1 INTRODUÇÃO
O princípio da dignidade humana se traduz como o mais valioso na ordem espiritual e material e em sede de sua positividade, seja à luz dos avanços hermenêuticos do direito e de sua ciência argumentativa, afasta de seu caráter formal positivo e legal que somente interpretava regras, presente na dogmática jurídica do século XIX, para aproximar-se de um Direito mais chegado e permeável à vida, consagrando formas democráticas do modelo participativo do Estado Democrático de Direito, com emprego e a concretização de políticas públicas de saúde voltadas ao bem-estar do cidadão.
A problemática do poder, a legitimação da autoridade estatal são considerações teóricas e históricas que perpassam sobre o princípio da dignidade da pessoa humana como limitador à ação do Estado e protetor dos direitos sociais, aqui incluído o direito à saúde, componente medular de mais alto valor jurídico na ordem constitucional vigente.
As políticas públicas, e dentre elas as de saúde, não continuam imunes ao sistema de produção regular, residual e replicador de riscos e ameaças, explícitos e sem ruídos. Este processo social impõe a todos os envolvidos, profissionais da saúde, sociedade civil, elaboradores de leis e executores de políticas o desafio de erguer pactos sociais considerando esse novo cenário da modernidade a qual estamos inseridos.
Ou seja, se a ciência progride, essa sociedade de risco se adapta na reflexividade, quer dizer, na revisão contínua desses novos dados cognitivos, em grande parte advindos dos aspectos da vida social que resultam em questionamentos entre o novo saber científico, os defeitos e os problemas que surgem dessa realidade. Se o debate advém do campo da ciência, em um dado momento ele provoca no movimento social o debate reivindicando uma reflexão ética que desemboca num cenário político e jurídico da judicialização da saúde com íntima vinculação entre a dignidade da pessoa humana e respeito aos direitos fundamentais, ainda que mínima, de efetivação por intermédio dos órgãos jurisdicionais.
O Sistema Único de Saúde (SUS) fora criado na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), advindo de um movimento social conhecido como Reforma Sanitária, que tinha por núcleo os princípios da igualdade, universalidade e integralidade. Em resumido contexto, aproxima-se da essência jurídica de que “todos os seres humanos são iguais”, sem menosprezar as peculiaridades das desigualdades havidas entre os homens (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990).
Desta forma, toma o Estado a construção voltada à satisfação dos direitos fundamentais, demandantes de uma atuação positiva, despido de falta de compromisso para com o ser humano. Enfim, desenvolve-se, num contexto crítico e emancipatório, o debate político da judicialização da saúde.
O direito à saúde, como um direito social contemplado na Constituição da República, desperta polêmicas quando se trata de bater às portas da Justiça para solucionar questões burocráticas atinentes à saúde, caracterizando o fenômeno social denominado de judicialização da saúde.
Assim sendo, inúmeros fatores contribuem para a judicialização da saúde, dentre eles a demanda ilimitada do cidadão e os recursos orçamentários limitados do Poder Público, e dentro desse assunto passamos a contextualizar a nossa pesquisa. O encadeamento metodológico desta pesquisa se deu a partir do tema central, judicialização da saúde no Brasil, com enfoque no Amazonas. O referencial teórico foi pesquisado em documentos governamentais, artigos publicados em periódicos especializados, textos acadêmicos etc e os dados secundários coletados em publicações nacionais, como também, dados disponibilizados pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE/AM).
Com relação aos dados coletados acerca da judicialização da saúde no Estado do Amazonas vale destacar a dificuldade enfrentada durante a pesquisa. O acesso digital não impõe maiores contratempos: os sites do Ministério da Saúde (MS), do Poder Judiciário, mais precisamente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e do Tribunal de Justiça do Amazonas preservam livre acesso quanto ao critério da transparência administrativa. O ponto nevrálgico é a forma como estão dispostos os números. Ora o ano de ocorrência do fato detém registros de dados genéricos, ora os dados são incompletos por quem alimenta o sistema, o que fora registrado no Item 4 da pesquisa. Interessante que o CNJ também pontua em seus Relatórios tais impasses.
A contenda foi dirimida com os dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas - DPE/AM, por meio do titular do Núcleo de Saúde, Dr. Arlindo Gonçalves, que colocou à disposição da pesquisa os dados coletados pela Defensoria Pública Especializada na Promoção e Defesa dos Direitos Relacionados à Saúde.
A importância da contribuição da DPE/AM com dados inéditos sobre a judicialização da saúde no Estado do Amazonas tem o condão de alçar o estudo a um patamar original, visto que as informações aqui colacionadas não constam sequer em arquivos e sites do CNJ nem do Poder Judiciário local.
Com os indicadores coletados a sistematização da pesquisa seguiu o curso natural do movimento histórico das questões sociojurídicas ressaltando a produção doutrinária e jurisprudencial sobre o princípio da reserva do possível e sua influência na judicialização da saúde (Itens 2 e 3) até a análise da produção do citado fenômeno com escrita, narrativa, contação de histórias e interpretação dos dados exibidos no Estado do Amazonas (Item 4).
2 PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL ANTE A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
O princípio da “reserva do possível”, da ciência das finanças, traduz a ideia de que a atuação estatal está condicionada a existência de recursos públicos disponíveis. Foi introduzida no ordenamento brasileiro através de decisões exaradas por Gilmar Ferreira Mendes em julgados do Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de estudos de decisões da Corte Constitucional da Alemanha.
O STF, nas questões judiciais atinentes aos direitos sociais, em especial o direito à saúde, tem se manifestado no sentido de que o Estado tem o dever de prover o mínimo para a sobrevivência do cidadão, uma vez que é revestido por razoabilidade da pretensão individual ou coletiva em consonância com a disponibilidade financeira do Estado para garantir recursos financeiros mínimos a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde, conforme dito na Arguição Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF N. 45, o STF ressalta seu papel como “instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas” quando “venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República” (BRASIL, 2004).
Por conseguinte, o Poder Público não pode se eximir das obrigações impostas pela Constituição e lei infraconstitucional. A cláusula da “reserva do possível” tem sua aplicação somente em decorrência de justificação plausível, aferida de maneira objetiva, devendo ser de pronto afastada quando a sua aplicação resultar em transgressão aos direitos constitucionais fundamentais, quais sejam os direitos econômicos, sociais e culturais, denominados e conhecidos como direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas. A conduta estatal, seja num facere (atuação positiva) ou non facere (atuação omissiva), pode configurar num grave comportamento político-jurídico, ofender direitos, haja vista sua atribuição de formular e de implementar políticas públicas de saúde.
Em outras palavras, a cláusula da reserva do possível é um reconhecimento de que serviços públicos não podem ser prestados sem recursos financeiros. Todavia, essa visão utilitarista não oportuniza a discricionariedade do ente estatal de deixar de prestar ações e serviços de saúde por contingência orçamentária, visto que a concretização de direitos sociais essenciais, inclusos no conceito de mínimo existencial, não pode ficar condicionada ao alvedrio da vontade do gestor público, podendo, inclusive, o Poder Judiciário atuar como órgão de controle judicial da atividade administrativa de políticas públicas.
Em suma, a teoria da reserva do possível não pode ser invocada como “como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias. Não se pode deixar de reconhecer que as limitações orçamentárias são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada” (BRASIL, 2014a).
A ausência de previsão orçamentária não é fator impeditivo para que o Estado adote outras medidas, obrigando-o a adotar providências administrativas, inclusive cuidar do orçamento para não alegar sua incapacidade econômico-financeira no presente ou em futuro próximo, afinal há evidente prognóstico constitucional de garantia de respeito à vida, à integridade física, aos princípios da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.
O critério discricionário do gestor público não se faz presente quando há risco de vulnerabilidade a direitos e garantias fundamentais caucionados pela Carta Maior. É poder-dever do chefe do Poder Executivo implementar, de forma concreta e eficaz, os valores prescritos no preâmbulo da CRFB/1988 como “supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos fundada na harmonia social”. Tanto assim que o STF em sede de RE-AgR 795.749 - 2ª Turma, e no ARE AgR 639.337, bem como o STJ no Acórdão do AgRg no REsp 1.107.511-RS, reconhecem a possibilidade de controle judicial em programas de políticas públicas (BRASIL, 2014b; BRASIL, 2011a). Vejamos:
2. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal. (BRASIL, 2013).
A cláusula da reserva do possível sob o âmbito da teoria dos custos dos direitos é evidente não ser possível invocá-la para legitimar o injusto inadimplemento, afirma o STF (BRASIL, 2013). No mesmo sentido, o STJ afirma que a razão se funda no fato de que a reserva do possível “não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar” (BRASIL, 2014b).
Utilizar como justificativa recursos orçamentários limitados, sobrepondo as prioridades estatuídas na CRFB/1988 e nas leis, ultrapassam e depreciam os “limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes.” (BRASIL, 2013).
Logo, se trata de efetivação dos direitos fundamentais como mandamento ao gestor público por força constitucional, o que refoge de juízo de valor discricionário por não depender, de forma única, de sua vontade política. Desta maneira, “a cláusula da ‘reserva do possível’ - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade” (BRASIL, 2004).
Nesse sentido, não traz surpresa “o fato de que a questão dos direitos sociais tenha sido deslocada, em grande parte, para as teorias da justiça, da argumentação jurídica e da análise econômica do direito”, como declara Gilmar Mendes (STF) em seu voto durante o julgamento do Recurso Extraordinário 566.471/RN3.
A citação acima sobre a teoria da justiça, de John Rawls (2002), se presta bem ao papel da importância da saúde e nossas convicções sobre conceitos que traçam o itinerário de uma sociedade justa, cuja argumentação se situa na confluência entre as correntes do utilitarismo e as teorias do contrato social, delineadas por Rosseau e Kant é necessário assimilar a extensão do que vem a ser justiça.
O sentimento de justiça quando se judicializa o direito à saúde, pode ser ilustrado em trecho precioso de Rawls quando afirma que “o estado de direito envolve também o princípio segundo o qual casos semelhantes devem receber tratamento semelhante. (...) A exigência de coerência vale naturalmente para a interpretação de todas as regras e para justificativas em todos os níveis. Fica, por fim, mais difícil formular os argumentos racionais para julgamentos discriminatórios, e a tentativa de fazê-lo torna-se menos convincente.” (RAWLS, 2002, p. 260) Transpondo essa proposição para a judicialização da saúde equivale apontar o conteúdo da política pública adotado pelo poder Executivo deve alcançar grande parte de usuários dos serviços de saúde pública, devendo ser revertida para o plural, abrangendo assim o maior número possível dos envolvidos.
Já a teoria da argumentação de Robert Alexy, a qual alude em seu voto Min. Gilmar Mendes4, tem por foco uma visão procedimental da Justiça: as decisões devem ser racionais como forma de justificar e fundamentar a aplicação dos princípios, regras e direitos pelo juiz. Em linhas gerais, a decisão judicial deve valorar os fatos e as normas (argumentação lógico-valorativa), buscando uma justificação racional e, simultaneamente, a prática do discurso jurídico. Essa argumentação lógica - primazia do direito positivo - , não significa que a moral esteja em papel secundário, uma vez que os casos difíceis, a exemplo das questões envolvendo saúde, não podem ser decididas unicamente à luz do direito positivo, pois entra em cena não só a moral como também a justiça, aplicando-se, em especial, ao âmbito dos direitos humanos e fundamentais.
A teoria da análise econômica do Direito, de Richard Posner, apresenta a relação entre o direito e da insuficiência da moral, estabelecendo que as decisões judiciais devem pautar-se com previsibilidade, levando em consideração a relação de custos e impactos econômicos, permitindo ao juiz visualizar os reflexos oriundos de mudanças que virão com sua decisão.
Por fim, o Min. Gilmar Mendes em seu voto5, invoca o princípio da justiciabilidade ou judiciariedade, afirmando “ser considerado no Brasil o terceiro princípio do Estado de Direito, inspirado no direito anglo-saxão” e traz à tona o conceito de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, cujo o foco central é “a sujeição de todos, inclusive das autoridades, aos mesmos juízes’, ou seja, por meio da ação judicial adequada, ‘todo aquele - pessoa física ou jurídica - cujo direito (fundamental ou não) houver sido violado, ou ameaçado de violação, pode obter a tutela do Poder Judiciário”6. Essa postura não extingue os conflitos do Judiciário, mas indica parâmetros estipulados em sua decisão proferida na sede da STA 175, posteriormente confirmada pelo Plenário do STF, que aqui listamos os critérios em apertada síntese:
(i) De forma geral, o tratamento fornecido pelo SUS deve ser privilegiado “em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente”7.
(ii) Caso o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada patologia deve “diferenciar (a) os tratamentos puramente experimentais dos (b) novos tratamentos ainda não testados pelo Sistema de Saúde brasileiro”8.
(iii) Tratamentos experimentais, sem comprovação científica de sua eficácia, “realizados por laboratórios ou centros médicos de ponta, consubstanciando-se em pesquisas clínicas. (...) o Estado não pode ser condenado a fornecê-los”9. Aqui vale um adendo sobre tratamentos experimentais que por ocasião da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ocorrida em 15.05.2014 na cidade de São Paulo10 foram aprovados diversos Enunciados dentre os quais o de n. 9, onde dispõe que “as ações que versem sobre medicamentos e tratamentos experimentais devem observar as normas emitidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), não se podendo impor aos entes federados provimento e custeio de medicamento e tratamentos experimentais”;
(iv) Com relação aos novos tratamentos, ou seja, ainda não incorporados pelo SUS ou com inexistência de Protocolo Clínico no SUS, não pode representar “violação ao princípio da integralidade do sistema, nem justificar a diferença entre as opções acessíveis aos usuários da rede pública e as disponíveis aos usuários da rede privada”11, logo tais casos, “a omissão administrativa no tratamento de determinada patologia poderá ser objeto de impugnação judicial, tanto por ações individuais como coletivas”12;
(v) Em quaisquer das hipóteses levadas à análise do poder Judiciário a cautela deve existir para que aja não só a adequada instrução das demandas de saúde, como também não ocorra a “produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto, impedindo que o julgador concilie a dimensão subjetiva (individual e coletiva) com a dimensão objetiva do direito à saúde(...)”13.
Doutra banda, em dias atuais, abril de 2020, o STF decidiu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo requeridos na Justiça quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, ou seja, não registrados na lista do SUS. Nesse julgado, RE 566.471-RN, foram suscitados aspectos relacionados às políticas públicas, direito à saúde, excesso de judicialização da saúde, foco principal abordado da pesquisa que vale a pena salientar. Senão veja-se:
(i) Fator orçamentário - o Min. Alexandre de Moraes ressaltou que “não há mágica orçamentária e não há nenhum país do mundo que garanta acesso a todos os medicamentos e tratamentos de forma generalizada”14. Destacou assim o núcleo central da Teoria da Reserva do Possível ao afirmar que “as decisões judiciais favoráveis a poucas pessoas, por mais importantes que sejam seus problemas, comprometem o orçamento total destinado a milhões de pessoas que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
(ii) O STF também não radicalizou a questão de bater às portas da Justiça. A decisão permitiu, em caráter excepcional, ser possível a concessão de medicamentos não registrados na lista da Anvisa, mas as ponderações foram no sentido de prestigiar “as garantias constitucionais (entre elas a concretização dos direitos fundamentais, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana), o limite do financeiramente possível aos entes federados, tendo em vistas restrições orçamentárias, o desrespeito às filas já existentes e o prejuízo a outros interesses idênticos”15.
Em resumo, sacramentado junto à Corte Maior o princípio da reserva do possível, indicando serem os recursos disponíveis limitados, as necessidades humanas ilimitadas, e que ao prestigiar uma única pessoa, o Judiciário prejudica outras, “pois o Estado está destinando os recursos previstos para fazer face às políticas universais de saúde ao cumprimento das decisões judiciais que determinam o fornecimento individualizado de medicamentos extremamente caros”16.
Desta feita, enfatiza-se ser a saúde um direito social - art. 6º -, não integrado ao rol de direitos fundamentais dispostos no art. 5º da CRFB/88, cuja característica, o gozo “depende da concessão particularizada do legislador infraconstitucional”17, não podendo ser “garantido pelo Poder Judiciário”18, ante a necessidade de se observar a cláusula da reserva do possível, ou melhor, a “reserva do orçamento, haja vista estar ao lado da saúde, também constam, como direitos sociais, a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”19.
Diante disso, o princípio da reserva do possível não fora oposto ao princípio do mínimo existencial, e sim conjugado a ele, afinal se preserva esse último, visto que o SUS é um sistema de todos e para todos e só então é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais políticas públicas se deve investir.
3 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL
A judicialização da saúde é um fenômeno que ocorre na convergência entre os sistemas de justiça e o de saúde. Para suprir determinada necessidade de saúde, o cidadão ingressa no sistema judiciário com seu pedido e se transformam em ordens judiciais, direcionadas aos gestores públicos de saúde para conceder tratamento terapêutico e/ou fornecimento de remédios, caso o litigante obtenha sucesso.
Como vimos, o Brasil legitimou o direito à saúde em 1988, por meio da CFRB com a concepção e estabelecimento do SUS. De tal modo, esse direito passa a ser garantido pelas normas constitucionais, fazendo com que o Judiciário admita a sua efetivação.
Consequentemente a esta previsão constitucional e universal, começaram a surgir os processos de judicialização voltados para área da saúde, visto que tanto a saúde quanto o direito são áreas bastante politizadas. Assim sendo, as instituições jurídicas e sanitárias têm sido testemunhas de tal característica, a qual influencia categoricamente as sociabilidades e a implantação de estratégias de reivindicação de direitos pelos atores sociais. O resultado desse processo é a intensificação do protagonismo do Judiciário na efetivação da saúde e uma presença cada vez mais constante desse Poder no cotidiano da gestão em saúde no Brasil (BRASIL, 2015).
Devido ao crescimento do número de ações judiciais relacionadas à assistência à saúde, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem conduzido e estimulado de maneira sistemática a atuação do Judiciário. Considerando os diversos elementos que diferenciam o direito à saúde dos demais direitos sociais, como a necessidade de celeridade das decisões, a relação direta com o direito à vida e a complexidade do que significa tratamento e prevenção, buscou estabelecer uma política judiciária para a saúde. (BRASIL, 2015).
Dessa forma, destacamos algumas ações do CNJ que apontam a condução desta política. Em 2009, após consulta através da Audiência Pública n. 04, onde foram ouvidas as opiniões de pessoas com expertise no Sistema Único de Saúde (SUS). Instituiu um Grupo de Trabalho (GT)20, com a finalidade de “elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas referentes às demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde” (BRASIL, 2009).
Assim, a partir da instituição deste GT iniciaram-se ações importantes, como por exemplo, a criação do Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde - Fórum da Saúde21 com o propósito de aprimorar os procedimentos, reforçar a efetividade dos processos judiciais e prevenir novos conflitos (BRASIL, 2010a)22. Atrelado a Resolução 107/2010, o CNJ demonstrou por meio de um relatório as demandas existentes nos Tribunais de Justiça estaduais e nos cinco Tribunais de Justiça federais, de acordo a quantidade de processos informados. Esse documento evidencia a existência, à época, de 240.980 processos no país, sendo que três estados não apresentaram nenhum processo (Amazonas, Paraíba e Pernambuco) (BRASIL, 2010b).
Outra ação importante do CNJ, foi a formação de Comitês Executivos no âmbito estadual23. Em sua página da internet, o CNJ disponibiliza, um link de consulta das ações dos Comitês Estaduais, no que se refere às demandas judiciais na área da saúde. No entanto, verificamos que só existem oito Comitês Executivos24 disponíveis para essa consulta.
Dando continuidade na condução da política judiciária para a saúde, o CNJ recomendou expressamente na Resolução 238/2016, a criação de Núcleos de Apoio Técnico Judiciário (NAT-JUS) a fim de darem suporte às decisões sobre o segmento da saúde.
Dessa maneira hoje, no Brasil, o judiciário possui órgãos de assessoria visando o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos na área da saúde.
3.1 Dificuldades de Acesso aos Dados
Notamos, que há dificuldade em obter dados acerca da saúde no Judiciário brasileiro e especialmente no Judiciário do Estado do Amazonas. Com exceção da Defensoria Pública do Estado do Amazonas - DPE/AM, que por intermédio do titular do Núcleo de Saúde, Dr. Arlindo Gonçalves, colocou à disposição o setor da Defensoria Pública Especializada na Promoção e Defesa dos Direitos Relacionados à Saúde, nos concedendo os dados que dispunham, para fins deste estudo.
Esta conjuntura também fora notada pelo CNJ mencionando que:
Em praticamente todos os tribunais, observa-se uma dificuldade de acesso aos dados processuais, tipos de ação, tempo de conclusão, etc. A 2ª instância e os tribunais superiores já estão mais avançados na disponibilização de dados, mas é preciso também apresentar os dados da 1ª instância aberta e diretamente. Atualmente, estes dados só são conhecidos por meio dos relatórios que as unidades jurisdicionais prestam ao CNJ, que compõem o Relatório Justiça em Números (BRASIL, 2015, p. 60).
Segundo o Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), o modo como se estruturam os dados dos repositórios de jurisprudência nos tribunais dificulta pesquisas cada vez mais frequentes na academia e entre operadores do Direito nas esferas pública e privada. Acrescentando haver conflito entre os princípios democráticos e de publicidade da organização pública e a prática de alguns tribunais de justiça de impedir ou dificultar o acesso às decisões judiciais por meio de captchas ou mesmo não as disponibilizar integralmente (BRASIL, 2019a).
Araújo (2018) relatou contratempo e demora na coleta de material, expressando a burocracia existente no judiciário, tendo inclusive, que modificar o escopo do seu trabalho. Essa dificuldade prejudica estudos sobre judicialização da saúde e consequentemente às análises referentes a essa temática.
Os números de processos judiciais relacionados à temática judicialização da saúde no âmbito dos Tribunais de Justiça apresentam inadequação “para a consulta e análise de dados em larga escala (big data)”25, indicando dificuldades de acesso às informações para subsidiar a elaboração de pesquisas. Os dados são, muitas vezes, inconsistentes em sua padronização, o que prejudica a compreensão e análise dos dados, cenário que causa obstáculos, mas não impossibilitou a presente pesquisa como veremos a seguir.
3.2 Dos Dados Sobre o Incremento da Judicialização da Saúde no Brasil
O estudo do INSPER demonstrou que o número de processos judiciais relacionados à saúde, no período de dez anos (2008 e 2017), apresentou um aumento de 130% na 1ª instância, 85% na 2ª instância (Tabela 1). Não são todos os processos que chegam a 2ª instância, mas a curva ascendente também nesse nível do Judiciário indica um movimento generalizado no país (BRASIL, 2019a).
Um total de 136.410 processos relacionados à saúde tramitavam no judiciário brasileiro em 2017, como demonstrado na Tabela 1.
Anos | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1ª instância26 | 41.453 | 32.103 | 26.753 | 26.502 | 39.590 | 49.374 | 50.136 | 63.853 | 61.910 | 95.752 |
2ª instância27 | 2.969 | 22.011 | 22.953 | 27.485 | 27.134 | 26.578 | 29.648 | 33.578 | 36.807 | 40.658 |
Total (1ª e 2ª) | 44.422 | 54.114 | 49.706 | 53.987 | 66.724 | 75.952 | 79.784 | 97.431 | 98.717 | 136.410 |
Fonte: Elaboração das autoras a partir dos dados do INSPER, 2019 (BRASIL, 2019a).
Esse mesmo estudo exibe a comparação dos resultados acima descritos com os do CNJ “Justiça em Números”, para o mesmo período (2008 a 2017), relatando que o crescimento do número total de processos judiciais na 1ª instância foi de 50% e na 2ª instância de 40%. O que demonstra uma demanda aproximadamente 300% maior para as questões voltadas à saúde na 1ª instância e um pouco mais de 100% na 2ª instância quando comparadas ao volume total de processos judiciais (BRASIL, 2019a)28. A Tabela 1 evidencia que com o passar dos anos o número de ações decididas em 1ª instância aumentou durante o período do estudo, demonstrando o amadurecimento do judiciário nas questões relacionadas à saúde.
Para além do quantitativo dos processos, o Gráfico 1, nos mostra na sequência que a maior demanda dos acórdãos dos processos de saúde em 2ª instância, nos Tribunais Regionais Federais (TRF), versa sobre medicamentos (69,1%). Corroborando com a revisão sistemática de Freitas et al., 2020, que aponta para as principais questões relacionadas a judicialização de saúde no Brasil, constatando que as mesmas estão voltadas, em sua maioria, para os medicamentos (69,5%).
Analisando os mesmos assuntos, vistos pelo prisma das regiões brasileiras (Quadro 1), observamos que a região Norte apresenta maior demanda na maioria dos assuntos, o que evidencia uma ineficiência maior na assistência à saúde quando comparada as demais regiões do país. Enquanto a região Centro-Oeste, apresentou a menor proporção de acórdãos na maioria dos assuntos. Com relação aos assuntos mais frequentes, fica claro a maior participação de medicamentos e órteses, próteses e meios auxiliares na maioria das regiões, exceto no Nordeste, onde a maior frequência foi nos leitos. O Quadro 1 aponta uma grande variabilidade regional, ainda assim, não podemos confirmar ao certo todas as diferenças pela falta de estudos e dados específicos para diversos estados.
Assunto | NORTE | NORDESTE | SUDESTE | SUL | CENTRO-OESTE |
---|---|---|---|---|---|
Consultas | 5,2% | 0,8% | 1,9% | 1,7% | 2,4% |
Erro Médico | 6,3% | 2,3% | 2,2% | 4,5% | 2,1% |
Exames | 67,9% | 40,7% | 56,6% | 59,9% | 33,5% |
Imunização | 0,4% | 1,7% | 1,2% | 1,6% | 0,6% |
Insumo ou Materiais | 31,0% | 23,4% | 42,0% | 20,6% | 14,9% |
Insumos | 0,1% | 0,0% | 0,0% | 0,1% | 0,2% |
Internação | 28,3% | 12,2% | 19,0% | 19,8% | 21,8% |
Leitos | 75,2% | 69,5% | 36,7% | 60,3% | 52,2% |
Medicamentos | 79,2% | 56,3% | 68,9% | 74,6% | 52,5% |
Procedimentos | 65,0% | 42,5% | 49,4% | 44,4% | 36,9% |
Órteses, Próteses e Meios Auxiliares | 69,6% | 45,1% | 66,5% | 63,4% | 38,3% |
Transplantes | 2,4% | 1,5% | 1,5% | 0,8% | 1,1% |
Vagas | 6,5% | 2,4% | 6,0% | 3,5% | 12,1% |
Fonte: Elaboração das autoras a partir dos dados do INSPER, 2019 (BRASIL, 2019a).
Um fator preocupante quando tratamos da judicialização da saúde está relacionado aos custos gerado pela mesma. De acordo com a pesquisa do INSPER, os custos governo federal aumentaram mais de 10 vezes entre 2010 e 2016, chegando à soma de R$1,3 bilhões. Consumindo a verba do SUS, dos programas de saúde, embora haja pouca clareza sobre os impactos desses gastos (BRASIL, 2019a).
Outra situação a ser considerada sobre o aumento do número de processos da saúde, é a dificuldade operacional de processar tantos pedidos judiciais, sem que haja pessoal e tempo hábil, junto às Secretarias de Saúde, para responder às demandas no prazo legal (BRASIL, 2019a).
A Confederação Nacional de Municípios, no estudo realizado em 2016, aborda um outro aspecto que coopera para o aumento das demandas judiciais da saúde, o subfinanciamento do SUS. Informando que esse problema é persistente e cada vez maior, levando a consequências graves que afetam diretamente o direito à saúde, principalmente, em Municípios de médio e pequeno porte (BRASIL, 2016a).
Isto posto, a judicialização dos processos de saúde no Brasil envolve uma série de aspectos relevantes, além de ter aumentado aceleradamente o seu volume nos últimos anos adicionando dificuldades a operacionalização do sistema público de saúde. Logo, precisamos considerar a importância do tema, estimulando mais estudos com o propósito de induzir a melhoria e mudança desse cenário.
4 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO AMAZONAS/MANAUS
Como visto anteriormente, o CNJ induziu em 201032 a formação de Comitês Executivos no âmbito estadual que, no Amazonas, foi criado em 201133. Porém, vale ressaltar, que o Comitê Executivo do Amazonas não está disponível para consulta no sítio eletrônico do CNJ. Assim como, na página da internet do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM)34, os dados e ações do referido Comitê Estadual, não estão disponíveis, encontrando-se apenas a sua composição35.
No contexto dos órgãos de assessoria instituídos no Amazonas, em 16.10.2018, por meio da Resolução 16/201836, foi estabelecido pelo TJAM o Núcleo de Apoio Técnico Judiciário (NAT-JUS). Esse Núcleo, dentre outras ações, tem o propósito de prestar assessoria aos magistrados da Justiça Estadual, com a finalidade de organizar e promover o atendimento das demandas desse setor, no âmbito do Estado do Amazonas, devido à complexidade das mesmas. O detalhamento sobre o funcionamento, responsabilidades e composição do NAT-JUS AM foram firmadas em 05.04.2018 através do Acordo de Cooperação Técnica n. 010/2018 - TJ entre o TJAM e o Governo do Estado do Amazonas por intermédio da Secretaria de Saúde do Amazonas (SUSAM) (AMAZONAS, 2018)37.
Dessarte, constatamos que no Amazonas foram constituídos os instrumentos de assessoramento necessários para auxiliar o judiciário na área da saúde conforme recomendado pelo CNJ. Apesar disso, as ações realizadas e os dados produzidos pelos respectivos órgãos não estão disponíveis para consulta e conhecimento público.
A pesquisa realizada pelo INSPER, 2019 sobre as demandas judiciais relacionadas à saúde, expôs que o TJAM não enviou as informações solicitadas38. Logo, não constam nessa publicação nacional nenhum dado referente ao Amazonas.
Sendo assim, devido a ausência de dados sobre a saúde, no site do TJAM, nos detivemos à análise das informações disponíveis nos Relatórios do CNJ “Justiça em Números” das últimas quatro publicações (2016 a 2019)39 - Tabela 2 e aos dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas - DPE/AM (Tabela 3).
A Tabela 2, demostra os dados do Estado do Amazonas, correspondentes ao TJAM, no período de 2015 a 2018 (anos-base), coletados nos Relatórios do CNJ “Justiça em Números”40 (BRASIL, 2016b; BRASIL, 2017; BRASIL, 2018; BRASIL, 2019d).
Assunto | Ano-base | |||||
2015 | 2016 | 2017 | 2018 | |||
“Tratamento médico-hospital” (Cód. 11885) | “Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou Unidade de Cuidados Intensivos” | 1º grau | 42 | 0 | 0 | 0 |
2º grau | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Juizado especial | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Turma Recursal | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Total casos novos - Cód. 11885 | 168 | 168 | 0 | 0 | 0 | |
“Tratamento médico-hospital” (Cód. 11883) | 1º grau | 42 | 0 | 0 | 0 | |
2º grau | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Juizado especial | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Turma Recursal | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Total casos novos - Cód. 11883 | 168 | 168 | 0 | 0 | 0 | |
“Tratamento médico-hospital e/ou fornecimento de medicamentos” (Cód. 10069) | 1º grau | 28 | 2 | 2 | 1 | |
2º grau | 36 | 19 | 22 | 5 | ||
Juizado especial | 42 | 0 | 0 | 0 | ||
Turma Recursal | 42 | 0 | 22 | 0 | ||
Total casos novos - Cód. 10069 | 221 | 148 | 21 | 46 | 6 |
Assunto | Ano-base | |||||||
2015 | 2016 | 2017 | 2018 | |||||
“Saúde” (Cód. 10064) | 1º grau | 6 | 0 | 29 | 28 | |||
2º grau | 39 | 65 | 93 | 110 | ||||
Juizado especial | 1 | 0 | 0 | 66 | ||||
Turma Recursal | 42 | 1 | 93 | 11 | ||||
Total casos novos - Cód. 10064 | 584 | 88 | 66 | 215 | 215 | |||
Total de casos novos por ano | 572 | 87 | 261 | 221 | ||||
Total de casos novos - 2015 a 2018 | 1.141 |
Fonte: Elaboração das autoras a partir dos dados do CNJ - Relatórios “Justiça em Números” (BRASIL 2016a; BRASIL, 2017; BRASIL, 2018; BRASIL, 2019d).
No Amazonas, no período de 2015 a 2018, foram impetrados e distribuídos 1.141 casos novos, relativos ao assunto “Saúde”44. O ano de maior volume de processos novos equivalentes à saúde foi 2015 (572 ações) e o de menor volume 2016 (87 ações). O código 10064 (“Saúde”), foi o mais pleiteado no TJAM com um total de 584 ações, sendo os maiores quantitativos nos anos de 2017 e 2018, ambos com 215 casos novos. De acordo com os dados divulgados pelo CNJ, para o TJAM, houve um declínio no total de casos novos comparando os anos estudados (2015 - 572 ações; 2018 - 221 ações). Evidenciando, que nos últimos quatro anos a procura pela judicialização da saúde pública, no Amazonas, através da justiça paga, apresentou um decréscimo de 71,2%.
Chama atenção das pesquisadoras, os números idênticos nas diversas instâncias do TJAM, tanto na justiça comum, como na justiça especial para os códigos - 11883 e 11885 em 2015 (Tabela 2).
No âmbito da justiça gratuita, no Amazonas, a Tabela 3 a seguir, demonstra os dados da DPE/AM45.
Assunto | 2018 | 2019 | 2020 | Total por Assunto |
---|---|---|---|---|
Medicamentos | 89 | 58 | 14 | 161 |
Exames | 89 | 126 | 41 | 256 |
Cirurgias | 62 | 67 | 10 | 139 |
Hemodiálises | 40 | 17 | 17 | 74 |
Outros | 78 | 105 | 10 | 193 |
Total por ano | 358 | 373 | 92 | 823 |
Fonte: Elaboração das autoras a partir dos dados do DPE/AM.
No tocante aos dados da DPE/AM, verificamos que no acumulado dos três anos foram ajuizados 823 processos relacionados à saúde. Os assuntos de maior demanda foram: “exames” (256 ações); seguido por “outros” (193 ações); “medicamentos” (161 ações); e posteriormente “cirurgias” (139 ações). Do mesmo modo, o Quadro 1 demonstrou para a região Norte, que os três assuntos de saúde mais procurados foram - leitos (75,2%), exames (67,9%) e procedimentos (65,0%), respectivamente. Evidenciando a ineficiência da assistência à saúde nessa região.
No Amazonas, a procura pela judicialização na justiça gratuita aumentou de 2018 (358 casos) para 2019 (373 casos). Os dados de 2020 indicam a tendência de o total desse ano ser maior do que dos anos anteriores, visto que até fevereiro exibe 92 casos, o que representa 25% do total de casos de 2019. Assim como, o crescimento da judicialização da saúde visto no Brasil.
Vale ressaltar que a DPE/AM informou que a grande maioria das ações foram ajuizadas em face do Estado do Amazonas, tendo em vista sua atribuição específica para serviços de média e alta complexidade e a maior facilidade de acesso por parte do assistido, muito embora a repartição interna de competências do SUS não seja oponível ao particular e não afaste a responsabilidade solidária dos entes. Além de entender que “a grande maioria das ações diz respeitos a procedimentos e produtos padronizados, que deveriam estar sendo disponibilizados pelo Estado (em sentido amplo) mas não o são. Procedimentos e materiais extra SUS, ou medicamentos não padronizados e de alto custo são a minoria, o que significa dizer que a dificuldade de acesso da população ao sistema de saúde diz respeito primordialmente a serviços e produtos a que o próprio Estado reconheceu como de fornecimento obrigatório, ao incorporá-los ao SUS”.
Com relação aos municípios47, as demandas concentram-se principalmente em Tratamento Fora de Domicílio - TDF Intermunicipal (ajuda de custo, auxílio a deslocamentos e etc) e em razão dos problemas relacionados ao Serviço de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Município de Manaus (MANAUSMED). Os TFD Intermunicipais evidenciam a carência da assistência à saúde nos municípios do interior do Amazonas, visto que a população do interior do estado precisa se deslocar para a capital - Manaus em busca de tratamento médico. Essa conjuntura, impacta diretamente no aumento dos gastos do estado.
Constatamos, que a demanda pela justiça gratuita no Amazonas, foi maior em 66,5% quando comparada a justiça paga nesse estado, no ano de 2018. Corroborando, com o estudo da Fiocruz, em andamento, “Judicialização da Política Pública de Saúde nos Municípios Brasileiros: um retrato nacional”, onde informa que nas regiões Sul e Sudeste, a maior parte das ações é movida por advogados privados, enquanto nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, se sobressaem os pedidos por meio de defensores públicos48.
É possível inferir, que a judicialização da saúde no Amazonas, representa uma parcela muito pequena 0,2% (2017) quando comparada ao total dos processos do país.
Contudo, essa representatividade baixa do Amazonas, vai de encontro com os resultados aferidos pelo INSPER, 2019 para a região Norte (Quadro 1), onde os mesmos apresentaram maior demanda na maioria dos assuntos de saúde dentre as regiões brasileiras.
Entretanto, não podemos apontar as razões do quantitativo baixo dos processos relativos à saúde no Amazonas. Não há elementos que comprovem se é pela falta de informações, dados e/ou subnotificações ou pela ausência de informações da população sobre a possibilidade de recorrer à justiça para pleitear os direitos relacionados à saúde.
Notamos que as ações judiciais atinentes ao tema saúde no Estado do Amazonas, possuem três vetores de demandas que vão de (i) disponibilização de exames de saúde; (ii) tratamento de doenças; e (iii) fornecimento de medicamentos. Em síntese, as razões da judicialização da saúde no Amazonas derivam de uma prestação de serviço precária pelo Poder Público, haja vista o cidadão amazonense buscar junto ao SUS produto/serviço que se encontra na esfera de seu fornecimento/atendimento obrigatório.
5 CONCLUSÃO
Alguns autores argumentam que a judicialização amplia o acesso ao SUS às populações mais pobres e desassistidas, outros afirmam que ela cria uma nova porta de entrada ao SUS, favorecendo os mais ricos e a indústria farmacêutica. Portanto, cabe ao judiciário através dos processos de saúde, contribuir para a melhoria e estruturação do sistema público de saúde, por meio da busca de práticas mais eficazes e efetivas. No entanto, vale ressaltar que é obrigação dos entes gestores da saúde, assegurar a assistência à saúde orientada pelos princípios norteadores do SUS.
Complementando esse raciocínio, as ações voltadas à saúde no Brasil são predominantemente individuais e não resultam em benefícios coletivos (FREITAS et al., 2020). Assim, há necessidade de se pensar em estratégias e soluções para modificar esse cenário, refletindo e avançando nesse debate para que a população seja beneficiada a partir dos resultados advindos das ações individuais. É imprescindível que as decisões judiciais gerem consequências positivas para o SUS. A justiça brasileira precisa ser resolutiva, eficaz, voltada para o bem comum e de forma menos onerosa.
Baseado em Asensi & Pinheiro, 2016 “a judicialização do direito à saúde tende a ser pensada sob o prisma da propositura de ações judiciais, mas existe uma série de estratégias extrajudiciais que podem ser desenvolvidas com a presença do Judiciário”.
Corroborando com esse pensamento Vilela et al. afirmam que somente o diálogo institucional, como forma de interlocução entre os poderes, permite uma relação construtiva entre o sistema de justiça e o sistema de saúde, de forma a vislumbrar a resposta judicial como um mecanismo de fortalecimento do sistema de saúde e não de desestruturação (BRASIL, 2019b). Schulze afirma ser possível a “desjudicialização”49 mesmo em meio a crise que assola o Brasil (BRASIL, 2019c).
Posto isto, é necessário refletir sobre quais arranjos podem ser desenvolvidos no Amazonas/Manaus induzindo a organização dos entes envolvidos no cumprimento das obrigações, a fim de evitar o aumento de ações judiciais referentes à saúde. É fundamental avaliar quais atores entre os órgãos de justiça e da saúde, podem ser chamados para contribuir no debate sobre esse tema, com o intuito de avançarmos no diálogo, e na construção da efetivação do direito à saúde no Estado. Posto que, a litigiosidade existe na medida em que o Poder Público falha no cumprimento de seu dever constitucional de prestar assistência médica gratuita, universal e integral à população.
Verificamos, que a judicialização da saúde no Amazonas representa uma parcela muito pequena (0,2%), quando comparada ao total de ações no Brasil (2017). Entretanto, não pudemos concluir o porquê desse quantitativo baixo no Amazonas. Não conseguimos coletar elementos suficientes que nos embasasse a responder essa questão. No entanto, a demanda ajuizada pelo DPE/AM evidenciou um aumento de 66,5% dos casos de saúde (2018 e 2019) e uma tendência a superar esse crescimento em 2020, tal qual o aumento da judicialização da saúde observado nos últimos anos no país.
A seu turno, a falta de informações sobre os processos referentes à saúde no TJAM dificultou o desfecho da análise do panorama do estado. Entretanto, podemos levantar as seguintes hipóteses - subnotificação dos casos, visto que é notória a precariedade da saúde pública no estado sendo, inclusive, amplamente noticiada recentemente em virtude da pandemia do COVID 19; outra suspeita seria o desconhecimento da população amazonense sobre a possibilidade de recorrer à justiça para pleitear os direitos relacionados à saúde.
Estamos de acordo que é preciso ampliar a disponibilidade dos dados para que se possa conhecer melhor, e com rigor científico, o Judiciário. Qualquer cidadão, professor, pesquisador, precisa ter acesso direto aos dados, preferencialmente online, para contribuir a partir de propostas concretas sobre a efetivação do direito à saúde (BRASIL, 2015).
Em suma, no âmbito da saúde no Amazonas, ratificamos o entendimento da DPE/AM afirmando que “a judicialização não deve ser vista como uma causa em si, que estaria resultando em problemas para o sistema de saúde, mas, ao contrário, como efeito, sendo sintomática da própria ineficiência estatal na prestação de tais serviços”. Reforçamos que tal fato demonstra a falta de vontade política do poder público com a saúde da população Amazonense.