1 INTRODUÇÃO
Esse artigo aborda questões relativas à Procriação Medicamente Assistida - PMA e particularmente à heteróloga (com uso de material genético de terceiros) em Portugal e no Brasil. Traz, portanto, para o centro da discussão a “gestação de substituição”; a determinação da filiação de crianças nascidas por PMA neste contexto; e os limites éticos da Ciência na concepção de seres humanos. Consideram-se as prováveis consequências disso sobre os direitos de personalidade dos nascidos por PMA, ponderando acerca do sigilo do material doado - óvulos da mulher e/ou sêmen do homem - e dos avanços da ciência genética com a possibilidade de selecionar “genes” tidos como perfeitos ou que simplesmente correspondam às características físicas esperadas pelos pais.
Portanto, leva-se em conta os princípios do Melhor Interesse da Criança e do direito (de todos) à “verdade genética”. Afinal, no nascimento por PMA heteróloga são arrolados vários indivíduos que não necessariamente farão parte da vida desse sujeito.
A PMA, como será visto no decorrer deste estudo, é regulada desde 2006 em Portugal. Entretanto, com ressalvas à “gestação de substituição”, claramente desestimulada pelo ordenamento português que a admite apenas em caráter excepcional e sem sigilo dos dadores. No Brasil, por omissão legislativa, são seguidas recomendações do Conselho Federal de Medicina - CFM que admite o “útero solidário” desde que seja cedido gratuitamente por parentes do casal até ao quarto grau. A confidencialidade do doador é assegurada no Brasil.
Trata-se de assunto polêmico e ainda relativamente recente no campo do Direito, o que torna o tema relevante e justifica a realização de mais (e novas) investigações como a aqui proposta.
Os avanços da Ciência são positivos e notórios, mas num momento em que o Genoma Humano3, após três décadas de estudos agregando cientistas de diferentes partes do planeta, acaba de ser 100% sequenciado, conforme anúncio feito em maio de 2021 por cientistas da Telomere to Telomere (T2)4 é cada vez mais atual voltar à questão: tais avanços podem permitir/incentivar a tentação de recorrer à PMA para “fabricar” filhos “perfeitos”?
Parte-se da hipótese de que essa prática pode levar à “eugenia genética”, inclusive por conta da discriminação do material genético disponível para este fim, pois os interessados podem vir a selecionar “genes perfeitos”. Além disso, teme-se que a prática possa impedir o acesso das pessoas nascidas por PMA heteróloga à “verdade genética” quando o sigilo é permitido. Mais do que nunca e como se pode denotar carecemos de arcabouço jurídico para lidar com situações que envolvam “seleções humanas” sob o ponto de vista do Biodireito e da Bioética em respeito à dignidade da pessoa humana.
Interessa-nos defender os interesses da criança e não somente do adulto que coloca o desejo de ter filhos biológicos “perfeitos” acima destes.
Esse estudo se apoia numa pesquisa qualitativa e, metodologicamente, se atém a uma revisão bibliográfica de caráter exploratório. Espera-se com isso alargar a compreensão acerca dos fatores que alicerçam e facilitam o direito de ter filhos biológicos, mas que se contrapõem aos direitos dos maiores interessados nesse processo: as crianças nascidas por PMA heteróloga com doadores anônimos.
2 A CIÊNCIA REPRODUTIVA E A FAMÍLIA: ALGUMAS PONTUAÇÕES
O direito de constituir família é mencionado na Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH de 1948, art. 16, nos seguintes termos: “Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família”5. Com as muitas mudanças sociais, o conceito de família evoluiu e as maneiras de formá-la também.
Por isso, não se pode mais comportar restrições/discriminações relacionadas, por exemplo, à orientação sexual dos pares e aos filhos que podem ser biológicos ou tidos por meio da PMA. Neste último caso, a família daí originada é denominada Ectogenética6.
A PMA tem como marco o primeiro bebê de proveta nascido em 1978 na Inglaterra: uma das inúmeras possibilidades no campo da ciência reprodutiva desenvolvida pelos homens. Desde então, a expectativa de ter filhos com o próprio gene - unidade basilar da hereditariedade - tem sido explorada e expandida pela Engenharia genética. E, se inicialmente era mais corriqueiro recorrer à PMA em casos de infertilidade de um dos pares ou pela dificuldade de a mulher (por algum problema de saúde) engravidar, agora tem sido uma forma de perpetuar traços hereditários.
Segundo Stela Barbas:
O estabelecimento da filiação será sempre objecto de opções fundamentais quanto aos elementos que devem servir de base ao parentesco em função de valores e de interesses considerados preponderantes no tempo e no espaço. O primeiro dos quais, o direito da criança, em que a verdade genómica assume um importante lugar. Contudo, não pode ser, logicamente, o único dado a ter em conta. O balanço ou a correcta articulação dos valores culturais essenciais de cada sociedade está sempre em permanente construção: não está ainda construído, está-se construindo dia a dia7.
Ainda para a autora, “ (...) a problemática reside, por vezes, não tanto na opção da filiação certa do ponto de vista científico, mas no que se afigura mais desejável para a criança e no peso a atribuir a cada um dos pratos da balança ”8.
Assim sendo, a PMA deve atender ao Melhor Interesse da Criança e não à necessidade de procriar dos adultos-beneficiários. Isso porque, por vezes, a PMA carrega em si “(...) uma pura verdade do querer assumir um projeto parental e para esse efeito - para se cumprir essa vontade - um novo ser é criado (cujos interesses não estamos certos de que estejam a ser devidamente ponderados)”, como alerta Rute Pedro9 com quem concordamos.
Sobre isso também nos parece válido sinalizar que se antes as crianças nasciam naturalmente e as famílias eram numerosas pela falta de planejamento familiar ou de métodos contraceptivos, agora os nascidos por PMA representam o desejo real e não “acidental” por assim dizer de ter filhos. De tal modo, o capítulo da reprodução humana aliada aos avanços da biomedicina tem aspectos positivos por conta do controle da natalidade, exceto quando se trata do aborto, e negativos em razão das controvérsias em torno das técnicas de PMA e da possibilidade de uso inadequado e/ou em discordância com valores bioéticos e éticos do material genético.
Vejamos então: nos casos de PMA em que a pessoa (ou pessoas) é infértil e depende de material genético para o procedimento, temos como ponto a ser discutido a questão da confidencialidade de quem doa óvulos e/ou sêmen. Para além disso, a mulher impossibilitada de levar a gestação a cabo, seja por algum problema de saúde ou pela ausência do útero e ainda o casal formado por duas pessoas do gênero masculino, trazem à cena as figuras dos doadores e da “gestação de substituição” ou “sub-rogação” como único meio de gerar um filho.
Além da confidencialidade em si dos participantes num processo de PMA, a “gestação de substituição” representa um dos maiores dilemas da atualidade, pois o número de envolvidos pode gerar conflitos quanto à determinação da filiação e impedir que a pessoa saiba sobre sua origem biológica/genética. Pontos aqui destacados apenas para ilustrar questões relacionadas aos direitos de personalidade dos nascidos por PMA heteróloga, com uso (ou não) de uma “mãe substituta”.
O termo “barriga de aluguel”, denominação popular para a “gestação de substituição” é tido como inadequado tanto no ordenamento português quanto no brasileiro porque o fato de “alugar” remete à contratação financeira ou comercial.
Contudo, em muitos países a oferta de “úteros substitutos” é amparada legalmente e se constituiu em um “mercado” próspero ao qual muitos casais recorrem na impossibilidade de fazer isso em seus estados. Pesquisa da Global Markets Insights, divulgada em fevereiro de 2021, afirma que essa “indústria” foi, em 2018, avaliada mundialmente em US$ 6 bilhões e deve, em 2025, chegar a US$ 27.8 bilhões10. Aqui entram questões relativas ao direito internacional privado, pois a “gestação de substituição” é tida no âmbito transnacional e pode levar a consequências e litígios complexos sobre os quais não nos deteremos neste artigo. Entretanto, nestes casos deve-se ter em mente que lidamos com possível conflito entre as leis internas (e diferentes) de cada Estado.
A Convenção sobre os Direitos da Criança11, da Organização das Nações Unidas - ONU, de 1989, ratificada por 196 países, entre os quais figuram Portugal e Brasil, pode aqui ter os arts. 7º e 8º postos em destaque por assegurar:
Art. 7º. A criança deve ser registrada imediatamente após seu nascimento e, desde o momento do nascimento, terá direito a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e ser cuidada por eles. 2. Os Estados Partes devem garantir o cumprimento desses direitos, de acordo com a legislação nacional e com as obrigações que tenham assumido em virtude dos instrumentos internacionais pertinentes, especialmente no caso de crianças apátridas.
Art. 8º. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de acordo com a lei, sem interferências ilícitas. 2. Quando uma criança for privada ilegalmente de algum ou de todos os elementos que configuram sua identidade, os Estados Partes deverão prestar a assistência e a proteção adequadas, visando restabelecer rapidamente sua identidade12.
Ou seja, essa Convenção que tem inspirado os legisladores de todo o mundo traz claras indicações à necessidade de assegurar, visando o Melhor Interesse da Criança, alguns direitos de personalidade - registro, nome, nacionalidade, origem biológica - que na “gestação de substituição” transnacional pode ir de encontro às normas internas dos Estados.
Isso não tem impedido que o casal recorra ao “serviço” em outro país e garanta o sigilo das partes contratadas, mesmo sendo isso prejudicial ao desenvolvimento da criança, então tolhida de seus direitos de personalidade em desrespeito à dignidade da pessoa humana.
Afinal, como se sabe, o homem tem certa aptidão ou mesmo obstinação por querer conhecer as suas origens (até por questões de saúde) mantendo a questão eterna do “Quem?”, sendo somente mudadas as formas de respondê-la13. Tal indagação tem sido uma constante quando se fala da identidade e muitas vezes encontra resposta na Ciência, capaz de decifrar enigmas e mistérios da identidade humana, não mais permitindo que o homem se refugie, se esconda na escuridão das trevas, do desconhecido14.
3 PATRIMÔNIO GENÉTICO E NÃO DISCRIMINAÇÃO DOS CASAIS PELA ORIENTAÇÃO SEXUAL
Contudo, e como se sabe, os avanços científicos na área da PMA já permitem aos futuros pais escolher características (cor da pele, dos olhos etc.) de acordo com o biotipo esperado, possibilidade coibida legalmente em alguns ordenamentos pelo fato de incorrer na “discriminação genética”. Afinal, a eugenia com base na biologia racial vivenciada na Alemanha nazista de 1930 a 1945 revelou o lado mais perverso do homem, fazendo surgir recomendações internacionais de proteção aos Direitos Humanos.
Nos interessa neste trabalho a Declaração Universal Sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 199715 que em seu art. 2º estabelece que as pessoas devem ter direitos e dignidade respeitados: “a) (...) independentemente das respetivas características genéticas. b) Essa dignidade impõe que os indivíduos não sejam reduzidos às suas características genéticas e que se respeite o carácter único de cada um e a sua diversidade”16.
O patrimônio genético é, sem dúvida, algo complexo até mesmo para a tomada de decisões pelos estados e essa complexidade foi ampliada pelo fato de esta declaração proclamar que: “(...) o genoma humano e a informação nele contida é patrimônio comum da humanidade”. Evento que fez surgir “(...)uma noção e um conceito inteiramente novos no âmbito do direito internacional” na medida em que a própria humanidade, não só a presente como também a futura, “passa a ser sujeito de direitos”17. Isto é, à figura jurídica da pessoa humana - então sujeito de direitos - foi acrescida a figura do genoma humano, também como sujeito de direitos.
Compete mencionar também a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos18, de 2003, que reconheceu a singularidade dos dados genéticos, cujas finalidades em caso de recolhimento, tratamento, utilização e conservação são especificadas no art. 5º19, podendo ser extensíveis a outros fins desde que estejam em compatibilidade com a já mencionada Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos humanos e com o direito internacional sobre direitos humanos.
Cabe a cada país, tendo em conta uma série de valores - culturais, éticos, sociais, religiosos, econômicos etc. - tutelar o genoma de cada pessoa, não só no aspecto tangível (DNA e RNA) como, também, no aspecto intangível (mais propriamente a informação), desde o momento em que estas estruturas e esta informação estão operacionais, isto é, desde a formação do zigoto20.
Defendemos que em Portugal e no Brasil não deve haver discriminação a casais do mesmo sexo, muito menos a crianças nascidas por meio de técnicas de PMA. A não discriminação é um dos princípios constitucionais nas Constituições de ambos os estados. Todavia, na prática, as famílias que fogem à heteronormatividade ainda enfrentam uma série de percalços para ter direitos iguais e respeitados pela sociedade. Trata-se de um processo longo e que, nos últimos anos, parece ter avançado positivamente nos dois estados nos quais as legislações e/ou decisões dos tribunais tentam acolher de forma igualitária as diferentes formatações familiares atuais. Como não poderia deixar de ser “(...) As adaptações dos arranjos familiares à realidade social acabaram por implicar na reconstrução das estruturas parentais, ou seja, numa nova delimitação da paternidade, da maternidade e da filiação”21.
As Constituições portuguesa e brasileira são pautadas pela não discriminação de modo geral, o que se aplica à orientação sexual das pessoas, ao direito de constituir família e às crianças nascidas por PMA.
Mas, em que pese direitos constitucionais, as uniões de facto, em Portugal, passaram a ter proteção do Estado e sem distinção de sexo somente a partir de 2010, quando a Lei 23/2010, de 30 de agosto alterou a norma de proteção às uniões de facto nos seguintes termos: “2 - A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”22. Também em 2010 o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi regulado em Portugal a partir da Lei 9/2010, de 31 de maio23.
No Brasil, a união estável entre pessoas do mesmo sexo foi reconhecida após os julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI) 4.27724 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 13225 em 2011. Essa decisão fez com que a PMA se tornasse uma opção para que casais do mesmo sexo pudessem ter filhos biológicos. Dois anos mais tarde, a Resolução n. 175/201326 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ viabilizou o casamento civil para estas pessoas.
Todas estas conquistas demandaram esforços da sociedade civil e mais diretamente dos defensores dos direitos das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros - LGBT nos dois Estados visando tratamento em consonância com o princípio da igualdade, que consta em inúmeras recomendações internacionais voltadas à dignidade da pessoa humana.
No Brasil, os filhos adotivos foram tratados de forma diferente dos consanguíneos até 1977, quando a Lei 6.51527 ou Lei do Divórcio igualou os direitos, sendo essa igualdade reforçada pela Constituição de 198828, em vigor, e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 199029. Na história das famílias, por séculos, a filiação dependia da legitimidade do relacionamento. E, no Brasil, somente em 2009 o Superior Tribunal de Justiça - STJ consolidou a adoção por um casal de mulheres em respeito ao Melhor Interesse da Criança30.
4 PMA E GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO EM PORTUGAL
Em Portugal, a PMA é regulada pela Lei 32/2006, de 26 de julho31 que criou o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida - CNPMA, desde então entidade reguladora dessa prática. Em junho de 2016, houve mudanças para estender a PMA a mais beneficiários, alterando a norma e dando regulação, designadamente, à “gestação de substituição”32. Com isso, passaram a ter acesso às técnicas: mulheres com problemas de saúde e/ou infertilidade; em união de facto/casamento com outra mulher; ou mulheres solteiras que desejassem ser mães biológicas.
A Lei 32/2006, de 26 de julho, em seu art. 3º se refere à dignidade e não discriminação ao pontuar que: “As técnicas de PMA devem respeitar a dignidade humana, sendo proibida a discriminação com base no património genético ou no facto de se ter nascido em resultado da utilização de técnicas de PMA”33.
Há, neste aspecto, preocupação do legislador para com as pessoas nascidas por meio dessas técnicas, pois a dignidade humana é posta acima de todas as coisas mesmo que haja polêmica em torno do entendimento de algumas. Na redação de 2006, o art. 8º consagra:
1. São nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição. 2. Entende-se por “maternidade de substituição” qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. 3. A mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer34.
Ainda referente à filiação, a referida Lei, na redação de 2006, em seu art. 21.º, estabelece: “O dador de sémen não pode ser havido como pai da criança que vier a nascer, não lhe cabendo quaisquer poderes ou deveres em relação a ela”, isso porque o n. 1 do art. 20.º pontua que “na PMA com inseminação heteróloga consentida é pai considera-se que o filho seja do “(...) marido ou daquele vivendo em união de facto com a mulher inseminada, desde que tenha havido consentimento na inseminação, nos termos do art. 14.º, sem prejuízo da presunção estabelecida no art. 1826.º do Código Civil”35.
Destacamos o entendimento dos tribunais portugueses, inclusive quando a mulher, findo o relacionamento, tenta impugnar, sem êxito, a paternidade numa PMA com inseminação heteróloga consentida36. O pai que consente a inseminação não interfere no acesso futuro da pessoa à identidade genética, justamente porque a lei lusa não permite a confidencialidade, muito menos se opõe à filiação socioafetiva.
As restrições existentes em Portugal referentes à PMA dizem respeito aos direitos de personalidade e às questões bioéticas colocadas cada vez mais no centro das discussões e das polêmicas que tal assunto carrega. Afinal, as novas técnicas de procriação assistida permitem que a reprodução humana se dissocie a nível do tempo, espaço e mesmo do próprio contexto familiar37, fazendo gerar um sinal de alerta para o alcance e impacto disso para a vida humana.
Duas outras normas relacionadas à PMA foram proclamadas em Portugal em 2016 em alteração à lei de 2006: a Lei 17/2016, de 20 de junho38 e a Lei 25/2016, de 22 de agosto39. A primeira estendeu as técnicas a todas as mulheres, independentemente de orientação sexual e estado civil. Assim sendo, o diploma não inclui como beneficiários os casais formados por dois homens.
Já a Lei 25/2016, de 22 de agosto40 modificou pela terceira vez a norma de 2006 para regular a “gestação de substituição”. Contudo, em 2018, os números 4, 10 e 11 do art. 8.º com as mudanças feitas em 2016 foram considerados inconstitucionais. Inicialmente, por permitir a “gestação de substituição” em caráter excepcional numa celebração de negócios. O caráter comercial foi então vetado numa decisão do Tribunal Constitucional que consta do Acórdão n.º 225/201841 o qual sinalizava, dentre outras coisas, para o alto valor cobrado com a finalidade de “(...) selecionar as mães de substituição e, se necessário, os dadores, colocando-se em prática processos de recrutamento altamente intrusivos, onde a coisificação da mulher e da criança são ainda mais evidentes”42.
O Acórdão de 2018 também considerou inconstitucional o n.º 8 do art. 8.º, que conjugado ao n.º 5 do art. 14º, não admitia a revogação do consentimento por parte da gestante substituta até a entrega da criança aos beneficiários. Por outro lado, a confidencialidade de que tratava o art. 15.º43 foi avaliada pelo Tribunal Constitucional como em desacordo com o direito de a pessoa vir a conhecer sua origem genética, sua identidade, como consagrado no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Em 2019, o Acórdão 465/201944 reafirmou a decisão, pronunciando-se, dentre outras coisas, “(...) pela inconstitucionalidade, por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família (...)”. Sobretudo ao considerar que:
A gestação de substituição, tal como foi concebida pelo legislador, funda-se num dom: na doação, voluntária e generosa, por parte da gestante, do seu corpo e de um período significativo de vida, com todos os incómodos e riscos inerentes à vivência de uma gravidez, sem que nada lhe seja dado em troca, além da satisfação de contribuir para a realização do projeto de parentalidade de outrem. Nestes termos, e não se ignorando a necessidade de tutela jurídica dos interesses dos beneficiários, entendo que no centro da solução jurídico-constitucional terão de estar, necessariamente, a dignidade da mulher gestante, a proteção da gravidez e o interesse do nascituro45.
Além disso, na exposição de justificativas, o referido Acórdão reafirmou que na PMA intermediada pela gestação de “sub-rogação” ou “substituição”, a paternidade envolve pelo menos seis pessoas: “i) a dadora do óvulo; ii) a gestante de substituição; iii) a beneficiária; iv) o dador do espermatozoide; v) o marido da gestante (sujeito simplesmente ignorado na presente lei e cujo consentimento é fundamental atendendo à presunção de paternidade); e vi) o beneficiário”46.
Assim, atualmente, a “gestação de substituição” em Portugal se dá em caráter excepcional e conforme o que prevê o art. 3º que só admite a celebração de negócios jurídicos com essa finalidade: “(...) a título excepcional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem ”47.
Portugal, em seu rito legislativo, segue o prenunciado na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, art. 3º, voltado à integridade do ser humano em respeito às medidas/intervenções médico-biológica. Por este documento sem caráter vinculativo, promulgado pela segunda vez em 2007 e tornado obrigatório aos Países-membros da UE desde 2009 por ocasião do Tratado de Lisboa, no consentimento livre e esclarecido há: “b. A proibição das práticas eugénicas, nomeadamente das que têm por finalidade a seleção das pessoas; c. A proibição de transformar o corpo humano ou as suas partes, enquanto tais, numa fonte de lucro; d. A proibição da clonagem reprodutiva dos seres humanos”48.
A citada Legislação portuguesa n.º 32/2006, de 26 de julho49 sobre PMA é, por assim dizer, extremamente cautelosa e atenta a várias recomendações internacionais que sinalizam para o caminho “extenuante” no qual se estabelece a dignidade da pessoa humana: Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo), de 1997; Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (UNESCO, 1997); e a já citada Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, todas inclusive mencionadas na justificativa de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 465 de 2019 para limitar a “gestação de substituição” a situações realmente excepcionais.
Portugal comunga ainda em sua norma com o parecer do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, órgão da União Europeia fundado em 1958 e tornado permanente desde 1998 que, ao analisar, a “gestação de substituição” afirmou que o não reconhecimento da filiação e a negativa de nacionalidade de uma criança pelos pais-beneficiários: “(...) têm como consequência um dano intolerável para o direito à vida privada, nomeadamente, devido à situação de indefinição jurídica em que as crianças são deixadas, que as impossibilita de estabelecer os detalhes da sua identidade como ser humano50. Percebe-se assim a preocupação com a identidade da pessoa quando a PMA comporta a “gestação de substituição” independentemente da orientação sexual do casal.
5 PMA E GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO NO BRASIL
No Brasil a Reprodução Assistida é tratada desde 199251 pelo ilustre Conselho Federal de Medicina - CFM com direcionamentos aos profissionais da área. Referente a casais do mesmo sexo e pessoas solteiras, a Resolução n.º 2.121/2015 da CFM, revogada pela de 2017, determinava:
- É permitido o uso das técnicas de reprodução assistida para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras;
- É permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade;
- As clínicas, centros ou serviços de reprodução assistida podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, em caso de união homoafetiva;
- As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau - mãe; segundo grau - irmã/avó; terceiro grau - tia; quarto grau - prima);
- Os doadores de gametas ou embriões não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa52.
O CFM brasileiro estabelece regras deontológicas acerca de reprodução assistida, mas estas não têm força de lei como ocorre em Portugal, onde se busca gerir a questão observando como a PMA interfere na vida humana e como bem observa Alessandra Balestieri53. A autora lembra ainda que, no Brasil, tem-se como relevante a Lei 9.263/199654 que não regulamenta diretamente a PMA, mas fala do planejamento familiar como decisão livre de cada casal. O art. 9.º da mencionada Lei determina: “Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”55.
O Brasil teve elaborados, desde o início dos anos 1990, vários projetos de lei relativos à PMA, mas nenhum tomou corpo apesar da importância do tema. Logo, o CFM desempenha função fundamental, diríamos mesmo imprescindível para que se cumpram requisitos bioéticos e éticos quando houver uso das técnicas.
Em junho de 2021, as orientações anteriores foram revogadas pela Resolução CFM n.º 2.29456, apenas limitando o número de embriões gerados no laboratório a 8 (oito) e delimitando o número possível a serem implantados: dois para mulheres até os 37 anos e três acima dessa idade57.
O acesso às técnicas de RA é permitido a heterossexuais, homossexuais e transgêneros. Além disso: “É permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina. Considera-se gestação compartilhada a situação em que o embrião obtido a partir da fecundação do(s) oócito(s) de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira”58.
No Capítulo I dos Princípios gerais dessa resolução é pontuado que não podem as técnicas de reprodução serem utilizadas com a pretensão de “5. (...) selecionar o sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto para evitar doenças no possível descendente”59.
No capítulo IV - 2 determina o CFM que não pode ter conhecimento da identidade civil do doador nem do receptor, exceto no caso de: “doação de gametas para parentesco até o quarto grau de um dos receptores (primeiro grau - pais/filhos; segundo grau - avós/irmãos; terceiro grau - tios sobrinhos; quarto grau - primos), desde que não incorra em consanguinidade”60. Este sigilo pode ainda ser quebrado em casos especiais quando houver motivação médica relevante, mas a identidade será conhecida apenas pelo médico, a fim de resguardar a identidade do doador.
No Brasil, no capítulo VII da Resolução CFM n.º 2.294/2021, que trata de gestação por substituição, admite-se tal artifício para quem não pode gestar, pessoa solteira e casal homoafetivo. No termo de compromisso livre e esclarecido, a filiação ficará determinada, impedindo que a cedente temporária possa requerê-la para si. “A cedente temporária do útero deve ter ao menos um filho vivo e pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau”61. Em qualquer outro caso, prevalece avaliação e autorização do Conselho Regional de Medicina.
Apesar de todas as importantíssimas recomendações do CFM, o Brasil ainda peca pela falta de legislação que dê proteção ao direito genético no que tange o genoma humano enquanto direito de personalidade e a jurisprudência tem sido favorável à dupla paternidade e desligamento com a doadora do material genético62.
Iduna Weinert63 indaga: “(...) por que o legislador brasileiro, ao elaborar o novo diploma civil, não incluiu os DIREITOS GENÉTICOS de forma clara e positiva e não cuidou, pois, de sua proteção?”. Afinal, como ressalta, a matéria versa sobre “(...) direitos que se derivam do substrato físico do homem, de sua composição genética, além de serem direitos naturais” que, assim sendo “(...) integram de forma objetiva sua personalidade”64.
Passadas quase duas décadas da promulgação no novo Código Civil brasileiro, não há resposta para tal omissão. Cabe a ressalva de que embora não estejam nominados no Código Civil, os direitos de personalidade estão lá dispostos, bem como a RMA no livro V deste Código, art. 1597.º, que já tratava como filhos os: “(...) III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga”65, mas com autorização prévia do marido. Importante dizer que a união estável já é, no Brasil, entidade familiar similar ao casamento.
Assim, embora não se reporte expressamente, o Código Civil brasileiro traz o Direito Genético “à baila”, ainda que falte detalhar subtemas importantes como o aqui discutido. Parece-nos que a evolução da engenharia genética reprodutiva não tem sido acompanhada pelas normas, deixando algumas brechas que carecem de maiores esclarecimentos e/ou tratamento jurídico adequado a princípios que de fato assegurem a dignidade da pessoa humana. Esse certamente é o caso do direito de a pessoa vir a conhecer sua origem, mesmo quando envolva a PMA, ou sobretudo nestes casos.
6 SOBRE A VERDADE GENÉTICA/BIOLÓGICA
Como dito desde o início, este estudo analisa como as pessoas podem ter filhos biológicos em Portugal e no Brasil valendo-se das técnicas de PMA e, mais particularmente, usando material genético de terceiros numa PMA heteróloga que pode (ou não) comportar uma “gestação de substituição”.
Primeiro cabe repetir que a PMA pode ser homóloga - quando usa material genético do casal - e heteróloga. No último caso é muito comum para casais inférteis e os do mesmo sexo, pois há a necessidade de pelo menos um dador, trazendo à discussão a confidencialidade de dados de quem doa e, por conseguinte, o direito do acesso à “verdade genética” dos assim nascidos.
A preocupação que sinalizamos nada tem a ver com o estado de filiação firmado pela afetividade, mesmo porque o afeto tem sido o princípio norteador das relações contemporâneas, especialmente em famílias formadas por casais do mesmo sexo. Tem a ver com a possibilidade de uma pessoa nascida por PMA, cercada pela confidencialidade dos dadores, não ter direito a conhecer sua origem genética em dado momento da vida. “Não pode haver dois tipos de pessoas: as que podem conhecer e as que não podem conhecer as suas raízes genômicas”66.
Em nenhum momento intenciona-se, portanto, colocar em xeque a importância de quem decide ter filhos utilizando material - no todo ou em parte - de uma outra pessoa. A discussão vai mais além que o direito de procriar por técnicas de PMA: refere-se ao direito de quem nasce por meio de PMA de saber como foi a sua concepção e, consequentemente, qual a sua origem e a de seus genes. Defendemos o Direito à identidade pessoal e genética consagrado no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa. Ou seja, volta-se essa defesa aos direitos da criança e não somente dos pais, independentemente de orientação sexual.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considera-se importante a abordagem desse tema, sobretudo quando, enfim, o genoma humano foi praticamente 100% sequenciado como dito na introdução deste artigo. Estamos a falar do patrimônio genético desvendado pela ciência, o que é bom para todas as áreas do conhecimento, incluindo a do Direito: muitas resoluções de crimes são feitas a partir do DNA, assim como muitas paternidades são reveladas por testes de DNA, por exemplo. Contudo, tal patrimônio constitui a identidade de cada pessoa e “(...) por isso, temos o direito de guardar e defender e depois de transmitir”67.
Há, como se pode denotar, importantes contribuições bioéticas e éticas a serem aprendidas e possivelmente seguidas para que a ciência não atropele direitos fundamentais e os homens se transformem em cobaias de outros homens. Para que as crianças, em caso de PMA heteróloga e todos os protagonistas porventura envolvidos, não passem a ser “fabricadas” sem preocupação com o seu desenvolvimento enquanto sujeito de direitos. Não se quer aqui recriminar o direito de que casais do mesmo sexo possam ter filhos biológicos por PMA, muito pelo contrário, mas sim apenas alertar para a necessidade de saber lidar com todas as inquietações características dos seres humanos, às quais podem (ou não) estar atreladas à necessidade de acesso à “verdade genética”.
Essa determinação não abala, a nosso ver, a filiação afetiva que tem demonstrado ser de suma importância para a constituição de famílias cujos laços ultrapassam a consanguinidade que, por séculos, fomentou a discriminação de crianças nascidas fora dos ditames matrimoniais. Contudo, a ciência parece andar a passos bem mais acelerados que o Direito e isso deve ser levado em consideração quando se trata de reprodução humana.
Eticamente parece-nos possível e defensável transitar por uma via que conceda liberdade para que as famílias se formem de diferentes maneiras e as pessoas nasçam podendo acessar sua “verdade biológica”.