INTRODUÇÃO
Ao termo “Sociedade” (societas civilis ou Koinomia) não se associa uma representação unívoca. Como um todo dotado de relações próprias, a sociedade contemporânea não se reduz às relações interindividuais. Na concepção greco-romana, se identificava com a polis (cidade-estado), onde havia muitos governantes, um grupo de homens ligados pelo direito e capacitados para gozar da res publica. Não havia qualquer concepção de sociedade como algo distinto dos seres reais, o que fez com que Aristóteles afirmasse que a polis dá a cada indivíduo além da vida privada, uma segunda vida sua bios politikos. Ao lado da diferença histórica esta distinção indivíduo e sociedade, se transforma na Idade Moderna em sociedade burguesa, compatibilizando-se de um lado com a política (civitas politica) e de outro com a civitas econômica. Conforme as teorias sociais do século XIX, a teoria da sociedade é, também, uma teoria da diferenciação social conforme subsistemas e, por outro lado, uma teoria da evolução sociocultural. O advento já no século XIX, das tendências do conservadorismo e do liberalismo, acarreta maior complexidade social, com diferenciações entre os diferentes subsistemas (político, econômico, ético, cultural), exigindo conceitos cada vez mais abstratos e operacionais. Pouco a pouco, o conceito de sociedade torna-se um conceito analítico, que exclui o indivíduo concreto, sendo apreendido por meio de conceitos como função, papel, ação social, processo, sistema, estrutura. A “Sociedade da Sociedade”, obra de Niklas Luhmann (1927-1998), será o nosso principal referencial a ser seguido.
Niklas Luhmann traz no final do século XX uma Teoria dos Sistemas de caráter universal que explora e analisa a sociedade e os seus institutos. Como novo paradigma, a Teoria dos Sistemas de Teoria dos Sistemas de Luhmann estabelece que a sociedade é constituída pela comunicação. Os processos comunicacionais permeiam tudo que há na sociedade, e o Direito, que também é constituído pela comunicação, passa a ser autopoiético, se autocriando a partir de fluxos comunicacionais. Os fluxos comunicacionais tornam o Direito dinâmico e aberto aos fluxos de seu entorno, porém a Teoria dos Sistemas estabelece aportes teóricos suficientes para que o Direito mantenha a sua autorreferencia.
Com a Teoria dos Sistemas de Luhmann, os caminhos para um Direito vivo estão abertos. Mas é com Teubner que a autorreferencia do Direito é melhor evidenciada pelos hiperciclos, que permitem um direito vivo que se autocria, ao mesmo tempo que se conserva. Que sistema legal poderia simbolizar melhor tal movimento? Tal teoria de caráter universal poderia ser aplicada ao common law? Essas são algumas das indagações que se pretende responder no curso deste trabalho.
O caminho empregado para a busca das respostas é a tópica. A tópica consiste em um modo de pensar problemas a partir deles e em sua direção. Juridicamente, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados com um caráter zetético ou problemático. Neste caminho, o problema é trazido para um conjunto de deduções previamente dados de forma a encontrar caminhos para as aporias postas3.
O propósito desta Introdução é, estabelecer os limites em que nos movemos, localizar o problema de que partimos e o alcance de “soluções: que desejamos apontar. Basicamente três problemas são apontados neste estudo: 1- O que significa afirmar ou negar a existência de um sistema jurídico? 2- Como é possível determinar se uma Lei pertence a um sistema jurídico? 3- Que espécie de estrutura e funções tem os sistemas jurídicos? Parte-se do pressuposto de que os sistemas sociais se formam via comunicação, e esta envolve sempre uma seleção de possibilidades que, como processo, determina reações. O tema será desenvolvido na primeira parte do artigo. Para tanto, a distinção entre macro e microfunções do Direito e da noção de sistema de Niklas Luhmann é esboçada na tentativa de demonstração.
Na segunda parte, abordaremos que o conhecimento do direito, como algo diferenciado dele, é uma conquista tardia da cultura humana. A distinção entre direito objeto e direito ciência exige uma abstração, desligando-se das relações concretas. Nas diferentes culturas costuma-se distinguir entre leis, costumes, moral, religião. Entre os gregos o vocábulo fronesis, uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar, ligava-se à palavra jurisprudência, uma virtude para sopesar e tomar decisões através da dialética. Numa sociedade como a romana, com suficiente diferenciação social, manifestou-se como um poder de argumentar e provar. Pouco a pouco surge o pensamento prudencial com suas regras, princípios, meios de interpretação, instrumentos de persuasão etc. A jurisprudência romana era a manifestação autoritária dos exemplos e feitos dos antepassados (fundação de Roma) e dos costumes daí derivados, uma confirmação do certo e do justo. Algumas distinções e semelhanças entre os sistemas jurídicos europeus na família dos direitos romanistas. Costumamos distinguir os Direitos romanistas, nos quais agrupamos a quase totalidade dos sistemas jurídicos da Europa, por considerável influência do Direito Romano sobre o seu desenvolvimento a partir do século XIII. Os autores chamam frequentemente a esta família de Direitos de família romano-germânica. Os anglo-saxões a denominam de Civil Law System. Já o Common Law nasce na Inglaterra, sobretudo por ação dos juízes itinerantes e dos Tribunais Reais na Baixa Idade Média (séculos XIII a XV). É um direito elaborado pelos juízes (judge made law), cuja fonte principal repousa no precedente. As estruturas e funções da Lei, no Direito Inglês são objeto principal de nossas indagações neste caminho investigativo. Um último capítulo traz aportes sobre o Hiperciclo do Direito e faz conjecturas sobre um Direito Comum. O Hiperciclo do Direito, partindo da Teoria de Sistema Autopoiético, tem o objeto o Direito não apenas pensado em determinadas culturas, mas sim, como um sistema que pode ser desvendado, sem a preocupação de responder aos paradoxos. Por fim, tecemos algumas Conclusões iniciais que não têm a intenção de abarcar a totalidade do tema proposto e anexamos as Referências Bibliográficas.
1 O CONCEITO DE SISTEMA, PRESSUPOSTOS DE SUA PROBLEMÁTICA
O problema não é novo, entretanto, a multiplicidade de concepções de sistema dificulta a sua abordagem. A palavra é grega: Systema, provinda de syn-istemi, significando o composto, o construído. É usada por Aristóteles em sua “Retórica”. A ela agregou-se o sentido específico de ordem, organização. Os romanos não conheceram nesse sentido o uso do termo, que surge mais tarde, através da teoria da música. Entra para a literatura teorética por meio da teologia. Somente a partir do século XVII é que o termo se generaliza e toma a configuração primária que ainda hoje permanece.
Pressupostos: 1 - Toda Lei pertence a um sistema jurídico (sistema inglês, alemão, romano, direito canônico4, ou outro); 2 - Quais são os critérios que definem a existência de um sistema jurídico? (distinguimos entre os sistemas jurídicos existentes e/ou aqueles que deixaram de existir, como o romano, ou jamais existiram como as Leis que Platão propôs para um Estado ideal); 3 - O problema da identidade e critérios de pertinência; 4 - O problema da estrutura (há uma estrutura comum a todos os sistemas jurídicos?). Existem padrões de relações entre as leis que pertencem ao mesmo sistema, padrões estes que estão presentes em todos os sistemas jurídicos ou que assinalam a diferença entre espécies importantes de sistemas? 5 - O problema do conteúdo.
Este ensaio se interessa principalmente pelo critério 4. Para entender o direito é preciso sabermos o que ele é, e definir “o que é uma Lei”. A teoria do sistema jurídico é prerrequisito para definição proposta.
1.1 Direito e Sistema
O direito é inicialmente uma “realidade” - a “realidade jurídica”: Estrutura (Struktur). A realidade coincide com o mundo espaço-temporal dos sentidos. Ela se identifica com tudo que existe, que é. Quando dizemos que o direito é real, estamos dizendo que ele vale. A sistemática jurídica, do ponto de vista formal envolve o direito sob o prisma de sua validade e relaciona-se com a unidade sistemática do direito.
A “realidade jurídica”, cuja estrutura é constituída da norma jurídica dá competência a alguma autoridade para positivá-la (ordem escalonada de competências). Trata-se, deste ângulo, o que Hans Kelsen chama de “sistema dinâmico” do Direito. (KELSEN, 1960:196). Nele, as normas constituem os elementos, o repertório do sistema. Cuida-se de uma relação hierárquica de normas de diferentes escalões, presidida pela regra segundo a qual uma norma vale em razão de outra que lhe é superior no escalão. Não devemos confundir a norma com o seu conteúdo que pode conter sentidos específicos e desiguais. No âmbito da “jurisprudência”, onde as significações normativas, por sua relação essencial com a matéria é específica, trata-se de um sistema plural e assimétrico.
O Direito é sua própria fonte, enquanto regula seu processo de permanente autoprodução. A norma jurídica só existe no sistema. O tratamento do Direito como uma ordem normativa, um sistema de normas, permite equacionar e diferenciar das demais ordens normativas como por exemplo a moral, apresentando-se como uma ordem coercitiva. Assim, o direito é normativo, institucionalizado e coercitivo, sendo a “lei” uma das espécies de norma, segundo as teorias analíticas contemporâneas dos sistemas jurídicos.
1.1.1 Fonte do Direito e Poder de Decidir
As fontes do direito são sempre estruturas normativas que implicam um poder de decidir, elegendo como obrigatória entre hipóteses legal e consuetudinária. São a Constituição e as leis de cada país que predeterminam os requisitos caracterizadores das diversas fontes do direito em razão de específicas conjunturas históricas. A Lei, fonte do direito por excelência nos ordenamentos jurídicos de tradição romanística, é devida a Justiniano e a edição do Corpus Iuris Civilis. Na verdade, havia no Direito Romano clássico, um trabalho combinado de doutrina e jurisdição dos pretores e jurisconsultos, que conferiam validade na solução dos casos à medida que os fatos iam surgindo.
Quando o vocábulo Lei é empregado nos referimos a todas as modalidades que compõem o processo legislativo no direito pátrio (emendas à Constituição, leis complementares, medidas provisórias, leis ordinárias, leis delegadas, decretos legislativos, resoluções). Nos demais processos com base no costume, na jurisdição, nos negócios, iguais exigências ocorrem.
1.1.2 Fontes e modelos jurídicos
O processo de instituição das normas jurídicas realça a validade e os problemas de sua significação, a eficácia ou possibilidade de aplicação das normas. A fonte do direito é formal, condiciona as estruturas do poder. Já a denominada fonte material refere-se à política do direito, fatores sociológicos, psicológicos, econômicos etc. Quem diz fonte do direito, diz fonte formal do direito. O que foi processado, formalizado, posto em uma lei, sentença, contrato, estabelecido por um costume (4 fontes do direito). A fonte legal é resultante do poder estatal de legislar, editando leis e corolários normativos; a consuetudinária é expressão do poder social inerente à vida coletiva; a jurisdicional vincula o poder judiciário expressando-se através de sentenças de vários graus e extensão, a negocial instaura vínculos reguladores do pactuado com outrem.
Fontes operam no quadro de validade traçado pela Constituição de cada país e nos limites permitidos pelos valores jurídicos transacionais universalmente reconhecidos como invariantes jurídico-axiológicas (como por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos). No sistema em que se aplica à Common Law, os usos e costumes estão consubstanciados na praxe parlamentar e nos estatutos.
Fontes produzem ou põem normas jurídicas entre as quais sobressaem os modelos jurídicos (REALE)5. Os modelos jurídicos surgem como prescrições (modelos prescritivos, em razão das fontes de que promanam). O conteúdo das fontes representa projeções destas no espaço e tempo sociais, no plano da eficácia ou do procedimento. O modelo é uma típica estrutura normativa, ou seja, uma expressão de dever ser.
Estrutura é definida por Miguel Real e como o “conjunto de elementos que entre si se correlacionam e implicam de modo a representar dado campo unitário de significações”. Há então uma pluralidade de elementos que se complementam e se completam unitariamente, uma unidade orgânica. Toda estrutura social é uma unitas ordinis, uma unidade pluridimensional ordenada de natureza intersubjetiva e dinâmica:
a) Unidade esta, historicamente integrada;
b) Unidade polarizada;
c) Unidade vetorial e tensional de sentido;
d) Unidade funcional- elemento essencial de comunicação, inseparável de seus instrumentos linguísticos e simbólicos;
e) Unidade situacional- correlacionável com outras estruturas atuantes no mesmo contexto histórico, dando lugar à formação de estruturas englobantes, sem prejuízo das funções próprias e imanentes.
Uma estrutura adquire a qualidade de modelo quando, além de representar um complexo de significações se converte em razão de ser, ou ponto de partida para juízos futuros.
A doutrina não gera modelos jurídicos que são sempre prescritivos. Ela gera modelos hermenêuticos ou dogmáticos. A “lei”, por exemplo, foi anteriormente definida por J. Austin6 como “um comando geral de um soberano dirigido aos seus súditos”. Portanto, um sistema jurídico existe, nesse modelo, se ele é eficaz. A soberania não é derivada da moral, baseia-se exclusivamente no fato social do hábito da obediência, fundamento este que fora construído por J. Bentham7.
O conceito de modelo nos põe perante um momento autônomo na vida do direito, quando a experiência jurídica se expande ou se projeta em formas objetivadas ou positivas, consubstanciando-se em esquemas ou estruturas racionais.
A gênese dos modelos jurídicos serve de mediação entre a Ciência do Direito e a Ciência Política e tem por função a análise de todos os elementos e fatores que justificam e legitimam a conversão em lei de certas pretensões jurídicas. A decisão do poder- proposta de lei - revelam uma composição de valores e interesses em jogo. Despersonaliza-se progressivamente o poder.
O sistema jurídico é um sistema coercitivo institucionalizado, que regula o monopólio da força estatal. O sistema jurídico é fechado ao mundo circundante, na medida em que sua estrutura exclui variáveis no seu interior.
1.1.3 Ciência do direito e teoria da comunicação
A colocação da experiência jurídica em termos de modelos dá relevo aos problemas de semântica jurídica e correlaciona a Ciência do Direito, com a Teoria da Comunicação. As funções desempenhadas pela linguagem do Direito podem ser divididas em pragmáticas, semânticas e sintáticas, sendo objeto da semiótica jurídica, como observa George Kalinowski8. Pondera o autor que, dentre as funções pragmáticas, as mais importantes são as de expressão (linguagem do jurista) e as de comunicação9 (linguagem da Ciência do Direito). Na realidade a expressão não é senão um elemento da comunicação, um aspecto implicando o outro. No entanto, a Dogmática Jurídica propõe assuntos a serem debatido no âmbito da Teoria da Comunicação ou da Cibernética. Onde há intersubjetividade, há comunicação.
Comunicação é aqui entendida como intercâmbio de mensagens no sentido de que ela ocorre quando a seletividade de uma mensagem é compreendida, isto é, pode ser usada para a seleção de uma outra relação sistêmica. Isto implica: a) noção de complexidade; b) noção de seletividade; c) noção de contingência de ambos os lados, ou dupla contingência ou possibilidades de rejeição de ofertas de seleção comunicadas. A comunicação da rejeição e tematização da rejeição, nos sistemas sociais é conflito. Logo, todo sistema social ser potencialmente conflitivo10. O que possibilita o aparecimento de códigos que se sobrepõem ao código linguístico. Um desses códigos é historicamente, a escrita, capaz de aumentar o potencial social. Por meio de comunicação temos uma série de símbolos gerais codificados que permitem e regulam a transmissão de performances seletivas.
A norma permite uma performance seletiva: é ela que permite comunicar. Ela reduz complexidade, instrumentaliza uma vontade por ela produzida. O que quer dizer, que os símbolos dessa conexão seleção/ motivação assumem a função de uma intermediação, fortalecendo e motivando a própria seletividade. O que significa que, para qualquer meio de comunicação: poder, Direito, dinheiro, amor existe a função de regular os processos de seleção na sua seletividade. A diferença eventual entre esses meios não está no conteúdo da função, mas no modo como atuam. Daí os códigos simbolicamente generalizados. E a generalização e neutralização de sentido: generalização absorve insegurança, gerando expectativas comuns e comportamentos correspondentes11.
Costuma-se dizer que a Lei é obra do legislador, dando-se ênfase ao ato decisório, mas, na realidade, todo modelo legal envolve uma série de fatores, uns estudados pela Política do Direito, enquanto indaga, por exemplo, do significado da opinião pública, dos efeitos dos grupos de pressão, ou expõe a técnica de legislar, o que demonstra a constituição dos modelos jurídicos, que valem em função do “não jurídico”12. A própria sociedade, na medida que o sistema se diferencia como tal, constitui ao lado das normas, regras para a sua manipulação. Os conceitos, as teorias, os conhecimentos não são o sistema do direito, mas guiam o sistema. Sistema este que se encontra diante de um futuro que, em relação ao presente, está aberto.
1.1.4 Niklas luhmann e a teoria dos sistemas autopoiéticos
Também o sistema normativo na teoria da comunicação de Niklas Luhmann é um sistema dedutivo de enunciados, que requerem em suas consequências lógicas ao menos uma norma. Para Luhmann a diferença sistema e ambiente é fundamental. Correspondentemente, o conceito de função se refere à relação entre sistema e ambiente. Tal diferença é introduzida no sistema, servindo-lhe de estrutura orientadora no tratamento de seu desnível de complexidade com o ambiente (sistemas funcionais operacionalmente autônomos no interior da sociedade como sistema social mais abrangente).
O conceito de autopoiese foi recepcionado por Luhmann nas ciências sociais, mas tem sua origem na teoria biológica de Maturana e Varela, cujo vocábulo deriva do grego autós (por si próprio) e poiesis (criação, poesia, produção). Sistemas que se autoproduzem. No caso de sistemas constituintes de sentido a auto-observação é componente da reprodução autopoiética, enquanto se refere simultaneamente a si mesmo e a seu ambiente. Três são seus momentos interdependentes: autorreferência elementar, reflexividade e reflexão. A reflexividade diz respeito à referência de um processo a si mesmo (a decisão sobre a tomada de decisão, a normatização da normatização, p. ex.); e a reflexão, que pressupõe os dois elementos anteriores, significa a elaboração conceitual do sistema em oposição ao seu ambiente13.
Teubner propõe um conceito mais abrangente de autopoiese, definindo-a como “enlace hipercíclico”, envolvendo o momento estrutural14. Com o hiperciclo e a autorreferência o fechamento do sistema torna-se a possibilidade de sua abertura por meio de ciclos que se sucedem em forma de espiral. Como explica Araujo15: “a clausura autorreferencial do Direito é possível quando os complexos processos internos conduzem de forma hipercíclica à reprodução de suas condições originárias de produção, o que torna o Direito diferenciado e independente do seu entorno”.
1.1.5 Sistema e complexidade: macrossistema e microssistema
A teoria dos sistemas não pode ser compreendida sem que esteja associada à complexidade. Dois paradigmas são fundantes da teoria dos sistemas autopoiéticos: comunicação e complexidade. Ao discorrer sobre a complexidade, Niklas Luhmann orienta a problemática com base a diferenciação entre elementos e relação. Como premissa, Luhmann estabeleceu que aquilo que atua como elemento não pode ser determinado independentemente do conceito de sistema.
Ao tomar como base a diferença conceitual entre elemento e relação, verifica-se que com o aumento do número de elementos ocorre a impossibilidade de relacionamento entre elementos. Dito em outras palavras, ao aumentar o número de elementos no interior do sistema, surge uma limitação relacional entre os elementos.
A complexidade é evidenciada por dois fenômenos: uma quantidade de múltiplos elementos e as “restrições imanentes à capacidade de conexão de elementos”. A capacidade de conexão dos elementos é limitada, forçando os elementos atuarem como unidade para níveis mais e menos elevados da formação sistêmica.
A complexidade se reproduz como realidade inevitável em todos os níveis de formação sistêmica. Neste sentido, há uma pressão seletiva que significa contingência e mais contingência (risco). A seleção posiciona e qualifica os elementos condicionando as relações, embora possa ser possíveis outras relações, explicando o substrato de unidades semelhantes16. A cada nível surge um sistema, ou melhor especificando, macrossistemas, composto de sistemas de níveis inferiores, os microssistemas.
Há uma multiplicidade de sistemas diferenciados funcionais na sociedade contemporânea que operam de forma autorreferente de acordo com suas referidas racionalidades, sendo os processos de diferenciações em redes comunicacionais que potencializam os macrossistemas e os microssistemas. Para as irritações e incidências entre os sistemas funcionais diferenciados é necessária uma espécie de “tradução” de seus sinais relativos aos respectivos códigos internos de outros sistemas. Com isto, evidencia-se as coordenações mútuas entre sistemas funcionais, fazendo com que as diferenciações não possam ser expressas em uma unidade centralizada, nem tão pouco em uma formação hierarquia entre sistemas.
Em Edgar Morim, os sistemas possuem caráter polissistêmico, implicando-se e imbricando-se uns nos outros, como uma complexidade de base. Porém, não há preferência quanto à complexidade do macrossistema sobre o microssistema. Existe apenas uma diferenciação entre os macros e micros sistemas, um átomo, por exemplo, é uma organização mais complexa do que uma molécula17.
A complexidade do Direito implica em considerar não apenas o lícito, mas também o ilícito e ainda perceber que a complexidade pode ser estruturada e desestruturada. Este último, é o caso do “arbítrio e da igualdade de todas as possibilidades”18. Na complexidade estruturada, as possibilidades se excluem ou se limitam reciprocamente; com a “ativação de uma determinada possibilidade se bloqueia a outra, mas permite, por outro lado, a construção de novas possibilidades que a pressupõem”. Quando se constitui um Estado de Direito se bloqueia outras possibilidades, mas, ao mesmo tempo, se abrem mais uma infinidade de possibilidades.
As relações entre elementos no âmbito do Direito possibilitam vários níveis de sistemas (macro e microssistemas). O direito pode, por exemplo, ser compreendido como um macrossistema altamente complexo, estruturado sendo os seus processos decisórios podem ser estudados como microssistemas que operam dentro da lógica estruturada do direito, criando possibilidade de uma autorreprodução19. Os atos decisórios como forma de seleção do sistema jurídico são microssistemas replicantes reafirmando a validade do sistema.
1.2 Da estrutura à função
Celso Lafer, em apresentação à edição brasileira da obra de Norberto Bobbio (BOBBIO, “Dalla struttura ala funzione: nuovi studi di teoria del diritto”, 2007), evidência que “a análise estrutural do direito como um sistema, a partir do ângulo interno ao jurídico é feita sem maior elaboração sobre as suas funções em relação aos destinatários das normas”. A constatação de que a função do direito deixou de ser exclusivamente protetiva-repressiva, mas cada vez mais promocional e de direcionamento social é salientada por Bobbio. Isso, não anula a validade da análise estrutural tal como foi elaborada por Kelsen. Acentua, em verdade, que o estudo do direito comparado revela que o direito no seu ambiente social sofre influências recíprocas de alcance entre direito e ambiente, com premissas econômicas, sociais, históricas, morais, políticas, religiosas. As reflexões seguintes sobre o direito comparado se entrelaçam com as reflexões sobre a natureza e a função da interpretação.
“As normas são postas em relação às exigências da vida consociada e não como desenvolvimento lógico de ações preestabelecidas, a sua explicação reencontra-se no terreno da história, e não da harmonia lógica” (ASCARELLI, 1955)20.
2 SISTEMA LEGAL NA INGLATERRA
Tendo como referência a obra de Martin Partington, em tradução livre dos mestrandos da PUC-SP, assinala-se que o capítulo I de sua obra: Introdução ao Sistema Legal Inglês- “Introduction to the English Legal System” (PARTINGTON, 2010: 2-3), anuncia primeiramente que o tema versa sobre o sistema legal inglês, incluindo muitas das propostas do sistema legal de Gales, consistindo em importante fator externo para o direito e instituições da União Europeia e Conselho da Europa. Muito do que é estudado hoje na Inglaterra vem de outros países de common law, em particular aqueles onde os juízes têm o poder de fazerem as leis (direito); outros vem de países que adotam a civil law, cujo sistema legal funda-se em normas, princípios do direito e sua codificação remonta ao Direito Romano. Os temas, diferentemente de outros trazem algumas características: primeiro muitas decisões no sistema legal inglês provêm de “práticas orientadas” por advogados que as praticam. O livro, porém, visa uma abordagem holística em funções e atividades frequentemente ignoradas. Segundo o autor o sistema inglês é dinâmico. Terceiro, o sistema legal inglês difere do sistema Britânico de governo, ou seja, a prática é independente do governo.
“Direito, Sociedade e Autoridade - Parte I” - considera quais as funções do direito e em qual sociedade estão ordenadas e indaga pelas fontes de autoridade que tem o poder de editar as normas. Em sentido institucional, para compreensão das funções sociais do direito, faz-se uma distinção importante entre macro e micro funções do direito.
A grande maioria das novas leis que são efetivadas na Inglaterra são leis estatutárias, que foram aprovadas pelo Parlamento após debates na Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns. Consistem em:
• legislação primária - atos do Parlamento - complementados por um vasto corpo de regulamentos derivados, conhecidos como instrumentos estatutários (legislação secundária);
• legislação terciária - instrumentos legislativos elaborados sob a autoridade de uma Lei do Parlamento, mas que não estão sujeitos a nenhum escrutínio parlamentar.
• Lei branda ou quase legislação, que inclui declarações de boas práticas ou orientações.
1. Todas as funções da Lei, sejam macro ou micro, dependem do estágio de desenvolvimento da sociedade e das pressões e desafios que a sociedade enfrenta.
2. As leis que existem e as maneiras pelas quais são usadas dependem da ideologia e da política de um país em particular. Por exemplo, as noções atuais de justiça social e igualdade no Reino Unido dependem da ideologia e da política de um país em particular.
3. As funções da lei nem sempre são consistentes entre si: a preservação da ordem social pode ocasionalmente estar em conflito agudo com a função de proteger as liberdades civis. O papel da lei no avanço da igualdade ou da justificativa social pode estar no apoio a ordens sociais e econômicas correntes.
As leis emanadas do Parlamento soberano até 1939 se limitavam a estabelecer as exceções do direito comum, sendo interpretadas restritivamente. A partir de 1939, as leis dirigentes criaram instituições, estabeleceram princípios e dirigem as forças econômicas, coordenando sistemas como de transporte, de educação e de saúde. Essas leis são estranhas a tradição do common law foram sendo introduzidas no sistema inglês. O Law Comission Act de 1965 fixa temas sobre interpretação das leis, afetas à administração, criando um novo direito o law of administration.
2.1 O Papel do Precedente no Sistema Jurídico Inglês
O sistema jurídico da common law tem como um dos componentes mais significativos o precedente. O direito comum inglês como um direito jurisprudencial21 estabelece as suas regulações e práticas na essência da tradição se construindo e se autoreproduzindo no dinamismo do precedente. O reconhecimento das tradições e dos costumes passam por um ato jurídico constitutivo (decisão), sendo que os novos elementos do sistema são produzidos pelos próprios elementos do sistema.
Segundo Robert S. Barker, o common law de origens em normas consuetudinárias da Inglaterra, se desenvolveu de forma unificada, em 1066, com Guilherme (O Conquistador) e a imposição da Justiça do Rei. Com a Justiça do Rei, as consultas judiciais transformaram as normas consuetudinárias em um sistema jurídico baseado no precedente22.
Henrry de Bracton, em seu tratado De Legibus et Consuet Udinibus Regni Angliae, datado do século XIII, assinalou que surgindo nos reinos “assuntos novos, desconhecidos e casos similares se apresentaram com anterioridade, o que se deseja é a aplicação da mesma decisão sobre os mesmos assuntos, uma vez que a ocasião propícia avançar de um caso similar para outro similar”23.
O trabalho de Bracton é uma clássica recopilação das decisões dos tribunais servindo como um guia para os juízes decidirem casos novos. Com o objetivo de escrever um texto coerente sobre Curia Regis, Bracton utiliza o conhecimento de direito romano e canônico. Em razão do emprego de tantas terminologias de direito romano, Bracton é acusado de imitar o direito Romano, mas o pioneirismo do trabalho facilitou o desenvolvimento de uma tradição jurídica baseada nos precedentes24.
As reiteradas experiências dos juízes na decisão dos casos e suas deliberações frequentes e informais deram condições de nascer uma estrutura sólida possibilitando a formação do sistema inglês25. Mas, as regras derivadas e manifestadas pelos juízes só poderiam se desenvolver no interior do sistema se os mesmos juízes mostrassem respeito e atenção às decisões anteriores; tanto as suas decisões quanto as decisões de outros juízes. Os precedentes se tornam uma verdadeira fonte de direito e os juízes são obrigados26 a segui-los.
Como fonte do direito inglês cuja autoridade deriva de uma regra de obrigatoriedade, o precedente (stare decisis) se torna uma marca operativa do sistema. As condições enquanto marcas operativas do sistema são dadas quando os operadores do direito inglês (advogados e juízes) podem conhecer os casos de forma sistematizada, ou seja, quando as decisões e os casos são sistematizados em verdadeiros livros de consultas como os year books ou denominados Law Reports.
Uma vez sistematizada em texto com acesso aos operadores do direito inglês, é possível a realização de processos de auto-observação e a possibilidade de diferenciações, tornando a autodescrição do sistema, uma realidade, e assim, o sistema consegue manter a identidade e melhorar as suas operações, as suas funções e finalidades. Já a obrigatoriedade dos precedentes faz com que as decisões judiciais busquem validade nas próprias construções dos Tribunais.
Os juízes criam e recriam o direito e as resoluções judiciais contêm a “ratio decidendi” que incluem as normas legais, os precedentes vinculantes e o razoamento do juiz para chegar à decisão27. Como os juízes estão sempre obrigados a seguir o precedente, é por meio da fórmula da inovação distinguishing que se afasta o precedente vinculante, em razão de existência de particularidades que diferenciam um caso anterior de um caso atual.
No curso das decisões, o sistema se observa a si mesma, fazendo com que os textos jurídicos se remetam a outros textos. O texto não é apenas aquilo que está escrito, mas tudo que se pode verbalizar em palavras, pela linguagem. Assim, o próprio direito consuetudinário não escrito pode ser expresso em texto.
Aqui tem lugar a argumentação jurídica orientada pela comunicação. Ao apresentar uma interpretação de texto, a argumentação faz referência a uma decisão, e, na verdade, uma referência as decisões em questões. Na avaliação do precedente, é preciso descobrir o ratio decidendi do caso que já foi decidido. Depois é preciso raciocinar argumentativamente sobre a diferença do caso julgamento em relação ao precedente. Aqui o que se faz é uma distinção e não distinção.
A argumentação torna o sistema mais complexo, sendo marcada pela redundância e pela variedade; a redundância no processo de informação com a informação disponível e variedade na informação que ainda falta e será completada. Neste processo, com base nas ratio decidendi e na obiter dictum, sob a condição de diferenciação, o sistema encontra apoio em si mesmo, sua autorreferência é validada pelo próprio direito, fazendo com que haja um fechamento recursivo no nível de observação de segunda ordem em um movimento reflexivo28.
2.2 Equity
Advindo de uma divisão histórica do sistema inglês, o Equity surge no século XIV como forma de contraposição à rigidez processual do período. O direito só podia ser conhecido nos tribunais locais quando a ação estava formalmente adequada. O que não se enquadrava na forma não tinha o conteúdo não analisado. O sistema common law, em alguns casos, nem sequer conhecia a demanda, por ausência de forma processual29. O Conciller Lord (oficial do Rei maior) inicia uma fórmula que poderia ser considerado um clamor ao Rei para que o assunto fosse conhecido e solucionado. Assim, pelo “amor de Deus na forma da caridade faça-se Justiça”. Levados ao conhecimento do canciller, os casos se solucionavam pela fórmula da equidade.
As matérias pertencentes à jurisdição do common law não podiam chegar ao canciller, se mantendo as regras, como a prova e as outras práticas processuais aplicadas aos tribunais de common law. O canciller respeitava o direito comum ‘equity follwrs the law”. O agir do Canciller impunha a Justiça, mas não violava o common law. No século XIV, a Chancery operava como um Tribunal e os chanceleres estudavam e aplicavam muitos institutos do direito romano e canônico30.
Após a responsabilidade do equity passar para o Tribunal Court of Chancery, formulações jurídicas como injunctions, petição (suit), com maters para defesa de interests, decree (ordem) aparecem. A intervenção do equity foi justificada pela consciência; “a consciência se choca com a solução que indica um direito imperfeito”31. Embora discricionária, essa consciência se torna cada vez mais sistematizada, com o estabelecimento de regras como: a) a criação de competência dos Tribunais da Chancelaria; b) a necessidade de soluções independente da forma processual c) necessidade de pedidos diferentes aos pedidos do common law, e; d) o caráter discricionário.
Ao invés de uma contradição entre common law e do equity, a diferenciação dos dois microssistemas faz com que ocorra a evolução do sistema inglês. Até que em 1873-1875 se tem a fusão do common law e da equity com princípios e regras que atualmente podem ser aplicados simultaneamente.
Com a fórmula da equidade (aequitas), que pressupõe competências especiais no interior da jurisdição geral do príncipe, comparando paralelamente a estrutura da religião, segundo Luhmann, corresponde a possível motivação de Maria. Assim, “ a unidade torna o soberano aquele que decide em um programa do paradoxo de Justiça e equidade ou Justittia e clementia ”32.
Embora haja afirmação sobre a unificação do common law e do equity se verifica funções diferentes dos dois microssistemas no direito inglês. O direito comum estabelece regras gerais que garantem segurança. Enquanto, os direitos equitativos atuam como uma verificação e equilíbrio do direito comum. Ashburner, ao comentar essas diferenças, afirma que o common law e a equity “são dois fluxos que correm um ao lado do outro, mas nunca misturam suas águas33, embora as correntes conflitantes da lei e da equidade certamente se misturarem34.
2.3 Legal Rule
Adepto às diferenças de estruturas entre o common law e o civil law, René David considera que diferentemente das regras da civil law; no direito inglês “legal rule” está na ratio decidendi das decisões tomadas pelos Tribunais Superiores da Inglaterra. A legal rule se desenvolve a partir do caso concreto, ficando a resolução delimitada ao caso concreto; a formulação não pode ser superior aos casos concretos. As leis formuladas pelo legislador são assim interpretadas pela jurisprudência.
A legal rule é apta a dar, de forma imediata, a sua solução ao litígio, que só se pode ser compreendido quando se conhece os seus elementos. Ela representa uma fórmula vaga, que funciona como diretiva geral, que só pode ser fixa quando os tribunais são levados a pronunciar-se sobre o caso concreto. A decisão está centrada nas circunstâncias do caso concreto. A fórmula é vaga porque a legal rule é indissociável dos elementos do caso concreto, que são as únicas coisas que devem se compreender e alcançar. Os fatos, a partir de um texto, ou seja, da linguagem, penetram na estrutura do Direito, pela legal rule, e pelo raciocínio indutivo.
A legal rule difere das regras não legais, como os costumes ou as convenções. A violação de regras não legais frequentemente resulta em consequências para a parte violadora, mas essas regras não podem ser impostas pelo judiciário como legal rule. As convenções políticas do Reino Unido, por exemplo, não integram a legal rule. Essas convenções se desenvolvem ao longo do tempo e limitam as ações do Poder Executivo, do Monarca e do Parlamento. Apesar do efeito vinculante no comportamento dos atores políticos que obedecem, as convenções não são legal rule. Foi o que reafirmou o Supremo Tribunal do Reino Unido no caso (Miller) quando discutiu a aplicabilidade legal da “Convenção Sewel”. A Convenção determina que o Parlamento do Reino Unido em Westminster só faça legislação que afete as outras nações, como Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, quando houver o consentimento destas nações. O Tribunal não reconheceu a convenção como uma legal rule, portanto, decidiu que não teria competência de se pronunciar, pois a sua a competência constitucional é de proteção apenas do Estado de direito.
2.4 O Constitucionalismo no Direito Inglês e as Implicações do Brexit no Direito Inglês
No direito inglês, o termo constitution se utilizava para designar os decretos com força de lei advindos do corpo político. Em 1701, o Act of Settlement, ato do parlamento que regula a sucessão da coroa35 mantém o termo constitution como algo que engloba o ordenamento político daquele país.
O constitucionalismo britânico possui uma divisão clássica: constitucionalismo político e common law. Apesar de escrita, a Constituição britânica é considerada não legal, pois, não é um conjunto de normas, mas um conjunto de relações políticas entre órgãos dos Estados. Assim, as regras que regem as relações de poder se baseiam em relações implicitamente políticas36. As inconstitucionalidades referentes às relações de poderes se resolvem politicamente e não pelos Tribunais. Essa realidade não retira os ingleses de problemas teóricos que advém da ideia de Estado de Direito.
O Estado de Direito conduz a duas expectativas de sentidos contrários, que seriam a suspensão jurídica do poder político e a instrumentalização política do direito. Na perspectiva do direito e de sua função, não há nada desprovido de direito, nem formas de condutas que não possam estar sujeita à regulamentação37 é uma das formulações rule of law feita por Herman Finer: “a regra e a lei cobrem o mesmo terreno”38.
2.4.1 Fontes do constitucionalismo britânico
O constitucionalismo britânico dispõe de três elementos: as fontes formais, os fundamentos políticos e os fundamentos axiológicos do sistema. As fontes são as leis, as prerrogativas reais e as convenções constitucionais. Na Inglaterra, há muitas leis com relevância constitucional, não existindo distinção entre lei e constituição. De forma diversa ao nosso sistema, a lei pode revogar um princípio ou direito constitucional. Isto é uma consequência do princípio da soberania parlamentar39.
As prerrogativas reais se definem como um residual “que se mantém por séculos da antiga onipotência do rei”40. São poderes inerentes e não provém de lei parlamentar, mas do common law que os reconhecem por meio de várias decisões dos Tribunais. Esses poderes são descritos como discricionários e são exercidos sem autorização do parlamento, se projetando no âmbito das relações internacionais.
As convenções constitucionais são práticas que regulam o comportamento dos membros do parlamento, do governo e de outros atores políticos. Essas práticas em determinado momento, se tornam obrigatórias41. A obrigatoriedade não vem dos tribunais, que reconhecem as convenções, mas não têm competência de determinar o cumprimento delas; a obrigatoriedade advém da prática e das relações de poder político. O descumprimento das convenções reflete nas relações políticas e pode levar a obrigatoriedade de o parlamento confeccionar uma lei ou até mesmo a queda do governo.
2.4.2 A soberania do parlamento e o rule of law
O fundamento mais mencionado da constituição britânica é o princípio da soberania parlamentar que na visão de muitos juristas britânicos, como o Lord Neuberger, ex-presidente da Suprema Corte entre 2012 e 2017, conduz a máxima que os tribunais não podem anular uma lei parlamentar. Entretanto, a soberania do parlamento não exclui outro princípio que é o rule of law. Esta posição é reafirmada pelos Tribunais, na sentença Miller de 2017, por exemplo, foi sublinhado que “a soberania parlamentar é princípio fundamental da constituição do Reino Unido acompanhado de outro princípio o rule of law - cláusula do Estado de Direito.
Estes dois princípios fundantes do constitucionalismo inglês formam as contradições e os conflitos permanentes no sistema constitucional britânico e traduzem a divisão do constitucionalismo político e o constitucionalismo do common law. O princípio de que o parlamento não tem limites é trazido da Revolução Gloriosa de 1688, de forma que toda a lei do parlamento, seja qual for o conteúdo, deve ser obedecida pelos Tribunais, não existindo pessoa ou órgão que possa contrariá-la. A regra se mantém como uma regra de reconhecimento do direito britânico, segundo Hart42.
Essa realidade de obediência da lei, em razão da soberania do parlamento, tem sido cada vez mais alterada, principalmente com a adesão do Reino Unido à Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Human Rights Act de 1988. Essas normas jurídicas acabam por conferir maiores poderes aos Tribunais.
A adesão do Reino Unido à União Europeia de 1972 e a cláusula do Tratado da Comunidade Europeia que determina que o direito europeu prevalece sob o interno é um dos principais motivos de mudança da situação no sistema inglês, pois acabou por trazer para dentro do sistema, a cláusula que impõe limites ao poder legislativo e à soberania do Parlamento britânico.
Ademais, desde outubro de 2000, quando a Lei de Direitos Humanos de 1998 entrou em vigor, um estatuto mais formal de direitos humanos foi aplicado no Reino Unido. Em 2009, mais uma modificação ocorreu no âmbito do direito constitucional, com a chegada do controle de constitucionalidade pelo Tribunal Supremo do Reino Unido - antigo Comitê de Apelação dos Lordes. Agora, o Tribunal Supremo pode controlar legislação secundária e analisar a compatibilidade das leis frente à Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Deste modo, os direitos fundamentais passam a desempenhar um papel fundamental no constitucionalismo da common law sendo verdadeiros “estatutos constitucionais do common law”. Assim, as normas de direitos fundamentais têm uma qualidade constitucional43 e os tribunais intensificam a proteção de direitos como a vida, a liberdade de expressão, a liberdade e o direito de acesso à justiça44.
Os Tribunais passam a impor limitações de caráter formal ao Parlamento em relação aos direitos fundamentais. Como forma de garantia dos direitos fundamentais e reafirmação do princípio de legalidade, os Tribunais exigem, por exemplo, que o Parlamento use fórmulas com palavras que informem expressamente a revogação de direitos fundamentais, pois os “direitos fundamentais não podem ser substituídos por palavras gerais ou ambíguas”45. Essa solução, ainda permanece conflitante quando se coloca em voga o direito europeu no que tange à proteção aos direitos humanos, já que tal direito, nos termos do Tratado de 1972, prevalece sobre o direito interno. Nestes casos, os Tribunais mantêm a prevalência do direito europeu, sob a condição que a prevalência dure enquanto o Parlamento assim desejar. Confira no próximo tópico, decisões como Metric Martyrs.
2.4.3 A prevalência do direito europeu sobre o direito inglês
Quando da adesão do Reino Unido à Comunidade Europeia, uma das discussões que marcaram a interação entre o direito europeu e a constituição common law foi a decisão do Tribunal Divisional Thoburn vs Sunderland City Council, também conhecida como Metric Martyrs. De forma enfática se consignou que as Leis da Comunidade Europeia de 1972, que marcam a adesão do Reino Unido à União Europeia, são estatutos constitucionais e têm primazia em face do direito doméstico.
Deste modo, o direito da União Europeia como estatutos constitucionais passa a ter prevalência sobre o direito interno, mantendo apenas a soberania do Parlamento que é evidenciada na possibilidade de revogação expressa do direito europeu. Assim, “the fundamental legal basis of the relationship with the EU rests with the domestic, not the European, legal powers The fundamental legal basis of the relationship with the EU rests with the domestic, not the European, legal powers”46.
A decisão Metric Mastyr projetou os acórdãos: HS247 e Pham, ambos proferidos pela Suprema Corte. Embora os casos não tenham reconhecido tão expressamente a primazia do direito da União Europeia (UE) sobre o direito comum inglês, reconhecem a importância da legislação europeia sobre o direito interno.
Em HS2 se apresentou um caso de direito ambiental, o direito europeu referente ao meio ambiente foi declarado pelo Tribunal prevalecente ao direito interno, até quando o Parlamento decidir contrariamente. Em Pham se identificou a “autoridade legislativa final em sua jurisdição de acordo com a regra de reconhecimento relevante (...) a menos e até a regra de reconhecimento por nos quais moldamos nossas decisões seja alterado, devemos ver o Reino Unido como independente, assim o direito europeu é parte integrante do direito interno, porque o Parlamento tem desejado”48.
2.4.4 Os efeitos do brexit no direito constitucional inglês
Se as mudanças no constitucionalismo inglês se intensificaram com a adesão do Reino Unido à União Europeia, atualmente, as tensões estão centradas no brexit. Em 2017, o famoso caso Miller discute a retira do Reino Unido da Comunidade Europeia frente ao que dispõe o artigo 50 do Tratado da União Europeia. O artigo 50 do Tratado dispõe que qualquer Estado-Membro pode decidir retirar-se da União Europeia de acordo com os seus requisitos constitucionais.
A questão central a princípio era simples: o governo britânico poderia ou não notificar a retirada em razão dos referendos do Reino Unido de 23 de junho de 2016, ou necessitava de uma nova lei do Parlamento para autorizar a notificação?
Ao afirmar a necessidade de um novo ato do Parlamento, a Suprema Corte, no caso Miller, considerou que apenas lei estatutária ou common law pode remover direitos individuais. Assim, um ato de governo que estabelece as condições de retirada do Reino Unido da União Europeia não poderia revogar esses direitos, já que para a Suprema Corte, o exercício do poder de governo não pode ter efeitos ilimitados em relação aos direitos fundamentais.
O reflexo do chamado ato de retirada nos direitos fundamentais é a questão mais problemática em relação ao constitucionalismo inglês, uma vez que a retirada simples e pura tem consequências no direito interno, pois, os Tratados deixam de ser aplicados e com eles todos os direitos fundamentais advindos do direito europeu.
Como os Tratados são reconhecidos como tendo “características constitucionais” e o direito da União Europeia era fonte de direito inteiramente ainda nova para o common law, a Corte Suprema decidiu, em razão da soberania do Parlamento, que apenas o Parlamento poderia autorizar e formalizar o ato de retirada.
É justamente no reconhecimento da Corte Suprema no caso Miller e em outros julgados que estabelecem o direito da União Europeia como “fonte de direito interno”, que emergem as contradições potenciais da retirada dentro das estruturas do sistema inglês. Alguns direitos, como a chamada “lei de não discriminação” estão totalmente sustentados pelo direito europeu. Assim, é o direito europeu que mantém as normas utilizadas pelo common law sobre questões de gênero, orientação sexual, raça e religião, da mesma forma ocorre com o direito ambiental.
O ato de retirada foi aprovado em janeiro de 2020 e o período de implementação é de 31 de janeiro de 2020 (dia da saída) até 31 de dezembro de 2020. A relação entre direito interno e direito externo se mantém, de acordo com o denominado ato de retirada, por um período, os Tribunais devem construir pela jurisprudência a interação dos dois direitos dentro de marcos temporais, chamados de anteriores e posteriores à retirada.
A jurisdição do Tribunal de Justiça da União Europeia sob questões do Reino Unido não é interrompida, mas permanece durante um prazo de oito anos, após da retirada. Os direitos que emergem da construção do Tribunal de Justiça da União Europeia são considerados adquiridos no âmbito do Reino Unido.
Os tribunais ingleses terão competência para afastar o direito europeu, dentro de uma construção jurisprudencial e o executivo também poderá emitir regulamentos afastando o direito europeu. Todas as questões e conflitos sobre a validade do direito europeu serão resolvidos por meio da chamada 'jurisprudência da UE retida' - isto é, segundo as decisões e os princípios do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJEU).
Mas, a Suprema Corte do Reino Unido ficou isenta da obrigação de tratar as decisões do TJUE como equivalentes às suas próprias decisões, independente do marco temporal (antes ou depois da retira) e os tribunais do Reino Unido não estão mais vinculados às decisões do TJUE, após o marco temporal definido pelo ato de retirada.
Em relação à construção da jurisprudência, o poder executivo pode lançar legislações que determinem quais são as circunstâncias em que qualquer tribunal inferior pode afastar a jurisprudência da União Europeia anterior ao ato de retirada.
A fórmula do constitucionalismo político e constitucionalismo common law se mantém, após a retirada do Reino Unido da União Europeia. O common law deverá construir a validez referente às interações do direito europeu e do direito inglês, com base em marcos temporais. Serão os fluxos comunicacionais, enquanto constitutivos do sistema jurídico, e evidenciados nas interações entre a jurisprudência do TJUE, a jurisprudência e as legislações do executivo e do parlamento do Reino Unido que manterão as possibilidades de autoprodução no interior do sistema inglês. Os fluxos comunicacionais que emergirão dessas interações criarão inúmeras seleções, contingências e riscos, principalmente inseguranças quanto às expectativas normativas, diante das inúmeras possibilidades constituídas pelo Brexit que modificou os pontos de conexão entre o direito interno (inglês) e o direito externo (europeu), principalmente no que tange aos direitos fundamentais.
3 ALIVE LAW: A DINÂMICA DO DIREITO COMUM
Quando Humberto Maturana e Francisco Varela empregam o termo autopoiesis para substituir “organização circular”, os autores descrevem a autocriação de sistemas vivos que possuem a necessidade de conservar a vida e mantêm clausura operacional, circunstância que faz dos seres vivos um sistema fechado49.
O esquema rendeu ao teórico Niklas Luhmann a Teoria dos Sistemas Autopoiéticos, que desenhou a sociedade como um sistema fechado que recebe irritações e fluxos comunicacionais do seu entorno. Com suas operações em uma clausura, o sistema é capaz de se autocriar independentemente de seu entorno. O elemento básico e que pode assegurar a unidade do sistema é a comunicação. A comunicação, apesar de ser altamente improvável, dinamiza o sistema.
Por meio de seu direito autopoiético, Teubner faz o encontro entre Niklas Luhmann e Eugene Ehrlich; o direito autopoiético de Luhmann é lido sob a ótica do direito vivo de Ehrlich50. O direito autopoiético de Teubner propõe por seu hiperciclo a autorreferência do direito, conservando os seus componentes, a sua autonomia, sem contudo, perder o dinamismo das comunicações jurídicas. O hiperciclo permite que autopoiesis torne o direito vivo, se autocriando, em um movimento de conservação de sua vida. Que sistema legal poderia simbolizar mais tal movimento que o common law? A sua conservação combina com a possibilidade de modificação criadora dos processos de interpretação e de argumentações promovidos pelos Tribunais.
O direito comum é um direito jurisprudencial, os atos jurídicos selecionam (decisões do legislativo e dos tribunais), criam uma variedade de normas, regras, precedentes que mantém a variabilidade das possibilidades sem deixar de manter autoridade do precedente. A comunicação entre os textos, casos e o texto legal promove, mais uma vez, a possibilidade criadora da jurisprudência pelo legal rule.
Com a auto-observação do sistema ocorre a diferenciação e sua continuidade faz com que a dogmática (identidade) - por seus estudos de casos detalhando, conceitualização, a análise e descrição dos precedentes, da “ratio decidendi” e do distinguishing - estabilize o sistema, garantindo a seleção - papel também reservado ao procedimento.
A dupla contingência entre o parlamento e os tribunais têm como um de seus símbolos a rule of law (estado de direito), a soberania do parlamento e a constituição do direito comum. Os fluxos comunicacionais trazem o inesperável, a novidade e promovem a possibilidade de conexões com mais mobilidade e dinamismo ao sistema. A autocriação do sistema se torna possível pela autopoiesis, garantida pelo hiperciclo que forma uma rede espiral que conduz a uma autocriação sem fim.
CONCLUSÕES
O modelo proposto é da sociedade sob a ótica da teoria dos sistemas autopoiéticos. Ao colocar o sistema no centro da problemática do Direito, questões como identidade, critérios de pertinência surgem. Tais questões podem ser abordadas em estudos sobre as estruturas que são comuns nos diversos sistemas jurídicos. O Direito analisado sob o modelo da teoria dos sistemas tem como fonte de criação o próprio Direito.
Em Niklas Luhmann, os sistemas sociais são altamente diferenciados; realidade que se torna possível em razão da inclusão da comunicação como elemento constitutivo desses sistemas funcionais. É com a complexidade, criada por uma grande quantidade de elementos e pela restrição imanente da capacidade de conexão dos elementos, que surgem níveis de sistemas (macrossistemas e microssistemas). A autonomia do sistema é garantida pela autorreferência, reflexividade, reflexão e sua autocriação é garantida pela autopoiesis.
Do modelo de Luhmann ao modelo proposto por Teubner, surgem o “enlace hipercíclico”, garantindo a autorreprodução e autocriação do Direito de forma dinamizada pelas comunicações jurídicas. O sistema jurídico inglês pode ser analisado sob o modelo da teoria dos sistemas autopoiéticos e do direito autopoiético que se autocria constantemente pelo “enlace hipercíclico”.
A representação é demonstrada a partir da comunicação argumentativa jurídica que garante a redundância, a variedade, a autorreferência e a validação do Direito pelos precedentes, em um movimento reflexivo. Outros microssistemas (common law e equily) mantêm comunicações de juízos arbitral e discricionários, abrindo campo para maior diferenciação e possibilidades. A interpenetração constante dos cases e dos atos do parlamento dinamiza ainda mais o sistema (legal rule). Da mesma forma, a autocriação do direito acontece pela via da dupla contingência (soberania do parlamento e rule of law e direito interno inglês e direito externo europeu), mantendo um dinamismo vivo, por fluxos de comunicações, que pode ser mais bem enxergado se pensarmos nos espirais formados pelos hiperciclos do Direito.