta rápida da justiça, por si só. (ALVES-MARREIROS, 2020, p. 167).
E com/em respeito à narrativa das vítimas e seus familiares que - enquanto civis - não se identifiquem com os mesmos valores e tradições da caserna? Interessados diretos na reprimenda punitiva estatal, que, em relação aos julgadores militares, tendem a não compartilhar de “um mesmo espectro de vivências, ações e sentidos historicamente partilhados, ou seja, de um mesmo “mundo da vida”, se quisermos usar a expressão habermasiana”. (ARMANDO RIBEIRO, 2013, p. 86). Nesse ponto específico, entende-se haver possibilidade de evolução, sem necessidade de descarte total dos aspectos positivos trazidos pela Lei 13.491/2017. Uma primeira alternativa seria, como já exposto, o estudo sobre a pertinência/viabilidade da instituição de uma espécie de Júri Popular na Justiça Militar40, a ser potencialmente composto por militares de carreira e civis reconhecidos como concidadãos. Outro caminho, que ora se indica, seria uma trilha para além da dogmática, baseada na persecução de conteúdo oculto e democrático ao postulado do Juiz Natural41: sua aceitabilidade social, destacando a ideia que “a aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os quais ela apóia a sua pretensão de legitimidade”. (HABERMAS, 1997, v. 1, p. 59). Essa legitimação poderia ser obtida principalmente por intermédio do combate ao desconhecimento sobre a Justiça Militar da União - seus fundamentos e organização - e de uma maior aproximação com a sociedade civil, incluindo-se como exemplos de pautas42: divulgação de audiências públicas; inserções na mídia; publicações acadêmicas; espaços para debates; e visitações nas escolas/universidades. Inclui-se também a perspectiva do operador do Direito, trazendo à luz a pertinência de oferta obrigatória de disciplinas afetas ao Direito Penal/Processual Penal Militar e à Organização da Justiça Castrense nos cursos de formação jurídica.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho refletiu, essencialmente, sobre o Juiz Natural na Justiça Militar Federal Brasileira, identificando os seus principais desafios, hodiernamente, para a efetivação do acesso justo à justiça no processamento e julgamento de demandas envolvendo civis.
Mostrou-se, outrossim, que a Justiça Militar da União ainda busca soluções de modernização para ser legitimamente respeitada como ramo especializado do Poder Judiciário - tanto no plano interno; quanto no cenário humanitário internacional.
Nesse sentido, passou-se a analisar duas relevantes inovações no ordenamento jurídico pátrio. Primeiramente, a trazida pela Lei 13.774/2018: que modifica a Lei de Organização da Justiça Militar da União, mormente no que tange ao julgamento monocrático de civis pelo juiz togado. Em sequência, pela Lei 13.491/2017 - que, entre outras modificações, acresce à Justiça Castrense competência para analisar demandas versando sobre crimes dolosos contra a vida de civis cometidos por militares da ativa no contexto de operações militares lato sensu.
Demonstrou-se, outrossim, que críticas versando sobre inconstitucionalidade; inconvencionalidade; e/ou não recepção por afronta a garantias e direitos fundamentais penais e processuais são descomedidas, sobretudo se passadas pelo filtro do garantismo integral.
Tratando dos crimes militares cometidos por civis, notou-se que os debates não versam propriamente sobre sua descriminalização, pautando-se apenas na questão da competência jurisdicional. Ponto esse que já foi habilmente solucionado pelo art. 30, I - B, da LOJMU - embora permaneçam censuras no que tange ao concurso de agentes; o dilema do “ex-militar”; e a composição da esfera recursal. Sobre a redução de competência do Tribunal do Júri, verificaram-se dois aspectos: para o militar enquanto réu, pode significar um avanço na busca por acesso justo à justiça, considerando a expertise da Justiça Castrense para tratar de ações trágicas e casos afetos aos pilares da hierarquia e da disciplina. Para os civis enquanto vítimas - e cabendo expandir para toda a sociedade - trata-se de debelar, pela via da abertura democrática, o desconhecimento (motivador de desconfiança) sobre uma justiça especializada que, tradicionalmente, tem validado seu compromisso em ser ágil, rígida e transparente.