Sumario: 1. Introdução. 2. A Linguagem e a Língua. 3. Direito e Literatura: fronteiras permeáveis. 4. Diferenças e convergências de dois imaginários. 5. Considerações finais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto de um diálogo internacional realizado virtualmente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Faculdade de Direito, com o juris filósofo e dramaturgo belga, professor emérito da Universidade de Bruxelas, François Ost e com o professor mexicano Oscar Enrique Torres.
A análise de suas palavras no idioma francês e o encadeamento das respostas às questões formuladas, no percurso da linguagem, tal como foram percebidos em seu valor representativo para a nossa cultura, funda-se na base de um apriorístico histórico, instigam a refletirmos sobre novas condições de possibilidade de configuração do estudo do Direito e Literatura.
Os estudos do Direito e Literatura conduzem por variáveis de intersecções mediante preposições e advérbios. O direito da literatura informa a maneira como a lei e a jurisprudência abordam o fenômeno das escrituras literárias. No direito como literatura, a abordagem do discurso jurídico ocorre com os métodos de análises da literatura. O direito na literatura, enfoque presente nos estudos de François Ost, analisa como a literatura aborda as questões como justiça, poder e direito.
Distinta da “ficção jurídica”, instrumento técnico que considera juridicamente verdadeiro o que é factualmente falso, a iurisfictio também se distingue da jurisdictio clássica, enquanto, evidentemente, não emana de uma autoridade oficial, e que, como supomos, pode permitir-se um uso mais livre das fontes do direito, privilegiando, sobretudo, as suas fontes materiais profundas, de ordem imaginária. Pode ser apresentado como uma variante do atual “direito na literatura” (diferenciado do direito da literatura e do direito como literatura), com a diferença de que, na maioria das teses jurídicas, que ela pratica tornam-se mais precisas, confinando-se em certos casos ao direito por meio da literatura.
Na aventura pelo imaginário da literatura, nosso objetivo é apresentar uma forma de aprendizado do Direito, para além de um catálogo de leis, precedentes e súmulas. Para elaborar a hipótese, mergulhamos no convite da ficção para a construção de um pensamento crítico, trazendo múltiplos debates epistemológicos. O poder cognitivo da ficção está no conteúdo de seu mundo imaginativo e nas formas que o seu imaginativo assume. Na intercessão - direito e literatura - o Direito aprende os temas, absorve conteúdos e as formas das ficções.
A metodologia empregada é hibrida, de caráter descritivo-bibliográfico- -explicativo. Neste caminho, foram avaliadas as relações entre direito e literatura, por análise de documentos de domínio científico, sendo o material da pesquisa contrastado com a hipótese posta. No final, um trabalho na área da filosofia do Direito, não poderia deixar de aplicar a Tópica aristotélica, no foco da investigação zetética, com abertura para o constante questionamento.
O resultado é a demonstração das relações entre o direito e a literatura, uma articulação de duas ordens que possuem pontos comuns e divergentes. Os dois fenômenos, frutos das atividades humanas, parecem se cruzar apontando para uma visão, onde o Direito olhar-se duplamente no espelho.
O diálogo com François Ost, necessariamente passa pela Linguagem e pela Língua. A língua é léxica, sintaxe, ritmo, retórica, gêneros, estilo, acentos, tons e sobretudo a possibilidade de conectar o real, com o virtual, com o irreal, com a ficção. Já a linguagem possibilita o imaginário social. Discorrer sobre Direito e Literatura passa, primeiramente, por uma breve uma análise da Linguagem e Língua. Tal análise é o objeto da primeira seção. Entre o mundo do Direito e da Literatura observam-se as fronteiras permeáveis, verificáveis pelas diferenças e convergências, tais movimentos são analisados na segunda e terceira seção. Seguem as considerações finais e referências.
2. A LINGUAGEM E A LÍNGUA
“No principio era o Verbo...”
Uma das ânsias fundamentais do espírito humano em sua tentativa de compreender, governar e modificar o mundo é descobrir uma ordem. Os elementos do cosmos da língua são as palavras, percebidas como aglomerados de sons (quando ouvidas) ou de formas (quando lidas); apreendidas e compreendidas como signos e símbolos. Toda língua é um sistema completo, mas não fechado.
Wittgenstein é o pensador que estudou mais profundamente o problema da língua.
Os jogos de linguagem, no sentido em que Wittgenstein, dão ao sintagma, legitimam seus enunciados de modo imanente, em base de regras convencionadas. Desse modo, a literatura, a política, a economia, o direito, em suas práticas sociais a níveis normativos através do imaginário social, articulam convenção e invenção de forma constante e dinâmica.
a) Sob sua forma primeira, a linguagem era signo das coisas porque se lhes assemelhava. Essa similitude foi destruída em Babel. O trecho bíblico sobre a Torre de Babel narra que os homens planejavam a construção de uma torre com a qual chegariam aos céus, marcando uma cidade que os uniria e protegeria para sempre, evitando sua dispersão pela face da terra. Ao mesmo tempo, com isso, se dariam um nome. Esse projeto não agradou a Deus, que o interpretou como fruto da arrogância e da soberba dos homens. Deus clama raivoso seu nome: Babel (Confusão), o que estabelece a diversificação das línguas que se tornaram incomuns, fadando os homens à necessidade da tradução. Apesar disso, a linguagem nomeia fazendo parte do espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia. Na linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções, nos poremos à escuta de “outra linguagem”, aquela sem palavras, nem discursos, ou semelhança, mas a das identidades e das diferenças, de medida e de ordem.
Voltaire surpreende com o fato de que na Bíblia Babel significa confusão, pois Ba significa pai nas línguas orientais, e Bel, Deus. A cidade de Deus, a cidade santa. Confusão das línguas, mas também o estado de confusão no qual se encontram os arquitetos diante da estrutura da torre interrompida Multiplicidade de idiomas, daquilo que se denomina correntemente línguas maternais.
Antes da desconstrução de Babel, a grande família semítica acabara de fundar seu império, ela o queria universal, e sua língua, ela tenta impor a todos. Quando Deus lhes impõe e opõe o seu nome, ele os sujeita à lei de uma tradução impossível, rompendo com a razão universal de uma nação particular. No entanto, a tradução promete um reino à reconciliação das línguas. A promessa um acontecimento propriamente simbólico acoplado, casando duas línguas com duas partes de um todo maior, será a verdadeira língua.
b) A língua é realidade. “Se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia?”, pergunta o filósofo Vilém Flusser3. A língua é, forma, cria propaga realidade.
Verdade como autenticidade. A verdade absoluta se existe, não é articulável, portanto, incompreensível. A língua aparece como processo procurando superar a si mesmo, o que não aconteceria se houvesse uma única língua?
Afinidades eletivas ao direito à verdade. Onde buscar essa afinidade originária? Mas o que diz uma obra literária? O que ela comunica? O que ela tem de essencial não é a comunicação, não é a enunciação. A sabedoria dos antepassados o confirma: logos, a palavra é o fundamento do mundo grego pré-filosófico, pequenos portais de acesso ao desconhecido.
Para Descartes, nas primeiras linhas das Regulae4, quando se descobrem semelhanças entre duas coisas, atribuir tanto a uma como a outra, mesmo sobre os pontos em que são diferentes, aquilo que se reconheceu verdadeiro para somente uma delas é instituir jogos. Jogos cujo poder de encanto crescem com o parentesco da semelhança com a ilusão. O ato racional de comparação não é por ele excluído, nem limitado, mas universalizado.
Cada palavra necessita mobilizar uma rede de conotações. A língua não é só léxico, mas sintaxe, ritmo, retórica, interferência de outras línguas, gêneros, estilo, acentos, tons e sobretudo experiência modulando sua singular relação com o real, com o possível, com o virtual, com o irreal.
Em um mundo radicalmente plural, os homens se interpelam em todas as línguas e a tarefa da tradução se impõe como imperativo estrutural.
c) Sobre o significado na Literatura e o valor cognitivo da ficção existem controvérsias. Desde o princípio, a Literatura (poesia e arte) foi induzida a se defender, devido à pergunta de se e como esta poderia transmitir verdade e conhecimento. Seus temas, dada as múltiplas facetas da condição humana, influem em nossos sentimentos, como sustenta Frege, no âmbito da Estética e se funda em sua Filosofia da Linguagem, em especial sobre seu conceito de significado.
Desse modo, a análise do discurso ficcional será realizada em dois níveis:
1) concernente ao significado de expressões no discurso ficcional, e
2) concernente à força ilocucionária do discurso ficcional. De forma intuitiva, as perspectivas:
? No discurso ficcional o falante fala como se estivesse falando sobre algo; em realidade não fala sobre nenhuma coisa;
? No discurso ficcional o falante fala como se estivesse realizando algum tipo particular de atos de fala; de fato não realiza esse ato em absoluto. Nesse sentido, o poeta nunca afirma e, portanto, nunca mente.
Pelo lado do Direito, a busca da lei perfeita orientada a uma ordem de origem divina, aparece na boca de Antígona: sua oposição às ordens de Creonte (direito positivo da cidade de Tebas) se apoia em leis não escritas dos deuses.
3. DIREITO E LITERATURA: FRONTEIRAS PERMEÁVEIS
JURISFICTIO ou iurisfictio (é a expressão latina para se referir-se à iurisficción) “entendida basicamente como um processo criativo que combina o estilo literário de um jurista, um advogado, ou um juiz, acompanhado necessariamente de uma reflexão sobre a justiça ou o direito, ou de uma determinada tese sobre um problema jurídico”5.
A publicação da obra, assim denominada, alcança a profundidade com a elaboração do conto de François Ost: “Eu, Martín, um urso de cinco patas. Carta aos meus juízes”, cujo Prólogo e compilação é de Oscar Enrique Torres, veio enriquecer o ensino e a didática jurídica em sua criação prática, mediante a mobilização do imaginário jurídico6. O conto de François é inspirado nos processos eclesiásticos e civis contra aninais entre os anos 1120 e 1846 que existiram em toda a Europa. François Ost, no decorrer do texto, conta as últimas horas de “Eu, Martín, um urso de cinco patas” um animal condenando por nascer com 5 patas, portanto, ter ido contra a natureza, levando a uma reflexão sobre os direitos dos animais.
Em um certo compromisso com a expressão e com a elaboração da terminologia, em François Ost, a jurisficción se mostra “como a ficção pode mobilizar a consciência jurídica sobre a via da utopia criadora”7, podendo assumir a forma de diferentes gêneros literários, como um conto, uma poesia, uma obra de teatro, uma novela.
A jurisficção é distinta da denominada ficção jurídica, que não se vincula a uma realidade objetiva. A ciência jurídica opera, efetivamente, com ficções. A função da ficção é a compreensão do modo de operar de um conjunto específico de fenômenos8. Ela procede de uma autoridade oficial que é o direito e suas fontes jurídicas. Movimentos e dinâmicas de escrita literária e jurídica transcendem as obras concretas de seus autores, evidenciando a preocupação filosófica da fundamentação de suas ideias, com Hegel de quem toma a pergunta pela anterioridade dialética de obra e sujeito.
São exemplos:
O art. 347 do Código Comercial Alemão A praesumptio juris. Nos fala das ficções pretorianas. Como “ficções” da aplicação do direito cite-se a analogia. Sua insuperável contradição em relação à realidade efetiva do direito e sua inadmissibilidade jurídica. A analogia exigida pelo direito.
A ficção moral da “liberdade”, do “contrato social”. Seu caráter supérfluo a partir do ponto de vista do positivismo jurídico. A independência do direito da moral, entre outros. As ficções jurídicas são justamente um dos tipos característicos de construtos imaginários
(Vorstellungsgebilde).
A literatura “libera os possíveis”, o direito codifica a realidade, a institui por uma rede de qualificações convencionadas, a encerra num sistema de obrigações e interdições9.
A interpretação... de seu conto se situa mais além de toda crítica e de toda exegese.
Trata-se de uma escritura profunda que não se conforma com a superfície da página nem crê ingenuamente tão só na moral, assumindo sua autoridade literária científica, em prol da humanização, sem renunciar ao direito e às grandes palavras, sem igualmente marginalizar o literário: “dignidade”, “liberdade”, “justiça”, “ linguagem” “imaginação”, histórias” ...
“ O imaginário jurídico alimenta um infra-direito, gerador das mais diversas formas de costumes, hábitos, práticas e discursos que não cessam de agir, de dentro, sobre os modelos do direito instituído ”10.
No entanto, as aproximações entre o direito e a literatura, se iniciam sob o signo de um “não acolhimento”, como entre os gregos sob a pena de Platão, que desconfia dos poetas e dos trágicos. Apesar disso seus prelúdios são uma iniciação aos princípios da vida social, marcantes dos preceitos divinos que inspiram as leis; fazem derivar o nomos humano do espírito (nous) divino.
Três são as correntes comumente abordadas: o direito da literatura, o direito como literatura, o direito na literatura. No direito da literatura se estuda como a lei e a jurisprudência abordam o fenômeno da escritura literária tratando de um enfoque transversal que reagrupa temas de vários ramos do direito. No direito privado, por exemplo, os direitos de autor e copyright. No direito penal, os delitos de imprensa, como a calunia, difamação, ataques a ordem públicas, aos bons costumes, discursos racistas, em alguns países que possuem legislação, a blasfêmia.
No direito como literatura, o discurso se supõe a aplicação dos métodos da crítica literária ao direito. Esse é um enfoque predominante nos Estados Unidos. O jurista aparece como um “artista da linguagem”11, estando consciente do carácter construtivo e fictício das interpretações que propõe. Pode-se no direito como literatura assinalar as familiaridades existentes entre os métodos de interpretação das leis e dos textos literários. François pontua que a exegese jurídica do século XIX é devedora dos métodos filológicos que prevaleciam no mesmo período. Como exemplo, o autor assinala os “factums” na França do século XVII, que, simultaneamente, eram autênticos fragmentos de processos reais e textos literários vendidos como romances.
O direito na literatura explora como a literatura contribui na formulação e elucidação de questões importantes da Justiça, do Direito e Poder. Nas abordagens podem ser privilegiados um gênero enciclopédico da antologia, uma época, fazendo a relação, por exemplo, do direito e a literatura no antigo regime. Uma das abordagens mais realizadas são as narrações de instituição que criam significados sociais, engendrando novos mundos - nomos - um universo de narrações e prescrições de uma civilização jurídica. Esse é o caminho que percorre François Ost na obra Contar a Lei: As fontes do imaginário jurídico. Aqui, as narrativas e as imaginações literários não se opõem a argumentação racional, mas apontam a ingredientes essenciais12.
No direito pela literatura, o ator do mundo jurídico utiliza a literatura para defender uma causa e assegurar a audiência. François exemplifica com o combate contra a pena de morte que Victor Hugo, membro do parlamento, levou a cabo, no século XIX ao solicitar a pluma de Victor Hugo, o escritor, (O último dia de um condenado de morte).
4. DIFERENÇAS E CONVERGÊNCIAS DE DOIS IMAGINÁRIOS
O Direito e a literatura parecem não se relacionar em um primeiro momento e até mesmo serem entidades opostas, gerando-se tensões entre elas, considerando-se a literatura como uma arte “corruptora”, que falseia a realidade e não se atém à ética e à cidadania. Conscientes do poder da ficção, os juristas a afastam para preservar a arte do direito e da justiça.
São quatro as diferenças entre direito e literatura, segundo a classificação de François Ost. A primeira diferença é que enquanto a literatura libera os possíveis, o direito codifica a realidade. Uma segunda diferença é que a literatura se entrega às variações imaginativas mais inesperadas. Ela espanta, deslumbra, perturba, desorienta. O direito tem a função social de estabilizar as expectativas, com a exigência de segurança jurídica. Uma terceira diferença é que o direito produz pessoas, enquanto a literatura, personagens. A quarta diferença, o direito declina no registro da generalidade e da abstração (a lei é geral e abstrata). A literatura se desdobra no particular e no concreto. Façamos um exercício: O que distingue as duas técnicas discursivas?
a) A literatura “libera os possíveis”, cria personagens (atores) um urso portador de uma anomalia congênita, pensa e fala. Acusado de ir contra a natureza e encarnando o diabo, é excomungado e condenado à pena de morte por afogamento, não ser antes açoitado para afastar o anjo caído. Inconformado com tanta injustiça, se comunica com o carcereiro e lhe pede que escreva uma carta para seus juízes, por não ter o dom da escrita.
b) O direito em seus primórdios admite processos penais contra os animais, tendo sido entre nós um dos primeiros processos penais contra uma colônia de formigas que assaltaram a despensa de um convento. Só após serem julgadas e condenadas puderam ser exterminadas.
O direito codifica a realidade, cria “pessoas” (autores, réus, entre outros papéis ou máscaras). O conceito fictício de pessoa tem um modus operandi:
A duplicação do objeto de conhecimento, que se opera através da ficção em geral, e através da personificação do particular, tem sido caracterizada de uma maneira perfeitamente acertada por Vaihinger, e seria difícil dar desta tautologia presente no conceito de pessoa de Direito, uma descrição mais atinada(...) que o conceito de força. Tal palavra é apenas uma simples coberta, destinada a manter coesa e preservar a substância objetiva. E, da mesma forma que a coberta, em todas as suas formas, se amolda à substância e se limita a reproduzi-las exteriormente em forma duplicada, assim estas palavras ou conceitos constituem simples tautologias, que reproduzem a coisa real sob uma roupagem exterior.
Deste parágrafo nota-se que a peculiar terminologia usada por Kelsen, duplicação, tautologia, coberta, amoldar, reprodução, roupagem exterior, são formas metafóricas de referir-se as funções dos termos ou conceitos fictícios. A coberta se amolda a forma do objeto, reproduzindo suas características fundamentais, porém não agrega nada substancial ao mesmo, e sim é a forma externa duplicada do objeto. O conceito “pessoa” é conforme sua estrutura lógica, a saber, um reflexo. Tem uma função de visualização e simplificação. Com a pessoa de direito afirma-se uma realidade natural, que em realidade não existe em parte alguma.
Como toda personificação, também a do Estado cumpre a função de visualizar e simplificar o pensamento. A pessoa do Estado é somente uma medida maior do que é qualquer outra pessoa jurídica, inclusive a pessoa física: a personificação de normas jurídicas. Sem embargo, enquanto o Estado é a personificação da ordem jurídica total, as outras pessoas, tanto jurídicas como a chamada pessoa física, são personificações de ordens parciais, assim como a comunidade da ordem comunitária, a sociedade por ações dos Estatutos etc. em especial a chamada pessoa física: a personificação de todas as normas que regulam a conduta de um homem.
Destas considerações, pode-se falar na identidade do Estado e o Direito. Se o Estado é um aparato coativo e o Direito uma ordem coativa, os atos de violência física legítima, na terminologia de Weber, não são estranhos ao direito, e sim sua função específica.
c) O pensamento que subjaz neste ensaio tão denso conceptualmente é, facilmente compreensível: o homem primitivo e os primeiros pensadores gregos mostram que a lei da causalidade e o princípio da retribuição não estavam diferenciados como duas legalidades diferentes do acontecer observável, mas que, ao contrário, existia uma indistinção, no sentido de que a causalidade ainda não havia surgido dentro do pensamento humano.
Os primitivos só dispunham de um modo de explicar o que se apresentava a sua consciência: utilizavam conceitos e categorias sociais, isto é, os mesmos conceitos com os quais organizavam sua vida em comum, em especial, o princípio de retribuição, aquele que a Bíblia formula dizendo:
Assim erradicarás o mal de teu meio; e os que sobrem ouvirão e temerão, e não voltarão a cometer uma maldade como esta por meio de ti. Assim não mostrarás indulgência - vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (Jus Talionis). Baseia-se no princípio animista, ou melhor, personalista, só parte da sociedade (Deuteronômio XIX: 19 ss.).
A interpretação da Natureza segundo o princípio de retribuição se manifesta em sua efetiva conduta para com animais (o Urso), plantas, objetos inanimados, e sobretudo em sua Religião e em seus mitos. A lenda do dilúvio, comum a tantos povos, é um somente um exemplo do castigo de Deus aos homens e a precedência de sua criação e perpetuação dos animais.
Como se nota, a personificação do universo em Deus e a personificação do Direito em Estado, demonstra que a Literatura ficcional e a jurídica tem uma consequência necessária: ambas têm a mesma metodologia para compreender seu objeto de estudo.
d) Um registro de generalidade, abstração e um universo de qualificações formais com a tomada de decisão como base a “segurança jurídica” onde os interesses opostos estabelecem hierarquias entre as pretensões, assim pode-se descrever o Direito. Diante das angústias e expectativas, o Direito mantém uma função de reconforto e de estabilização. Em contraponto, a literatura embala as surpresas e as maravilhas para desorientar, entregando-se as mais eloquentes variações do imaginário. A literatura é por excelência um laboratório experimental do humano e tem como efeito alterar pontos de vistas. As suas histórias, sobretudo, são irredutivelmente singulares13.
Na fábula de La Fontaine, O urso e o amante do jardim, o urso - ao vigiar o sono do amante do jardim e assistir uma mosca irritante pousar no nariz do dorminhoco - agarra uma pedra de pavimentação e joga-a com força, contra a mosca. No final, o urso é “não menos um bom arqueiro do que um raciocinador ruim”.
Por que o urso é um mau raciocinador? É o que indaga François Ost. O urso se apegou a um silogismo e parte de uma única premissa: a preservação do sono do amante do jardim. A solução foi tão lógica, quanto destrutiva. O tempo de pensar foi substituído pela missão. Seria exigir muito que o urso exercesse a prudência aristotélica (ajustar meios a fins em contextos diferentes).
O raciocínio prudencial aprofunda-se na singularidade do caso real na tentativa de extrair uma orientação normativa. O urso partiu da regra, mas esqueceu do caso, (casus )14 - o que cai, o acidente, o acaso, a circunstância imprevista. É no mundo da casuísta que o espírito de prudência pode ser mobilizado.
Na ficção tudo é possível, até mesmo um julgamento sem lei, sem um código aprovado por todos os protagonistas. É o que podemos enxergar com o caso e com a disputa. Porém, devemos julgar até mesmo sem lei? O que autorizaria um sentimento de um julgar sem lei? A ideia kantiana de uma comunidade de seres livres e razoáveis é uma boa pista para a justificativa15.
A partir da terceira crítica kantiana, François Ost explica que essa forma de julgamento, desprovida de critérios pré-estabelecidos, toma a forma de imaginação. Uma imaginação constituinte capaz de inventar critérios. Negativamente, ela elimina o “muito injusto”. Positivamente, ela traça os caminhos de outra possibilidade e assim se volta resolutamente para o futuro - mesmo porque não há metalinguagem capaz de arbitrar todos os jogos de linguagem. Em outras palavras, não há código capaz de realizar justiça aos protagonistas dos diversos jogos sociais.
Ao final de sua vida, Kant estudou as situações em que se faz necessário decidir, sem que haja disponível uma regra incontestável. Na ausência de juízo tranquilizador - que determina quem deduz a solução a partir do princípio a priori - deve, então, confiar no juízo reflexivo, que raciocina a partir de histórias exemplares, “que nos colocam no caminho”16.
Os caminhos entre direito e literatura convergem em vários momentos. Segundo a classificação de François, a primeira convergência é percebida quando se verifica que para além de defender as posições já instituídas, o direito exerce funções instituidoras, criando os significados sociais históricos novos e a desconstrução dos antigos significados, obstáculos para os novos. Ao mesmo tempo, a literatura não opera apenas no imaginário. Ela se apoia em instituições, formas e normas existentes, a história individual mantém sempre um alcance universal.
É no sistema de representação que se confronta as paixões políticas e que os homens realmente significam além de suas ações e é, diante do conto, do poema, da peça teatral que se pode entrar em contato com o imaginário17. Aqui se pode constituir um conjunto de valores unificados por uma narrativa, como se existissem uma comunidade narrativa. Como diz Jean Pierre Vernant: a cidade se converte em teatro, em certa forma se considera como objeto de representação e ela mesmo se apresenta para o deleite do público18.
O direito pode derivar da ficção? Ex fabula ius oritur? No intermédio coral de Antígona, Sófocles coloca no coro as palavras:” As paixões instituem as cidades, o homem as ensinou a si mesmo”. Na origem das instituições políticas e dos códigos, há um jogo de paixões, simultaneamente, a educação transforma as paixões em leis cívicas. É neste jogo que o imaginário político forja as significações coletivas, assegurando o vínculo social19.
A ideia pode surpreender, o direito é sobretudo razão. Entretanto, há muitas paixões jurídicas que tornam as leis, instituições, códigos objetos de desejo ou repulsa. Embora o direito, vetor da ordem social e da previsibilidade, sempre se empenhou em controlar as paixões e conter os seus efeitos “indesejáveis”20.
O caminho que o direito percorre encontra paixões sociais e interesses que nem sempre estão conformados com a norma, surgindo, as revoluções e as refundações políticas. O direito instiga e mobiliza as fontes do imaginário coletivo. A literatura se aproxima das normas e das formas instituídas para descrever, criticar, reivindicar posições de minorias oprimidas, denunciar os males de um tempo ou até mesmo reafirmar posições de governantes.
A literatura não deixa de indagar aspectos sobre o formalismo, a arbitrariedade, o injusto. No mundo imaginário, o público interage como uma comunidade narrativa, recorrendo ao tribunal da consciência, reflexiona a justiça contra ela mesmo, deixando de pensar a justiça como instituição para a apresentá-la como um valor. Eis a convergência entre direito e literatura no âmbito da ética.
Oscar Torres, em seu Fiat iustitia ruat caelum, conta a história de um comerciante que se passa em Bruxelas medieval. Após ser assaltado, o comerciante realiza uma perseguição ao ladrão e após capturá-lo, o leva ao Tribunal. O ladrão nega com veemência o feito. Confrontado por duas versões, o juiz decide que um duelo entre a vítima e o acusado revelará a verdade. E assim, a verdade é revelada pelo sangue do ladrão. O povo vibra. A verdade estava com o comerciante e após um golpe glorioso foi revelada.
Logo, um terceiro surge e confessa o crime. Mas, o Juiz conclui:
“Senhor, a sua confissão está descartada. Nos duelos, a verdade não está na terra, mas nos céus, com o juiz supremo que já decidiu que o acusador tinha razão”.
O comerciante em plena crise entre o justo e o injusto, perseguido pela angústia, tira a própria vida, e em seu último sussurro, reafirma: Fiat iustitia ruat caelum!
A literatura, lembra Martha Nussbaum, é uma “escola de reflexão moral”, um reservatório inesgotável de “casos de consciência” - dilemas morais21. A imaginação literária, parte da racionalidade pública, que é um ingrediente essencial para a reflexão ética.
Walt Whitman escreve que o artista literário é um participante necessário. O poeta é “o árbitro do diverso e o igualador de sua época e sua terra”. A imaginação literária não se opõe a argumentação racional, mas coloca um ingrediente necessário, que é a emoção no juízo público.
Para Martha Nussbaum, a poesia pública tem a ver com a aproximação com o próximo, com aquilo que é plenamente humano. A ética profunda, antes de tudo, se baseia em uma concepção das emoções22 - o que inclui interrogações sobre o que é o “bom viver humano”.
Embora o direito tenha natureza prescritiva, pertencendo ao gênero normativo e a ficção tenha caráter narrativo, ocorrendo um antagonismo, há uma terceira convergência entre direito e literatura. O direito é composto de narrativas e tecidos de ficções e a literatura possui um efeito normativo. Para além da concepção lógico- -dedutiva do legalismo racional, o direito também é composto de narratividade, ou seja, grandes e pequenas histórias, que é tecida de ficções.
Ao mesmo tempo, as narrativas literárias e as normas jurídicas constituem “uma estrutura para a ação”. A identidade narrativa é um componente essencial para a identidade pessoal. As narrações ficcionais possibilitam a refiguração do eu concreto. O sujeito é interpretado e construído no espelho da literatura.
A narrativa imita a ação, propondo um mundo para voltar à vida e transformar identidades pessoais. O interpretar torna-se uma forma de viver, de se comportar no mundo (sentir e agir)23. A ficção possui um efeito normativo que surge da tensão entre o mundo real e imaginário.
A normatividade da ficção decorre de sua capacidade de agir sobre a realidade, tornando-se assim, em muitos casos, performativa. A propriedade performativa é uma das propriedades dos enunciados jurídicos normativos. A jurisfiction, ao reunir a possibilidade de agir sobre o leitor, não eleva o grau da “regulação jurídica na performance literária”, pois sua performatividade não é assegurada, mas, ela age sobre a consciência do leitor.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
JURISFICTIO ou iurisfictio combina o estilo literário e a reflexão sobre temas importantes para o mundo jurídico, como Justiça, Poder e Direito. Ela se apresenta como uma variante do direito na literatura, se articulando entre o universo de narrações e imaginários da ficção e o universo das prescrições de uma civilização jurídica.
O Direito opera em um universo de ficções, cria uma cadeia de conceitos codificados, abstratos que fazem parte da linguagem do direito e são necessárias para cumprimentos dos papéis - máscaras - existentes no mundo jurídico (pessoa física, pessoa jurídica, autor, réu, testemunha, juiz, advogado, fiscal da lei). A literatura libera os possíveis, criando personagens que escapam à razão e só fazem sentido no mundo da emoção.
Em um catálogo de generalidade e qualificações formais, o mundo jurídico salvaguarda as expectativas, apelando à segurança jurídicas. Mas, as expectativas podem ser frustradas, surpreendidas no contraponto da literatura que se torna, assim, o laboratório da imaginação humana - fonte mãe das criações. No mundo imaginário do direito, ele cria e conserva instituições. As instituições conservadas e criadas pelo direito passam constantemente pela crítica do mundo literário. As indagações do mundo sobre o formalismo, a arbitrariedade, o injusto, o justo, o bem, o mal, criam uma comunidade narrativa. É este o âmbito da ética.
Em sua natureza prescritiva, o direito recorre às narrativas com inúmeras histórias tecidas por ficções e papéis atribuídos. As narrativas literárias, gradualmente, são interpretadas pelos seus personagens, pelo seu público, podendo agir no mundo da realidade, tendo, deste modo, um caráter performativo. Entre as convergências, as diferenças, as aproximações, a literatura permite que o direito se dobre em si mesmo, ganhando espaço para novas indagações, possibilidades e reflexões.