Sumário: 1. Introdução; 2. Online Dispute Resolution (ODR) - noções gerais; 3. Consumidor.gov.br; 4. Vieses e nudges; 5. Desenho de nudges visando o incentivo à autocomposição; 6. Considerações finais. 7. Referências.
Summary: 1. Introduction; 2. Online Dispute Resolution (ODR) - general notions; 3. Consumidor.gov.br; 4. Biases and nudges; 5. Designing nudges to encourage self-composition; 6. Final considerations. 7. References.
1 INTRODUÇÃO
Os meios alternativos e autocompositivos de resolução de disputas (ADRs) são frequentemente referidos como instrumentos necessários para reduzir o volume de processos ajuizados e, por consequência, em tramitação no Poder Judiciário brasileiro. Em função disso, tem recebido na última década especial atenção do Conselho Nacional de Justiça, que formulou a política nacional de solução adequada de conflitos e estabeleceu a autocomposição e prevenção de demandas como macrodesafio do Poder Judiciário (Conselho Nacional de Justiça, 2020).
Concomitantemente, a utilização de soluções tecnológicas para facilitar a comunicação, prevenir e solucionar conflitos no ambiente virtual desperta como ponto de alavancagem3 para a superação de problemas sistêmicos de litigiosidade, dada a rapidez, conveniência e custos mais atraentes. No tocante às demandas consumeristas, que representam parcela considerável do acervo processual4, alternativa nacional exaltada pelo Poder Público e pelos estudiosos do tema é o “Consumidor.gov.br”, mantido pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor - SENACON.
O objetivo deste artigo consiste em estudar o “Consumidor.gov.br”, como plataforma on-line de resolução de disputas (ODR), e as estratégias que poderiam ser adotadas para fomentar a utilização dessa e de outras plataformas autocompositivas, com o escopo de prevenir o ajuizamento excessivo de demandas.
Parte-se da hipótese de que a plataforma, embora se encontre em franca expansão, ainda não realizou inteiramente o seu potencial preventivo da judicialização consumerista, o que poderia ser auxiliado pela utilização de mecanismos não cogentes de indução de comportamentos.
A metodologia da pesquisa envolveu a consulta aos bancos de dados, painéis estatísticos e publicações de pesquisas empíricas sobre o objeto de estudo, os quais foram analisados à luz do conceito de “nudge”, conforme propugnado pelos trabalhos de economia comportamental de Richard Thaler, Cass Sunstein e outros.
São propostas, ao fim, adequações na plataforma “Consumidor.gov.br”, nos portais institucionais dos Tribunais de Justiça e nos serviços de atendimento ao consumidor, e sugeridas mudanças no modo como o processo judicial e as plataformas de ODR interagem, com o fito de otimizar a adoção das vias extrajudiciais, alternativamente à judicialização dos litígios.
2 ONLINE DISPUTE RESOLUTION (ODR) - NOÇÕES GERAIS
O campo da resolução alternativa de disputas (ADR)5 abrange, dentre outros, os “processos de negociação, de mediação e de arbitragem fora do âmbito do sistema oficial de resolução de disputas que são os tribunais” (Bacellar, 2020, p. 206). Os meios adequados de solução de conflitos, a que se referem a sigla ADR, podem ou não envolver a participação de terceiros neutros, como igualmente desenrolar-se de modo consensual (negociação, mediação e conciliação) ou adversarial (arbitragem). A qualidade de “alternativas ao sistema oficial” advém exatamente da circunstância de que surgiram para serem aplicadas idealmente fora dos juízos, considerados estes em seu sentido amplo (Ibidem, p. 205).
Katsh e Rule (2016, p. 329) conceituam a Online Dispute Resolution (ODR) como “a aplicação da tecnologia da informação e da comunicação na prevenção, no gerenciamento e na resolução de disputas”. A origem desses instrumentos está historicamente associada à ascensão do comércio eletrônico e à necessidade de proporcionar respostas rápidas às querelas surgidas no bojo das milhões de transações comerciais concretizadas via internet6.
Becker e Feigelson (2020) relatam que as ODRs foram inicialmente desenhadas de modo a mimetizar no ambiente online as características das ADRs7, remontando suas origens aos trabalhos seminais de Ethan Katsh e Janet Rifkin, durante a década de 1990. No entanto, a noção de ODR não se cinge mais a reproduzir no ambiente informatizado as técnicas usuais de resolução alternativa de disputas8.
Os avanços tecnológicos permitiram transcender os limites das ADRs preexistentes e isso já tem impactado sobre os princípios que tradicionalmente as norteiam. Ponto notável de divergência entre os modelos tradicionais de ADR e as modernas ODRs diz respeito à confidencialidade9. Embora o teor preciso de cada negociação possa ficar restrito ao domínio dos negociantes, fato é que os dados das ODRs tendem cada vez mais a serem coletados, consolidados e examinados, produzindo-se estatísticas e modelos preditivos capazes de orientar o comportamento dos envolvidos em negociações ulteriores. A tal ponto que, mais recentemente, a inteligência artificial e outros mecanismos de tratamento de dados em massa, vem assomando como alternativa à própria participação dos terceiros neutros (Vasconcelos, Carnaúba, 2020). A tecnologia, nesse novo cenário, passa a atuar como “quarta parte”, auxiliando ou substituindo o terceiro humano10. Trata-se, talvez, de uma de suas maiores potencialidades11.
Os dados associados aos conflitos nas principais plataformas de e-commerce são o testemunho do seu gigantismo e da imprescindibilidade dos novos canais de resolução de litígios. Colin Rule (2017, p. 354) relata os impressionantes números alcançados pelo e-Bay, em sua iniciativa pioneira, que lidava em 2017 com cerca de 60 milhões de disputas por ano. Estima-se que de 3% a 5% de todas as transações de comércio eletrônico ocasionam disputas, número que pode ser ainda maior nos sites que não apresentam sistemas de reputação. Isso representaria algo em torno de 700 milhões a 1 bilhão de disputas anuais, por volta de 2017 (KATSH, RULE, 2016, p. 333-334).
O primeiro desafio para gerir o volume colossal de disputas no eBay, foi a necessidade de automatização. Segundo Rule (2017, p. 356-357), nem mesmo uma equipe com mais de mil habilidosos mediadores on-line seria capaz de administrar as dezenas de milhões de casos! Para tanto, utilizando o conceito da tecnologia como “quarta parte”, o sistema foi desenhado para auxiliar as partes na resolução de disputas, de modo a que os terceiros neutros atuassem apenas de modo excepcional.
Guardadas as devidas proporções, números similares foram divulgados no cenário nacional pelo Mercado Livre12, suscitando grande otimismo em relação ao potencial preventivo dessas plataformas.
Cueva (2021) registra o potencial das ODRs para a consecução de dois grandes desafios: “enfrentar a crescente judicialização dos conflitos de todo tipo e, ao mesmo tempo, reduzir os obstáculos ao acesso à justiça”, de modo a “ampliar o acesso a soluções justas e céleres”. E Bochenek (2013, p. 508) ressalta que o estímulo a outros meios adequados de resolução de conflitos, mitigando o monopólio estatal da jurisdição, é um dos aspectos primordiais da nova roupagem do acesso à justiça e aos direitos.
São comumente apontadas como vantagens das ODRs a desburocratização, redução de custos, celeridade e eficiência13. Mas também são destacadas desvantagens, tal como ficarem ainda restritas a controvérsias mais simples e a parâmetros pré-definidos (BECKER, FEIGELSON, 2020). Dentre todos esses aspectos, porém, a conveniência e a celeridade sobressaem.
O eBay analisou o comportamento de centenas de milhares de usuários que passaram por resolução de disputas na plataforma, mensurando sua satisfação a partir do valor das transações realizadas nos três meses anteriores e posteriores à experiência com ODR. O estudo confirmou a hipótese de que os que se sagraram vencedores na disputa aumentariam sua atividade na plataforma. No entanto, de forma contraintuitiva, o mesmo se passou com os perdedores. Conforme relatam Katsh e Rule (2016, p. 334-335), a grande descoberta foi que os únicos compradores que reduziram sua atividade após deflagrarem sua primeira disputa, foram aqueles cujo processo demorou mais tempo, acima de seis semanas14. A celeridade na resolução da disputa foi, portanto, o principal indutor do comportamento dos usuários, superando a percepção da “justiça” da decisão.
A rigor, com a extensão das ODRs para os espaços públicos de resolução de conflitos, a própria definição dessas plataformas deve ser ampliada, para abranger as cortes digitais (SURIANI, 2020). Nesse sentido, Vasconcelos e Carnaúba (2020) ressaltam que:
(...) a utilização da ODR, entendida como técnica de resolução de conflitos, é útil a todas as portas do sistema multiportas: processo judicial, arbitragem, mediação, conciliação, jury trials, ombudsmen etc. E isso, justamente, porque todos os meios de solução de controvérsias devem objetivar a consecução da tutela jurisdicional mais adequada possível, que só será alcançada se houver algum grau de flexibilidade procedimental que permita sua adaptabilidade ao conflito que pretende resolver.
Não se trata, portanto, de simplesmente transportar para o mundo digital o que já se desenvolvera no ambiente “off-line”, mas de criar um novo paradigma15.
3 CONSUMIDOR.GOV.BR
No Brasil, o “Consumidor.gov.br” surge de iniciativa da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça. Trata-se de plataforma on-line de negociação não assistida, assíncrona, cujos dados possibilitam organizar um ranking, observando-se o comportamento dos fornecedores. Os consumidores podem, ao final do período dedicado à negociação, classificar a questão como resolvida ou não resolvida e atribuir nota de satisfação16. Os painéis estatísticos informam os respectivos percentuais de resolução, além do tempo médio despendido, grau de satisfação, dentre outros parâmetros (ELESBON, 2022, p. 182).
Não se cuida propriamente de procedimento administrativo, já que não há intervenção de agentes públicos, e não se exclui a possibilidade de o consumidor acessar outros órgãos do sistema de proteção, a exemplo dos Procons e dos Juizados Especiais (Costa, Francisco, 2020). Com informa o próprio site: “A principal inovação do Consumidor.gov.br está em possibilitar um contato direto entre consumidores e empresas, em um ambiente totalmente público e transparente”17.
Os dados divulgados pelo portal “Consumidor.gov.br” demonstram a rápida expansão do serviço, desde o seu lançamento. O painel estatístico da plataforma informava 609.644 reclamações finalizadas no ano de 2018, com índice médio de solução de 81,03% em 6 dias. Em 2019, foram 780.179 queixas, com 80,71% de solução e tempo médio de resposta de 7 dias. 2020 apresentou crescimento substancial, para 1.196.625 reclamações finalizadas, no tempo médio de 9 dias e com 78,34% de resolutividade. Os dados de 2021 relacionavam 1.434.101 reclamações finalizadas, com 78,49% de solução em 7 dias. No total, até a data pesquisada, de 05/01/2022, mais de cinco milhões de reclamações já haviam sido finalizadas no “Consumidor.gov.br” desde a sua implantação18.
Feita a intersecção entre os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2018) e do “Consumidor.gov.br”, fica claro que os maiores litigantes consumeristas se perfilam em segmentos bem determinados e que estão majoritariamente representados na plataforma extrajudicial.
Mais recentemente, o governo Federal tornou a plataforma obrigatória para a resolução de lides que envolvam os órgãos e entidades da administração direta e indireta19. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça firmou acordo de cooperação técnica com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, objetivando incrementar o uso de métodos autocompositivos on-line para conflitos de consumo, abrangendo a integração da plataforma Consumidor.gov ao Processo Judicial Eletrônico (PJe) (BRASIL, 2019).
Os números são promissores, tanto em número de queixas apresentadas, quanto no percentual de respostas e nos índices de satisfação. Trata-se de canal público, a princípio isento de influências dos fornecedores ali demandados, o custo de sua utilização é baixíssimo, praticamente zero (considerando a disponibilidade de acesso à internet pelo consumidor) e o prazo de resposta, bastante razoável.
No entanto, paralelamente a esse crescimento, as lides de consumo apresentadas em juízo não refrearam. A distribuição processual continua elevada e, feito recorte mais específico, a proporção de ações consumeristas representa significativa parcela das demandas20.
A questão que se coloca, portanto, é que, a despeito de as plataformas extrajudiciais (e, em particular, o “Consumidor.gov.br”) serem de acesso fácil e ágil e demonstrarem resultados satisfatórios, elas ainda não ocasionaram diminuição na distribuição de demandas em juízo. O que nos leva a indagar se não seriam necessários incentivos adicionais para que os consumidores busquem as plataformas extrajudiciais como primeira opção para resolverem suas querelas.
Katsh e Rule sustentam que sistemas de ODR, como qualquer outra tecnologia que se pretenda bem-sucedida, devem observar um triângulo cujos lados representam a conveniência, perícia (expertise) e confiança (Katsh, Rule, 2016, p. 331). Permitindo a comunicação assíncrona e não presencial, longe dos fóruns, tribunais e instalações administrativas dos Procons, o “Consumidor.gov” fornece economia de dinheiro21 e tempo, logo, atende à conveniência.
No entanto, o sistema do “Consumidor.gov.br” ainda não incorpora nenhuma aplicação que possa ser relacionada a ideia de “quarta parte” e que proporcione ganhos qualitativos aos envolvidos. O sistema oferece ambiente de negociação on-line, sem qualquer tipo de assistência mais sofisticada (ELESBON, 2022, p. 182-183).
O “Consumidor.gov.br” opera como sistema de reputação, ranqueando os fornecedores, conforme a sua disposição em oferecer soluções céleres na plataforma22. Em tese, os dados disponíveis permitiriam ao usuário consumidor antecipar as chances de êxito e o tempo a ser despendido, mas isso depende exclusivamente de seu discernimento e de outros fatores externos (Costa, Francisco, 2020). Não há, portanto, ênfase no lado da “expertise” do triângulo de Katsh e Rule.
Sob o aspecto da confiança, o avanço da plataforma sugere que se encontra no caminho para conquistá-la. Crítica que se faz pertinente, no entanto, diz respeito à metodologia empregada para divulgação dos resultados positivos, que pode gerar viés favorável à percepção de resolutividade. Afinal, se o consumidor deixa de avaliar o resultado em determinada janela de tempo, automaticamente a questão é considerada resolvida, presumindo, portanto, resultado positivo (Figueiredo, 2020).
Quanto à desjudicialização, ainda não há dados que permitam conectar a saída da plataforma e o ajuizamento ulterior de demandas, de modo que não se pode descartar a possibilidade de que, mesmo registrada a questão como resolvida, por “default”, os consumidores tenham posteriormente se socorrido de demanda judicial.
Modelagem futura da plataforma “Consumidor.gov” talvez devesse cogitar da participação mais ativa, ainda que opcional, dos advogados23. Em primeiro lugar, porque isso permitiria mensurar a conduta desse importante ator nas vias extrajudiciais24. Confirmando ou rechaçando a visão de que a advocacia estaria em oposição à autocomposição25. Em segundo lugar, porque asseguraria maior proteção ao consumidor26, de modo a atenuar as assimetrias informativas que existem na relação de negociação direta com o fornecedor, litigante habitual (ELESBON, 2022, p. 183)27.
Conclui-se, portanto, que o serviço está em trajetória de expansão, mas que essa pode ser auxiliada por estratégias públicas de incentivo, particularmente no campo da desjudicialização. De igual modo, são possíveis aperfeiçoamentos na própria plataforma, a fim de que se alcance a plenitude da proteção aos interesses do consumidor.
4 VIESES E NUDGES
Vasconcelos e Carnaúba (2020), abordando o sistema multiportas sob a ótica da análise econômica do direito, sustentam que, ao se apresentarem ao particular diversas portas alternativas aptas em tese a solucionar o seu conflito, dele seria exigida a escolha sobre qual delas utilizar. Pressupondo tratar-se de sujeito racional, a opção recairia na de menor preço ou, mais precisamente, com os “menores custos de transação incorridos para a resolução da disputa”.
Thaler e Sunstein (2019), no entanto, salientam que o ser humano real não opera como hipotético “homo economicus”, estando sujeito a todo tipo de heurísticas, vieses e, por conseguinte, a influências sutis sobre o seu comportamento28. Tabak e Amaral (2018, p. 474-477) esclarecem:
O termo “viés” pode ser entendido como qualquer dinâmica cognitiva que leva os indivíduos a processarem as informações de uma maneira que sistematicamente tenha o potencial de frustrar o alcance de seus objetivos. (...) Para tomar uma decisão racional, maximizando os retornos possíveis, o indivíduo deve considerar uma grande quantidade de informações e relacioná-las sistematicamente, utilizando a racionalidade humana, que possui limitações. Por isso, é bastante comum o uso de atalhos mentais, chamados heurística, para se chegar a decisões de qualidade, de forma mais prática e com melhor custo-benefício. (...) Em determinadas circunstâncias, no entanto, o emprego da heurística pode produzir armadilhas, como levar um indivíduo a aceitar como verdadeira uma proposição simplesmente por ser de mais fácil compreensão.
Dentre os vieses mais significativos, podem-se elencar o viés de confirmação, de disponibilidade, de ancoragem e de enquadramento. Também são relevantes para o escopo deste trabalho os vieses de manutenção do status quo, de retrospectiva, de excesso de confiança e de desconto hiperbólico (TABAK, AMARAL, 2018, p. 477-482)
Essas propensões podem ser exploradas por arquitetos de escolhas29 no âmbito de políticas públicas, visando, por exemplo, a influenciar a maior inclinação dos consumidores à escolha de canais menos onerosos e mais adequados à proteção de seus interesses. Para tanto, “nudges” podem ser adotados (ELESBON, 2022, p. 69-70).
Sunstein (2014, p. 1) define os “nudges” como abordagens que orientam as pessoas a direções particulares, mas que também lhes permitem seguir seus próprios caminhos, preservando, assim, sua liberdade de escolha30. São exemplos de “nudges” mencionados pelo autor: GPS; aplicativo que informa a quantidade de calorias consumidas; mensagem de texto avisando do iminente vencimento de uma conta; inclusão automática em planos de aposentadoria; configurações padrão em computadores e celulares; advertências em embalagens de cigarros e informações nutricionais nas de alimentos.
O interesse crescente nos “nudges”, segundo Sunstein (2014, p. 2), provém do fato de que eles preservam a liberdade e em geral envolvem custos baixos (ou nenhum custo), e mesmo assim podem apresentar resultados imediatos, altamente efetivos e, em certos casos, com impacto maior do que os meios coercitivos.
Sunstein (2014, p. 3-6, passim) relaciona dez categorias de nudges, por ele consideradas as mais importantes para o escopo de políticas públicas: as regras-padrão (e escolhas ativas), a simplificação, o uso de normas sociais, o aumento de facilidade e conveniência, a transparência, as advertências (visuais ou de outra natureza)31, as estratégias de comprometimento prévio, os lembretes, a indagação sobre intenções futuras (objetivos de implementação) e a informação sobre a natureza e consequências de escolhas passadas (feedback).
Pesquisa realizada pela FGV, sobre a confiança no Poder Judiciário, concluiu que dentre as matérias que mais provavelmente levariam o cidadão a demandar em juízo estavam as questões relativas a bens de consumo de elevado valor. O Relatório ICJ Brasil 2021 sublinha, de um lado, a má avaliação do Judiciário no tocante à morosidade, custo e dificuldade de acesso. Mas de outro, denota a alta disposição para resolver conflitos na Justiça (Ramos, 2021).
Disso advém a relevância dos “nudges” para o campo ora debatido, das ODRs e, particularmente, do uso ampliado do “Consumidor.gov.br” como alternativa à judicialização das questões consumeristas. Nas palavras de Tabak e Amaral (2018, p. 484):
(...) o governo poderia, sem adotar qualquer ação coercitiva, auxiliar as pessoas a tomarem a melhor decisão social, com base em um desenho de políticas que efetivamente ajudem os indivíduos a seguirem o melhor caminho dentre as potenciais opções.
O que pode e deve ser realizado de modo transparente e livre de manipulações32.
5 DESENHO DE NUDGES VISANDO O INCENTIVO À AUTOCOMPOSIÇÃO
Alguns dos vieses anteriormente mencionados podem ser neutralizados ou redirecionados por “nudges”, para deles extrair resultados mais positivos no sentido aqui proposto (Elesbon, 2022, p. 71).
Os vieses de excesso de confiança33 e de otimismo34 explicam em parte a tendência à judicialização mesmo em situações em que os benefícios potencialmente alcançáveis são objetivamente menores dos que os esperados na autocomposição (Ibidem).
A recordação de experiências recentes, sejam elas próprias ou resultado da divulgação na mídia sobre casos judicializados, também influi na tomada de decisão, por força do viés de disponibilidade35.
Ambos os vieses podem ser mitigados por “nudges” que envolvam informações claras e adequadas sobre os riscos e benefícios reais envolvidos na escolha sobre a modalidade adequada de resolução do conflito. Expor, por exemplo, de forma clara e objetiva os prazos e os resultados obtidos em cada modalidade de resolução (ELESBON, 2022, p. 72). Destarte, “(...) a avaliação das perspectivas concretas de sucesso pode reduzir dramaticamente o viés de otimismo que normalmente caracteriza os postulantes” (CUEVA, 2021).
Também é oportunidade para fazer operar o poder das “influências sociais”, as normas não declaradas e inconscientes que resultam do comportamento coletivo36. Há a tendência poderosa de se conformar ao padrão social e certas condutas destoantes emergem, por vezes, do desconhecimento ou da percepção equivocada sobre as tendências de comportamento do grupo37 (a chamada “ignorância pluralística”)38:
As influências sociais se agrupam em duas categorias básicas. A primeira envolve informações. Se muitas pessoas fazem ou pensam algo, suas ações e pensamentos transmitem informações sobre o que seria mais conveniente fazer ou pensar. A segunda envolve pressão social. Se você se importa com o que outros pensam a seu respeito (talvez por acreditar, equivocadamente, que eles estejam prestando atenção ao que você faz - (...)), talvez acabe seguindo a multidão para evitar sua ira ou cair nas graças dela. (...) A ideia geral é clara. Se os arquitetos de escolhas querem mudar comportamentos com nudges, podem apenas informar às pessoas o que as outras estão fazendo. Às vezes as práticas alheias são surpreendentes e, por isso, afetam profundamente outras pessoas. (Thaler, Sunstein, 2019, p. 957 e 1181)
Em adendo, é possível trabalhar a aversão à perda39 e a tendência ao desconto hiperbólico40, para suscitar melhor disposição ao acordo no momento presente, em detrimento da suposição de ganho maior (e objetivamente improvável), no futuro. Eventualmente, utilizando ferramentas de inteligência artificial e de jurimetria para alinhar o conhecimento das partes quanto aos riscos e potencialidades da adjudicação.
Em juízo, seria de grande valia que o “Consumidor.gov.br” fosse estipulado como opção padrão. Conforme Thaler e Sunstein:
“(...) muitas pessoas aceitam a opção que exige o menor esforço - seja ela qual for -, ou o caminho de menor resistência. Lembre-se do que foi dito sobre a inércia, o viés do status quo e a heurística do “ah, tanto faz”. Todas essas forças nos levam a crer que, se há uma opção-padrão - uma opção que prevalecerá caso nenhuma outra seja escolhida -, podemos esperar que um grande número de pessoas acabará por mantê-la, mesmo que não seja boa. E como também já enfatizamos, essas tendências à falta de ação são reforçadas quando, de forma implícita ou até explícita, se sugere que a opção-padrão representa a ação normal ou mesmo a ação recomendada”. (Thaler, Sunstein, 2019, p. 1537)
A oferta de uma opção padrão explora a tendência à manutenção do status quo41. O seu uso inteligente pode trazer resultados positivos, direcionando o consumidor para a alternativa que lhe assegure melhores chances de atendimento de seu interesse e que, simultaneamente, proporcione o resultado desejado em termos de desjudicialização.
No caso da integração do PJe (processo judicial eletrônico) e do “Consumidor.gov.br”, implantada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT, 2019), observa-se que o desenho do sistema não observou essa premissa. De fato, a pergunta inicial apresentada pelo sistema é se o autor deseja utilizar a plataforma extrajudicial. Pressupondo que a maioria esteja assistida por advogado, dificilmente essa escolha será adotada depois que o patrono já iniciou o cadastro da demanda em juízo. Melhor seria o direcionamento automático para a plataforma, se constatada a pertinência de assunto e parte no polo passivo, como opção padrão, possibilitando ao usuário a intervenção ativa para retornar ao PJe (ELESBON, 2022, p. 74-75).
Definir o “Consumidor.gov.br” como opção padrão para os consumidores que acessem o processo eletrônico não seria subterfúgio para afastar demandas, mas desenho compatível com o modelo de complexidade e custo progressivos, que por muitos tem sido defendido. Nada impediria, por exemplo, que o usuário dispensasse a alternativa inicial e passasse à etapa seguinte, ciente, no entanto, das perspectivas de tempo e dos ônus correspondentes (por exemplo, da necessidade de participar de uma audiência) (Ibidem).
Por sinal, esse foi o desenho escolhido pelo Tribunal de Justiça da Bahia, ao modelar o sistema de “negociação virtual” no Projudi, para os Juizados Especiais (TJBA, 2020). Embora não use o “Consumidor.gov.br”, a premissa é a mesma. A diferença está em que o fluxo de negociação é desencadeado automaticamente. É a opção padrão que atua como nudge (ELESBON, 2022, p. 75).
A simplificação é igualmente fundamental para o design de soluções que envolvam as ODRs. Da experiência com o eBay, Rule sintetiza: os usuários desejam que o processo de ODR seja rápido, simples, justo para todos os participantes e de fácil entendimento (RULE, 2017, p. 368)! É imperioso, portanto, evitar complexidades desnecessárias42.
No caso do “Consumidor.gov.br”, é necessário o cadastro do usuário para acesso à plataforma, com uso de conta “.gov”43. Ora, em se tratando de espaço virtual, de ODR, pode-se presumir com razoável grau de convicção que o usuário que a acesse diretamente seja possuidor, no mínimo, de um smartphone (lembrando que a maior parte dos acessos, no Brasil, segundo pesquisa recente, se dá por essa via, não por computadores) (VALENTE, 2020). Talvez fosse o caso de permitir o acesso com o uso de perfil do Google, da Apple Store, Facebook ou outro serviço amplamente disseminado, desde que proporcionada segurança na identificação. Ao menos, para minimizar a necessidade de introduzir dados pessoais de uso repetitivo.
A visibilidade merece igual atenção. Diversos tribunais subscreveram a adesão ao acordo de cooperação firmado entre o CNJ e a Senacon e passaram a divulgar o “Consumidor.gov.br” em suas páginas institucionais. No entanto, nem sempre há o destaque necessário e o percurso para o usuário externo localizar o “banner” que informa a existência da plataforma é tortuoso. Simplificar essas etapas, inclusive a linguagem utilizada, e conferir o maior destaque possível é a base do design centrado no usuário do serviço.
A maioria dos consumidores não litiga de modo habitual. Pesquisas revelam, ao contrário, certa aversão a estar em juízo44. Logo, não há conhecimento prévio sobre como comportar-se perante o litígio45. Esse tipo de situação é propícia aos nudges:
O que vimos até aqui sugere que talvez as pessoas precisem de um nudge acima de tudo para tomar decisões que têm efeitos posteriores; para aquelas decisões difíceis, incomuns e com pouco feedback e para aquelas em que nem sempre a escolha feita e a experiência vivida são dúbias. (Thaler, Sustein, 2019, p. 1389)
Thaler e Sunstein propõem o uso de “nudges” para substituir o feedback em processos de longo prazo46. Por exemplo: ao acessar o balcão do Juizado Especial Cível ou a página do Tribunal de Justiça, visando propor demanda consumerista, ser informado de que existe o canal extrajudicial, de que milhões de pessoas o tem utilizado e de que os resultados são mais rápidos do que os esperados em juízo (Elesbon, 2022, p. 74).
Vale dizer que o “Consumidor.gov.br” não constitui canal extrajudicial exclusivo. Ele se soma a tantos outros, públicos e privados, endógenos aos fornecedores47 ou exógenos a eles. Observe-se que, segundo pesquisas, os S.A.C.s das próprias empresas ainda são o canal preferencial para o diálogo entre consumidores e fornecedores. O painel do “Consumidor.gov.br” consigna que oitenta por cento dos que ali ingressaram já tentaram solucionar o problema por pelo menos uma vez antes de acessarem a plataforma48.
Os próprios fornecedores poderiam, por exemplo, divulgar a existência da plataforma nas faturas de cobrança, nos aplicativos e extratos. Nos SACs, durante os comezinhos intervalos de espera, nada impediria que o “Consumidor.gov.br” fosse mencionado. E, de modo escalonado, ao fim dos atendimentos pelos canais próprios, já poderiam ali indicar a plataforma como alternativa para os usuários insatisfeitos49. Inclusive com opção do encaminhamento do link para o consumidor ou de compartilhamento dos dados com a plataforma, se solicitado (evitando que o consumidor precise fazer novo cadastro para acessar o “Consumidor.gov.br”)50.
Esse desenho pode considerar, ainda, o efeito de pré-ativação (priming). Indagar ao usuário, antes de entrar no sistema, sobre a intenção de obter solução amigável na plataforma extrajudicial pode influenciar a sua própria disposição posterior nesse sentido51.
O “Consumidor.gov.br” já incorpora o conceito de “nudge” informacional, na medida em que opera como sistema de reputação. Entretanto, o simples fato de tornar mais visível essa informação preexistente, e hoje restrita ao próprio site, pode amplificar os seus efeitos. Seria o caso de noticiar esse ranking periodicamente, na mídia e em outros canais de grande penetração52. Essa divulgação viria ao encontro do que preceitua a Resolução 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça53.
Esses são exemplos de “nudges” que poderiam operar dentro dos sistemas, nos portais dos tribunais, nos serviços de atendimento ao consumidor, dentre outros canais, e se voltam precipuamente ao consumidor. Mas há outras abordagens a considerar, no plano mais geral, ligado aos aspectos jurídicos, materiais e processuais, que cercam os litígios consumeristas (ELESBON, 2022, p. 76).
Um dos incentivos que tem ganhado força nos debates acadêmicos, que repercute em algumas decisões judiciais e que está sendo discutido no Congresso Nacional54 diz respeito ao interesse processual. Sem que tentativa de resolução pré-processual seja demonstrada, estaria descaracterizada essa condição da ação (GAJARDONI, 2020, p. 99-114; PARO, MARQUES, DUARTE, 2020, p. 275-323).
Não se cuida propriamente de “nudge”, uma vez que assume caráter peremptório, limitando efetivamente a liberdade de escolha dos interessados. Além disso, o filtro de interesse processual atua em somente um dos vértices do litígio, nos autores, pressupondo, portanto, que a redução das demandas esteja associada à ideia de prevenção de ações frívolas ou de conteúdo banal, quiçá aventureiro e fraudulento. Essa alternativa desconsidera o fato de que muitas demandas são fundadas e oriundas de lesões repetitivas cometidas por fornecedores cujas práticas abusivas não tem sofrido repreensão adequada. Logo, apenas refrearia ou retardaria ações oriundas dos consumidores em contextos nos quais os fornecedores, em tese, estariam dispostos a solucionar os impasses vivenciados pelos primeiros (ELESBON, 2022, p. 77).
Outros incentivos, porém, talvez fossem mais eficazes para atuar bilateralmente, na vontade tanto de fornecedores quanto de consumidores. A exemplo da correlação entre o comportamento extrajudicial das partes e o dano moral extra rem55.
Em essência, o que aqui se propõe é examinar, a par dos danos ocasionados in re ipsa, se a conduta das partes demonstra, de um lado, a boa-fé do consumidor em buscar a solução do problema vivenciado em lugar de ganho financeiro e, de outro, a disposição efetiva do fornecedor em solucionar e compensar o consumidor pelos revezes provocados56, com atitude respeitosa e cooperativa (ELESBON, 2022, p. 81).
A tentativa de resolução pré-processual seria indicadora desses atributos positivos, de modo que o consumidor que procura o Judiciário diretamente, em circunstâncias nas quais o histórico do fornecedor demonstra cooperação, poderia ter denegado o dano extrapatrimonial. E o fornecedor que, instado na via extrajudicial, deixa de atuar cooperativamente, ao reverso seria condenado ao pagamento desse importe, pelo desperdício do tempo do consumidor e pelo menosprezo à sua dignidade. Ambas as partes teriam incentivos e sanções para sua falta de colaboração (Idem, p. 82)57.
Vale dizer que esse fator de estímulo poderia operar até mesmo em situações nas quais o dano é caracterizado in re ipsa. Nesse caso, não na identificação do an debeatur, mas do quantum debeatur, graduando-se a compensação conforme as atitudes cooperativas ou conflitivas dos envolvidos. O fato de que o dano moral é quase onipresente nas ações de consumo sugere a viabilidade dessa abordagem (Ibidem)58.
Os caminhos são múltiplos e as experiências pretéritas trazem otimismo. Todavia, em que pese ser possível traçar lineamentos e estratégias mais gerais, Sunstein adverte sobre a necessidade de que os “nudges” sejam adequadamente projetados e testados, baseando-se em dados empíricos, não apenas em intuições e evidências anedóticas59.
A eficiência dos “nudges” e sua aderência aos objetivos traçados (no caso, o incentivo não coercivo às vias extrajudiciais sem vulneração à tutela do consumidor) depende do seu desenho e de sua experimentação e avaliação rigorosas60. O que, a rigor, também se estende ao próprio design da plataforma de resolução de disputas, que virá a incorporá-los (ELESBON, 2022, p. 84).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há grande potencial para o emprego de ODRs como alternativas à judicialização, com o intuito de conter o avanço dos processos consumeristas. A política judiciária nacional de resolução adequada de conflitos aponta nesse sentido, conectando-se com o macrodesafio do Poder Judiciário de ampliar os meios autocompositivos e a prevenção de demandas.
O “Consumidor.gov.br” tem conquistado espaço como plataforma pública de negociação on-line entre consumidores e fornecedores. Além de proporcionar a interlocução em ambiente neutro, permite a coleta e mensuração dos resultados alcançados, fornecendo dados estruturados sobre tempo de resposta, resolutividade e satisfação expressa pelos usuários e funcionando como sistema de reputação.
Porém, os números positivos do “Consumidor.gov.br” e das demais plataformas de ODR em operação no país ainda não tem produzido reflexos na diminuição do ingresso de demandas consumeristas. O que sugere a existência de espaços amplos para aperfeiçoamento das próprias plataformas e para a sua divulgação.
Guardadas as devidas cautelas éticas, nada impede, antes recomenda, a adoção de desenhos que orientem e estimulem a adesão a esses canais, tanto por fornecedores, quanto por consumidores, funcionando como “nudges” comportamentais.
Como é da essência dos nudges, deve ser respeitada a liberdade decisória dos envolvidos e asseguradas a transparência e a imparcialidade. Isso implica guarnecer o consumidor de conhecimento sobre os meios de resolução de conflitos disponíveis e sobre as implicações jurídicas do conflito, a fim de mitigar as assimetrias preexistentes.
Oferecer porta ágil, descomplicada, barata e acessível é meta digna de promoção. Afinal, a legislação consumerista já propugna, desde a edição de seu diploma fundamental, a oferta de vias alternativas de solução de conflitos (CDC, art. 4º, V). Existe, em realidade, déficit histórico a compensar. Essa abertura, no entanto, deve ocorrer no sentido de maximizar o acesso do consumidor à tutela de seus direitos e não de refreá-lo, quando presente a violação.
A desjudicialização é propósito nobre, mas a tutela do vulnerável precisa ser preservada, ainda que sua promoção ocorra dentro do espectro mais amplo de modalidades de acesso à ordem jurídica, em conjunto com as plataformas extrajudiciais.