“’As regras’, gritou Ralph. ‘Você está desobedecendo as regras!’
‘Estou pouco ligando!’
Ralph fez o possível para manter a calma.
‘Mas sem regras a gente não tem nada!’
Só que Jack gritava mais com ele.
‘Que se danem as regras! A gente é forte - e caça! Se existir algum monstro, a gente caça também! A gente cerca, e bate, e bate, e bate -!’”
William Golding
(Senhor das Moscas, 1ª Edição, Rio de Janeiro, Objetiva, 2014, p. 101)
Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Função do direito e caráter coercitivo das normas jurídicas produzidas pelo estado; 3. O falso encantamento das regras produzidas no cyberspace pelo code; 4. Interação entre as regras do code e as normas de direitos humanos na construção da norma jurídica; 5. Considerações finais; 6. Referências.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
William Golding, em seu clássico romance Senhor das Moscas, revela a que ponto se pode chegar, sobretudo à barbárie, quando não se tem regras em qualquer que seja a comunidade ou a sociedade, ainda que formada por apenas inocentes e puras crianças2. O desconhecimento dessa estória literária, o mais das vezes, abre a fenda por muitos aceita de que o universo do cyberspace deveria ficar imune à incidência de normas jurídicas produzidas pelo Estado.
Essa ideia floresceu ainda em 1996 quando John Perry Barlow, co-fundador da Fundação Electronic Frontier, emitiu, no Fórum Econômico de Davos daquele ano, uma “Declaração de Independência para o Ciberespaço” (Declaration of Independence for Cyberspace). Nela, como acentua Lawrence Lessig, essa imunidade estaria ancorada numa liberdade sem anarquia, no controle sem normas jurídicas elaboradas pelo Estado e no consenso sem poder estatal3. Esse controle, por sua vez, seria equacionado pela criação pelo próprio cyberspace de regras próprias que o regulassem, a formarem uma espécie de Code (Código).
Lembra Martin Ford que qualquer regulação restritiva do comportamento no ambiente digital, em especial no caso de pesquisas na área de inteligência artificial (IA), para citar apenas um exemplo da complexidade que a envolve, além de ser inócua, dado o alcance global das inovações tecnológicas, poderia comprometer a competitividade entre os países, o que nenhum deles deseja4.
No entanto, recentemente, o Future of Life Institute, organismo sem fins lucrativos, veio a público, em carta aberta lançada no dia 29 de março de 2023, pedir a suspensão imediata do desenvolvimento e treinamento de inteligências artificiais (IAs), conclamando laboratórios de IAs a paralisarem por seis meses os seus trabalhos, para que a comunidade internacional do cyberspace estabeleça rigorosos protocolos de segurança, supervisão e rastreamento dessas tecnologias com habilidades quase humanas, após a chegada da versão mais nova do ChatGPT (o ChatGPT-4, criado pela Startup OpenAI )5.
Por outro lado, há pouco mais de 70 anos, o escritor britânico George Orwell lançou seis meses antes de sua morte o livro 1984. Nessa obra, ele conta a história de uma sociedade vigiada 24 (vinte e quatro) horas por dia pelo Big Brother (o grande irmão), que olha, escuta e até mesmo sente a respiração6 de todas as pessoas que a integram. George Orwell chega a afirmar no livro que, nesse modelo totalitário de sociedade, uma crítica ao regime totalitário da União Soviética então existente, o principal inimigo do homem era o seu sistema nervoso, pois qualquer hesitação poderia ser capturada pelo Big Brother7. Será que o que seria o Big Brother no passado corresponderia hoje às Big Techs? E o que seria no passado a tela de uma TV no livro de Orwell, os smartphones de hoje?
Só que diferente do passado cuja vigilância se dava pelo controle dos comportamentos que o homem buscava esconder ou se privar de praticá-los externamente, hoje, a vigilância no homem dá-se pelo seu incontrolável exibicionismo e interação, por sua própria iniciativa e sobretudo vontade e concordância. E isso fica ainda mais claro quando os usuários do cyberspace resistem à aplicação do direito e das normas jurídicas produzidas pelo Estado, preferindo sofrer a incidência das regras produzidas pelo próprio mundo digital (Code).
Na sociedade atual da vigilância digital, o homem, se for o caso, está até disposto a renunciar direitos humanos ou fundamentais para ter acesso ao admirável mundo novo8 das plataformas ou mídias digitais que povoam o cyberspace e a internet. E quem quer que o detenha nesse propósito é visto como inimigo e alguém que deseja estragar a sua felicidade. Ter direito de voz, de se manifestar livremente, de ganhar dinheiro, de ser conhecido e talvez até reconhecido são alguns dos sedutores e atrativos que o cyberspace encanta bilhões de pessoas em todo o mundo.
Na sociedade tecnológica, da informação, do mundo digital, o direito elaborado pelo Estado e de perfil coercitivo consegue regular e incidir no mundo do cyberspace? Qual o espaço e o alcance do direito estatal no cyberspace? Na sociedade da vigilância digital, tal como vivemos hoje, há algum futuro reservado às normas jurídicas do Estado? Então, como o direito há de proteger o homem que não quer essa proteção jurídica, preferindo as regras instituídas pelo próprio cyberspace?
Este ensaio almeja trazer singelo contributo ao recente debate na doutrina internacional se o direito produzido pelo Estado e, por conseguinte, as suas normas jurídicas, conseguem regular o universo do cyberspace, em razão da postura refratária dos agentes digitais em aceitar qualquer interferência nesse ambiente. O esforço investigativo residirá, com base na análise do pensamento de vários autores internacionais que se dedicam a essa problemática, se, na sociedade tecnológica, da informação e do mundo digital, existe atualmente algum espaço reservado ao direito estatal no cyberspace e se haveria algum futuro a ele.
Buscará se aquilatar como o direito há de proteger o homem que não quer essa proteção jurídica, preferindo as regras instituídas pelo próprio cyberspace. A presente investigação sobrevoa, inicialmente, sobre o terreno das características das normas jurídicas estatais e a função do próprio direito, enveredando o estudo para analisar como tem se revelado a produção de regras no ciberespaço pelo Code. Enfim, objetiva saber, à luz do método hipotético-dedutivo, se é possível construir possível norma jurídica que seja resultado da interação interpretativa entre as regras do Code e as normas de direitos humanos.
2 FUNÇÃO DO DIREITO E CARÁTER COERCITIVO DAS NORMAS JURÍDICAS PRODUZIDAS PELO ESTADO
Castanheira Neves chega a profetizar, inicialmente, com certo ar desesperançoso de que, diante do que se vê no horizonte da evolução das atuais estruturas sociais e culturais, o fim do direito não seria um absurdo tanto assim, como se imagina. Porém, Castanheira Neves pondera que, embora seja cogitável condenar o direito à morte, tal como se o concebe hoje, nada obsta a reconstituição de seu sentido, reconhecendo que “na doença se reconhece o valor da saúde, na morte se retoma o sentido da vida”9.
Para ele, o direito hoje enfrenta um movimento de deliberada desjuridicização, especialmente “pelo abandono de sua intenção materialmente normativa a favor de esquemas tão-só de organização ‘processual’ ou condicionantes de uma reconstrutiva ‘reflexidade” autopoiética relativamente a todos os polos e subsistemas sociais também autopoiéticos e auto-referentemente autonomizados”10.
Daí afirmar que o direito não se reduz a uma organização finalística e eficaz, baseada em estratégia de fins e de resultados, mas se notabiliza como ordem justa da sociedade que exige uma validade que o fundamente, detentor de sentidos axiológico-normativos. E, ainda, arremata, para não restar qualquer dúvida da posição do direito no tecido social, Castanheira Neves: “O direito é uma categoria ética, não uma categoria já estratégica, já ‘científica’ - e o seu universo é prático-axiológico, não apenas decisório e técnico-intelectual”11.
Uma das funções mais destacadamente relevantes do direito consiste em limitar o poder, qualquer que seja ele, político, econômico, social, comunicacional, ideológico, científico, religioso, militar e, hoje, cada vez mais desafiador, o poder privado de empresas globais, sobretudo de tecnologia, como a Google, Amazon, Meta, Microsoft, Apple, só para mencionar alguns. Nesse ponto em particular, Luis Recasens Siches acentua que o direito atua mantendo o equilíbrio entre a anarquia e o despotismo, evitando a primeira ao limitar o poder dos indivíduos particulares e o segundo, ao restringir o poder governamental12.
Esse poder das Big Techs tem ganhado contornos cada vez mais nítidos, quando passam a produzir por organizações, empresas, organismos não-governamentais, regras aplicáveis ao universo do cyberspace, como se fosse uma espécie de Código específico (Code), desprezando por completo a norma jurídica confeccionada pelo Estado.
Um dos traços marcantes da norma jurídica para os teóricos normativistas do direito sempre foi o seu caráter coercitivo e a consequente possibilidade de aplicação de sanção pelo Estado. Arnaldo Vasconcelos identifica norma jurídica como aquela que for “concomitantemente bilateral, disjuntiva e sancionadora”13.
Como assinala Carlos Santiago Nino, as normas constituem técnicas de motivação social que induzem o homem a se comportar de determinada maneira e o direito escolheu a que autoriza a aplicação de sanção14.
Norberto Bobbio chega a afirmar que “a experiência jurídica é uma experiência normativa”, pois “estamos envoltos em uma rede muito espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela direção as nossas ações”15. Porém, não é apenas o Estado que produz normas, de caráter impositivo a regular e a influenciar condutas e comportamentos humanos. Ao lado das normas estatais, que se denominam de jurídicas, existem ainda as normas religiosas, morais, sociais, costumeiras, econômicas, além de inúmeras outras.
Aliás, resgata Norberto Bobbio da história pós-idade média que os Estados modernos foram edificados através da eliminação ou absorção dos ordenamentos jurídicos vários que existiam nos feudos, nas corporações e nas comunas da sociedade medieval, monopolizando a produção do direito em uma espécie de teoria estatalista16.
Adverte Lourival Vilanova que o único conteúdo possível do jurídico e, portanto, da norma jurídica, é a conduta humana e os fatos só despertam relevância para o direito quando lhe afeta17. Segundo leciona, o direito é uma expressão específica do dever-ser, que corresponde à formulação normativa de um valor. E esse dever-ser normativo não tem um conteúdo determinado, mas devido dentre várias das condutas possíveis18.
No entanto, como denuncia Byung-Chul Han, ao contrário do tradicional modelo de Estado de direito alicerçado em coerções e proibições, a sociedade da vigilância digital procura se valer da técnica dos incentivos positivos, já que explora a liberdade, ao invés de suprimi-la, controla inconscientemente a vontade dos indivíduos, em vez de arrebatá-la violentamente, e instala, no lugar do poder disciplinador repressivo, um considerado inteligente que não dá ordens, senão um que “que no manda, sino que da com el codo, es decir, da um toque com medios sutiles para controlar el comportamiento”19.
Há muito Castanheira Neves já percebia que o homem poderia ser substituído por máquinas capazes de aprender e de governar e que, na sua interna pessoalmente, resultaria na sua própria anulação e o consequente nascimento do homem-máquina20. À frente do seu tempo, Castanheira Neves profetiza que, cada vez mais, ao futuro se reserva a substituição da normatividade jurídica por tecnologias sociais, a ponto de confidenciar que “o que temos são homens socialmente cada vez mais surdos ao dever que responsabiliza e a procurarem unicamente uma desvinculada e imediata satisfação - satisfação num mundo tornado ele próprio menos morada do que objeto de manipulação e exploração que a possibilita”21.
Nesse mesmo fio de novelo, ao que tudo indica, atento a essa mudança no novo mundo que se descortinava, Lawrence Lessig passou a sustentar que a regulação do comportamento dos usuários na internet ou no cyberspace deveria ocorrer primariamente pelo Code, sem controle do Estado por sua estrutura normativa, e a arquitetura desse controle dependeria da configuração específica de cada plataforma ou espaço digital22.
3 O FALSO ENCANTAMENTO DAS REGRAS PRODUZIDAS NO CYBERSPACE PELO CODE
Como ressalta Chris Reed e Andrew Murray, o ciberespaço, na verdade, compreende vários fenômenos decorrentes das inúmeras atividades realizadas pelos seus atores, indo desde a compra e venda de produtos e serviços a compartilhamentos de informações e conteúdo, além de interação mediante tecnologias, em um cenário de constante transformação com novas ferramentas e funcionalidades sendo diariamente criadas23.
Gûnther Teubner aponta como agentes não estatais e, portanto, sujeitos capazes de produzir regras no ambiente do cyberspace que se aproximam de uma constituição, as organizações internacionais, empresas multinacionais, sindicatos internacionais de trabalhadores, corporações de interesses e demais organismos não governamentais24. Teubner, ao chamá-las de global players, revela que essas empresas multinacionais fazem a regulação privada do mercado, mediante a estandardização de modelos normativos e a confecção de regras internas em intenso processo de negociação entre as organizações25.
Ao confeccionar essas regras, o cyberspace, inegavelmente, produz normas jurídicas, pois proíbem, obrigam e permitem determinados comportamentos e condutas dos usuários no ambiente digital. Riccardo Guastini, a propósito, destaca que não apenas aquelas produzidas pelo Estado, formalmente, por seus órgãos de produção legiferante, são normas jurídicas, mas também aquelas de teor nitidamente normativo qualquer que seja o nome que lhes atribua, o procedimento de criação que adote ou o órgão que as produza26.
Para Günther Teubner, o direito produzido pelo Estado fracassa solenemente em tentar regular a internet e o cyberspace, na medida em que qualquer implementação e incidência de normas jurídicas nesse sentido é paralisada pelo caráter transnacional da comunicação digital27.
Daí a necessidade de um repertório normativo de caráter mais técnico e, portanto, mais ágil e especializado do que os processos tradicionais de elaboração de normas jurídicas pelo aparato estatal. Enquanto o Estado cria normas jurídicas para um espaço territorial onde consiga projetar os seus efeitos e fazer cumprir coercitivamente as suas decisões político-jurídicas, o cyberspace pode instituir por seus agentes não governamentais regras técnicas, de teor igualmente normativo, através de uma espécie de Code, em um espaço que não respeita fronteiras nem limites territoriais.
Teubner, inclusive, consegue enxergar vantagens técnicas que só a arquitetura do Code proporciona em performance mais eficiente do que as normas jurídicas estatais, uma vez que permite, na regulação do cyberspace, a utilização de mecanismos tecnológicos coativos na execução de comandos impositivos28. Assim, segundo ele, as condutas dos usuários da plataforma, interligados em rede, não seria regulada por ordens ou mandatos de comportamento alicerçados em sanções, mas por coações eletrônicas dos protocolos dos agentes não estatais29.
No entanto, o cyberspace não é formado, embora seja mais comum, apenas por regras técnicas. Esclarecem Chris Reed e Andrew Murray que, no ciberespaço, existem também normas sociais, destinadas a regular o conteúdo, o estilo e o objetivo das comunicações individuais, na troca de e-mails e de postagens em redes sociais digitais. As regras técnicas, por seu turno, definem padrões de comportamento de cunho técnico e regulam a interação de dispositivos computacionais30.
Além disso, Chris Reed e Andrew Murray criticam a tese de Lessig quanto à eficácia do Code na regulação do ciberespaço, colocando em dúvida a perfeição desse controle. Ponderam que esse ambiente digital é mais complexo do que se pode imaginar, notadamente pela existência de redes de interação e comunicação que se entrelaçam entre milhares de usuários individuais, elaboradores de regras do Code, órgãos administrativos do Estado, mercado e empresas31, tornando absolutamente insuficiente a regulação desse universo apenas por intermédio de regras técnicas confeccionadas no cyberspace.
O Code sustentado por Lessig, pois, não se constitui em sistema de controle tão perfeito assim, graças principalmente à sua intrínseca plasticidade. Explicam Chris Reed e Andrew Murray que essa característica o submete a constantes modificações de seu conteúdo por influência dos próprios usuários, que deixam de utilizar ou de se engajar em determinadas plataformas, caso não tenham os seus anseios ou mesmo interesses atendidos32.
Algumas das redes sociais mais utilizadas, tais como o Facebook e Instagram, por exemplo, mudam frequentemente a sua política interna de complaince quase sempre na exata medida das manifestações e críticas de seus usuários. Essa influência social acaba, em última análise, controlando e alterando a normatividade do Code e o enfraquecendo, por via de consequência, em sua efetividade. Aliás, essa mesma observação não passou despercebida por Chris Reed e Andrew Murray, quando admitem que, embora o Code normalmente inicie com regras mais rígidas e restritivas, termina ao longo do tempo as flexibilizando para acompanhar as demandas do mercado33.
O que se observa é que as normas sociais acabam por moldar as regras do Cyberspace, alargando ou restringindo determinados comportamentos de comunidades de usuários.
Isso bem demonstra, na esteira do que realça Chris Reed e Andrew Murray, que as regras elaboradas por órgãos técnicos no cyberspace não ostentam forte força normativa, como as normas jurídicas estatais, mas conseguem influenciar o comportamento de seus usuários e eventual descumprimento acarreta a inacessibilidade à plataforma ou àquele espaço digital34.
Chris Reed e Andrew Murray citam o caso do eBay para explicar como essa plataforma digital de compra e venda de produtos soluciona os conflitos que surgem entre compradores e vendedores. A princípio, busca resolver por meio da mediação na intenção de obter um acordo entre as partes. Um vez frustrada essa tentativa, a plataforma profere uma decisão apontando quem tem razão, cujo desfecho - que normalmente não leva mais do que 14 (catorze) dias - resulta, na hipótese de vitória do comprador, na devolução do valor pago pelo próprio eBay, e não pelo vendedor35.
Mas se o problema ocorrer em relação à própria plataforma digital? Será que não haveria necessidade de instaurar uma ação judicial perante o Poder Judiciário, invocando normas jurídicas estatais? Muito possivelmente, somente restaria essa opção.
Como se observa, por mais entusiasmo que a ideia do Code possa gerar como único standard normativo do cyberspace, a frequente ocorrência de problemas decorrente dessa exclusiva regulação vem desnudando a fragilidade dessa teoria e impulsionando concepções que autorizam o desenvolvimento de parcerias normativas de natureza público-privada.
Afinal, o modelo de negócio das plataformas digitais acaba por colocar os usuários em situações de mendicância digital por acesso, já que os submete, no mais das vezes, a qualquer renúncia a direitos humanos para desfrutar do direito de participar daqueles grupos do cyberspace. No passado não tão distante, a escravidão do homem provinha da vontade manifestada externamente por grupos ou pessoas que o oprimiam, agora, no mundo digital, é o próprio usuário, por sua própria vontade, que se sujeita a situações de subserviência e submissão ao império do cyberspace. A escravidão digital opera no plano interno e íntimo do usuário.
Sem falar, como sugere David J. Chalmers, que o próprio mundo virtual pode não apenas reproduzir as desigualdades, injustiças e desigualações já existentes do mundo real, alicerçadas em discriminações por raça, gênero, classes e identidade étnica e nacional, mas também promover novas formas de desigualdade e inovadoras relações opressivas em desfavor dos indivíduos de carne e osso36.
4 INTERAÇÃO ENTRE AS REGRAS DO CODE E AS NORMAS DE DIREITOS HUMANOS NA CONSTRUÇÃO DA NORMA JURÍDICA
O cyberspace, por isso mesmo, não se constitui apenas em um ambiente de interação entre pessoas, mas um modo particular de vida, de trabalho, de produzir riqueza e prosperidade. Enfim, um modo de ser e de viver, de se integrar atualmente ao mundo e à sociedade. Ser alguém com alguma importância social. E essa importância é medida, no caso das redes sociais digitais, pelo número de seguidores (followers), pelo número de curtidas, pelo número de compartilhamentos e de engajamentos. Portanto, por números e por fórmulas algorítmicas.
Porém, esse modelo de vida, a bem da verdade, apenas gera a falsa sensação de se sentir inteiramente livre. Em verdade, alerta Byung-Chul Han que as tecnologias da informação digital faz da comunicação o mais invisível mecanismo de vigilância, gerando essa falsa impressão de não se sentir vigiado, mas inteiramente livre37. Mas é justamente o contrário. Nunca se esteve tão aprisionado ou acorrentado com grades e correntes invisíveis aos smartphones e aos dispositivos tecnológicos. É o novo modelo de escravidão da sociedade contemporânea, nunca antes experimentado. Com a diferença de que essa escravidão digital conta com a “feliz e desejada” anuência do escravizado.
É evidente, contudo, que a utilização exclusiva do modelo de normas jurídicas estatais de teor coercitivo para regular o cyberspace resta superado. Afinal, não existem mais nessa arena digital os elementos essenciais que animam a incidência de normas jurídicas produzidas pelo Estado, como a coerção física, os bens e os objetos materiais e a territorialidade. Nada é mais físico ou palpável, mas tão somente digital ou virtual. Cada vez mais as tecnologias digitais deixam de ser produtos para se transformarem em serviços à disposição dos usuários.
No meio digital, quem interage não é o homem, enquanto pessoa, na sua expressão física, mas o homem-virtual, o homem-perfil das redes sociais, o homem-avatar do metaverso. Inspirado em George Orwell, a despessoa38. Nesse contexto, a liberdade propiciada pelo direito não lhe interessa, senão aquela sensação já supostamente alcançada no cyberspace. O homem-virtual, nessa toada, não almeja direitos humanos nem fundamentais, baseados na estrutura normativa do direito.
Richard Susskind levanta interessante problemática quando exemplifica o caso de plataformas digitais, adotadas em tribunais online, que limitam, por decisão exclusiva dos engenheiros dos softwares, o número de caracteres no preenchimento de formulários online, destinados a veicular petições, reclamações ou manifestações de usuários do serviço jurisdicional oferecido digitalmente. Susskind até reconhece o poder de tais plataformas de confeccionarem essas regras, ainda que autoritárias e, portanto, impostas sem que haja qualquer previsão no direito produzido pelo Estado. Porém, pondera que tais restrições criadas pelo Code não podem afetar direitos dos usuários39. E isso, certamente, poderia ocorrer nas situações em que o usuário precisasse de mais espaço de caracteres para apresentar petições, impugnações, defesas ou recursos em casos concretos que possivelmente se afigurassem mais complexos.
Por tal razão, sugere Richard Susskind a elaboração de regras do Code por meio de comissões ou grupos, compostos de desenvolvedores de sistemas, políticos, legisladores e até mesmo de juízes, que possam apresentar previamente um script altamente específico de funcionalidades do que se almeja do sistema, com autonomia para se adaptar aos novos desafios que vão surgindo ao longo do processo de criação do software. Além disso, segundo ele, os passos do processo de criação seriam submetidos a frequentes escrutínios por usuários à luz das regras gerais previamente estabelecidas, devendo tais comissões ou grupos assumirem o compromisso de não criarem complicadas regras40.
Sem embargo disso, o manejo somente do Code no ciberespaço abre margem para flertar com regimes totalitários até piores do que aqueles que a história das civilizações humanas já testemunhou. É preciso mais. O conteúdo ético imanente aos direitos humanos consiste em fundamental farol nesse processo de construção do sentido consubstanciado na norma jurídica.
Como já dito, dentre as várias funções do direito, um das mais importantes e destacadas é limitar o poder, seja o poder do Estado, seja o poder dos particulares (o poder privado). Ricaséns Siches, como já assinalado linhas acima, termina preconizando que, se o direito não limita o poder dos particulares, a sociedade rapidamente se transforma em anarquia.
O homem-perfil ou o homem-avatar, um mero seguidor, portanto, pode até ter a consciência de se achar aprisionado ao totalitarismo do mundo digital, mas - o que é o pior - é exatamente isso o que deseja, como se fosse um crescente viciado em drogas ou entorpecentes. O homem-perfil, assim, não passa de um súdito das Big Techs, e não mais um cidadão titular de direitos. O desafio do direito no presente e no futuro, portanto, será libertar o homem da alienação ao qual se encontra entorpecido. Por isso mesmo, o direito tem um papel fundamental, como sistema social não apenas normativo, mas sobretudo pedagógico e educativo, para servir como legítimo instrumento de libertação do homem. Liberdade pelo conhecimento jurídico. O direito como o principal influenciador digital da sociedade.
Para cumprir esse papel, porém, não se pode operar, no confronto entre as normas jurídicas estatais e as regras do cyberspace, a lógica da primazia ou da supremacia de uma norma sobre outra, mas da interação entre as duas espécies de juridicidade, de modo a se criar uma verdadeira norma jurídica, aplicável ao caso concreto. Essa interatividade produz conhecimento e, por conseguinte, normatividade para regular o cyberspace, não se adstringindo, pois, somente a regras do Code nem sequer unicamente a normas jurídicas estatais, mas a normas que resultam da combinação aplicativo-decisória das duas, formando a norma jurídica.
A relação entre a regra do Code e a norma jurídica estatal não deve ser de natureza hierárquica, mas heterárquica. De pura interação e de produção de sentido a partir de duas textualidades que formam uma única norma jurídica para a situação a ser resolvida.
No exemplo trazido por Richard Susskind, jamais se poderia cogitar da possibilidade de o direito de acesso à justiça ou à proteção judicial (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988, c/c o art. 25 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos - Pacto de San Jose da Costa Rica) ou mesmo de recorrer contra alguma decisão judicial (art. 25.2.b da Convenção Interamericana de Direitos Humanos) ser restringidos pelo número de caracteres dos formulários disponibilizados pelos tribunais que oferecem o seu serviço online. No conteúdo da regra técnica do Code (criar número de caracteres em formulários online) já estaria incorporada a norma de direitos humanos que assegura o exercício do direito de ação (proteção judicial) ou do direito a interpor recurso.
Afinal, a lógica do direito, na esteira de Theodor Viehweg, é fundamentalmente dialógica, na medida em que pressupõe sempre um modo de pensar situativo (problemático) e pragmático41. A razão do direito, sobretudo, no campo das liberdades públicas, como a liberdade de expressão, é essencialmente dialógica. E essa concepção deve conviver com a razão algorítmica do universo digital.
Nesta esteira, é forçoso reconhecer que as regras produzidas pelos agentes não estatais não podem esvaziar ou minar o conteúdo ético intrínseco das normas de direitos humanos. Nessa linha, não se poderia criar, por exemplo, aplicações (Apps) voltados à exclusão, à discriminação de qualquer natureza ou a práticas de pedofilia ou de crimes ou ilícitos não tolerados pela sociedade.
Deve prevalecer, portanto, no cyberspace as regras por ele criadas e instituídas pelas plataformas digitais, fundadas na ideia do contratualismo inerente a essas relações. Porém, cada uma dessas regras possui um conteúdo mínimo e intrínseco, calcado no conteúdo ético-normativo dos direitos humanos.
A construção de sentido capaz de mobilizar o enunciado do texto normativo em verdadeira norma jurídica, como já dito, decorre da interação interpretativa entre a regra do cyberspace e a norma de direitos humanos.
Assim, o espaço e o alcance do direito estatal, através de suas normas jurídicas, no cyberspace repousam na interação íntima entre as regras do Code e as normas de direitos humanos, criando, para cada situação específica, a norma jurídica.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se constatou, na sociedade tecnológica, da informação e da arena digital, o direito elaborado pelo Estado e de perfil coercitivo consegue regular e incidir no universo do cyberspace, desde que seja aplicado em parceira normativa com as regras do Code, formando aquilo que se denominou de norma jurídica. Essa construção significa que há, no processo interpretativo de construção de sentido, a interação entre as regras elaboradas no cyberspace e as normas jurídicas estatais.
O resultado alcançado nesta investigação científica revelou que o método aplicativo-normativo mais eficaz ao processo de regulação do cyberspace consiste em produzir interpretações interativas, desenvolvidas a partir da limitação das regras do Code pelas normas de direitos humanos.
Por isso, não se pode simplesmente dizer que inexiste espaço para o direito estatal no cyberspace. A regulação estatal do ambiente da internet, como se observou, é imprescindível, por mais se afigure - ou tente se afigurar - autossuficiente a autorregulação privada pelos global players, especialmente se houver risco à possível ofensa a direitos humanos.
E, nesta esteira, em uma sociedade da vigilância digital, tal como se vive hoje, parece inegável que há de vislumbrar um futuro reservado às normas jurídicas do Estado, especialmente aquelas relacionadas aos direitos humanos, pois se constituem em conteúdo ético mínimo para se viver em sociedade, ainda que de natureza unicamente digital.
Ainda que não deseje proteção jurídica, preferindo as regras instituídas pelo próprio cyberspace, o homem, certamente, como vem ocorrendo, se deparará com situações que colocará em risco direitos humanos.
O direito, justamente por sua inescapável função de limitar o poder, qualquer que seja ele, terá que se agigantar frente ao poder tecnológico das Big Techs, para garantir o padrão mínimo de convivência saudável de uma sociedade. Para tanto, deverá prevalecer no cyberspace as regras por ele criadas e instituídas pelas plataformas digitais, porém, cada uma dessas regras haverá de ostentar um conteúdo mínimo e intrínseco, fundado no standard ético-normativo dos direitos humanos.