Sumário: 1. Introdução. 2. Louis Althusser e o Estado como instrumento de dominação de classe. 3. A teoria althusseriana dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE). 4. O direito como “aparelho” repressivo e ideológico de Estado. 5. Louis Althusser e seus críticos. 5.1. Nicos Poulantzas. 5.2. Michel Miaille. 5.3. Pierre Bourdieu. 5.4. Jacques Commaille. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Louis Althusser é um dos mais expressivos autores da filosofia contemporânea. Como ressalta Richard Sobel, no âmbito da história intelectual do marxismo, a interpretação estruturalista proposta pelo autor de Lire le capital relativamente à obra de Marx seria portadora de uma verdadeira “ruptura” cujo impacto foi muito significativo em diversos campos disciplinares2. Em consonância com a tradição marxista, Althusser concebe o Estado e o direito como instrumentos de dominação de classe.3 Assim, ressalta que, para a “teoria marxista clássica”, o Estado se afiguraria como uma “máquina de repressão” que propiciaria às classes dominantes a capacidade de assegurar a sua dominação sobre a classe operária para submetê-la à exploração capitalista, ou seja, ao processo de extorsão da mais-valia. Contudo, Althusser rejeita reduzir o Estado apenas à sua dimensão repressiva. Desse modo, assinala que, complementarmente ao “aparelho repressivo de Estado” (ARE), baseado fundamentalmente na violência, existiriam os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) que, segundo ele, funcionariam preponderantemente com base na ideologia.4 Como se verá, Althusser concebe o direito como um desses aparelhos. Consequentemente, a teoria althusseriana proporciona um verdadeiro avanço ao pensamento marxista acerca do direito e do Estado5.
Não obstante, a obra de Althusser incitou significativa controvérsia e, como ressalta François Dosse, depois de se impor com grande expressividade, especialmente no contexto intelectual francês, ela experimentou um significativo declínio6. Warren Montag, por exemplo, observa que, por diversos motivos, no final do século XX, os críticos teriam sobejado os entusiastas do pensamento althusseriano7. Assim, muitos autores passaram a se posicionar abertamente contra a teoria althusseriana8. Acusações das mais variadas (de “estalinista” a “estruturalista”) contribuíram, segundo Montag, para o relativo descrédito experimentado pela obra do autor de Pour Marx. O célebre historiador britânico Edward P. Thompson, por exemplo, refere-se à “teoria interpelação” de Althusser qualificando-a como a horrenda expressão da “crise de um delírio idealista”9. Contudo, apesar disso, trata-se de um autor de grande importância e que remanesce muito influente10.
Diante dessas considerações, o presente artigo tem por objetivo analisar o modo pelo qual Louis Althusser concebe o direito como “aparelho do Estado” que desempenha uma função tanto repressiva como ideológica para, a partir daí, abordar algumas das mais influentes críticas que lhe são dirigidas a esse respeito. Parte-se aqui da hipótese de que tais críticas permitem uma compreensão mais efetiva da teoria althusseriana do direito como “aparelho de Estado”. Para tanto, a partir de uma metodologia de caráter descritivo-bibliográfico-explicativo, são enfocados, em primeiro lugar, os aspectos gerais da teoria althusseriana que sustentam a sua compreensão do Estado como instrumento de dominação de classe. Em seguida, é analisada a teoria althusseriana dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) para, a partir daí, se examinar o direito como “aparelho de Estado”. Por fim, são abordadas as críticas que Nicos Poulantzas, Michel Miaille, Pierre Bourdieu e Jacques Commaille endereçam à concepção althusseriana do direito como “aparelho ideológico de Estado”. À guisa de conclusão, é feita uma breve síntese da temática abordada. Como resultado, o artigo procura proporcionar uma discussão crítica da teoria althusseriana do direito como “aparelho de Estado”.
2 LOUIS ALTHUSSER E O ESTADO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO DE CLASSE
Mesmo diante das controvérsias por ela ensejadas, a obra de Louis Althusser foi e ainda remanesce muito significativa, especialmente no que concerne à sua pretensão de refundação crítica do pensamento marxista. Nesse sentido, como ressalta Alain Badiou, o autor de L’avenir dure longtemps inscreve-se em uma prestigiosa plêiade de intelectuais composta, entre outros, por Jean-Paul Sartre, Jean Cavaillès, Georges Canguilhem, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Jacques Lacan e Michel Foucault.11 Por outro lado, a influência exercida pelo pensamento de Althusser sobre uma significativa gama de colaboradores e de interlocutores, tais como Étienne Balibar, Jacques Rancière e Pierre Macherey, também contribuiu para a sua disseminação e, por conseguinte, para a reafirmação de sua importância.12 É por esse motivo que François Dosse alude a uma “explosão althusseriana”13 que, segundo ele, experimentará um processo de “implosão” a partir dos movimentos de maio de 196814.
É certo que não se pode desconsiderar o caráter controvertido da contribuição proporcionada pelo pensamento de Louis Althusser, especialmente no que concerne à sua leitura estruturalista de O capital. José Arthur Giannotti, por exemplo, mesmo reconhecendo a relevância do autor francês, questiona a fidelidade de sua interpretação às ideias de Marx.15 Raymond Aron, no bojo de uma incisiva crítica ao que designa como “marxismos imaginários”, dedica uma ampla análise à “leitura pseudoestruturalista de Marx” que, segundo ele, seria empreendida por Althusser.16 Como se sabe, no âmbito dessa crítica, Raymond Aron contrasta o existencialismo e o estruturalismo, enfocando, com particular ênfase, os pensamentos de Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e Louis Althusser, com o propósito de sublinhar as suas inconsistências.17 Vale notar, ainda, que Raymond Aron associa a empreitada teórica de Althusser a uma espécie de modismo intelectual18.
Preliminarmente, cumpre destacar a pretensão de Louis Althusser de promover um deslocamento do marxismo do terreno da práxis para o da epistemologia. Nessa perspectiva, François Dosse observa que o materialismo histórico passaria a se exprimir como a “ciência da cientificidade das ciências” (science de la scientificité des sciences).19 Aliás, como ressalta Alain Badiou, Althusser teria pretendido associar filosofia e ciência, de modo a considerar, inclusive, que a primeira não existira sem sua relação com a segunda.20 Contudo, esse movimento que, segundo André Comte-Sponville, aproxima as perspectivas de Althusser e de Bourdieu,21 acarreta, entre outras coisas, um afastamento do âmbito do “vivido”, do “psicológico”, dos “modelos conscientes” e da “dialética da alienação”22.
O que importa ressaltar aqui é que, como corolário do cientificismo que permeia o seu pensamento, Althusser, inspirando-se especialmente em Gaston Bachelard, parte da ideia de “ruptura epistemológica” (coupure épistémologique) para, a partir dela, interpretar a obra de Marx.23 Assim, Althusser sustenta que haveria um corte radical que apartaria o jovem Marx, ainda impregnado pelo idealismo hegeliano, de um Marx que, em sua maturidade, afastando-se da herança da filosofia idealista, atingiria um nível de efetiva cientificidade. A esse respeito, o autor de La reproduction propõe a seguinte periodização para as obras de Marx: a) obras de juventude (1840-1844); b) obras de ruptura (1845); c) obras de maturação (1845-1857); d) obras de maturidade (1857-1883).24 Não cabe aqui discutir a pertinência dessa interpretação. Para os propósitos aqui delineados, basta sublinhar o que dela decorre: uma leitura estruturalista de forte acento cientificista relativamente ao marxismo em meio à qual Althusser estabelece o seu programa de pesquisa acerca dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE)25.
Como se sabe, a partir do início da década de 1970, Althusser calcado em sua leitura “estruturalista” (ou “pseudoestruturalista”, como a definiu Raymond Aron em sua corrosiva crítica dos “marxismos imaginários”), desenvolve uma instigante e influente análise sobre os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) que, no entendimento de diversos comentadores, exprime a forma mais acabada de sua teorização acerca da ideologia.26 Por conseguinte, com o propósito de fornecer as bases para uma abordagem adequada dessa questão, serão enfocadas concisamente a seguir as três teses que, segundo Richard Sobel, embasam a teoria althusseriana da ideologia, quais sejam: a) a ideologia teria uma materialidade própria consistente nos “aparelhos ideológicos de Estado”; b) a ideologia seria uma representação da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência27; c) a ideologia interpelaria os indivíduos como “sujeitos”28.
No que concerne à primeira tese, Althusser sustenta que a ideologia não existiria como uma realidade fragmentária e interna à consciência individual. Ao contrário, ela se exprimiria sob a forma de condutas, práticas e disposições socialmente instituídas que seriam implementadas por uma série de instituições específicas por ele designadas de “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) que - distintamente do que se passa com o “aparelho repressivo de Estado” (ARE), baseado na violência - sustentam representações e crenças subjetivas necessárias à reprodução social. Consequentemente, a partir da releitura que Althusser faz da obra de Marx, a “superestrutura” (particularmente na sociedade de classes, na qual o poder da classe dominante estaria encarnado na forma do Estado) abarcaria toda uma série de “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) que, ao sustentarem as representações e crenças subjetivas, assegurariam a reprodução das relações de produção29. Como decorrência, seria possível sustentar que, na perspectiva de Althusser, haveria um “regime ontológico particular para o imaginário” que, por sua vez, seria irredutível simples ordem de representação da realidade30.
Quanto à segunda tese, Althusser, referindo-se aos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), enfoca a ideologia a partir de sua função prático-social. Assim, segundo Richard Sobel, Althusser divergiria da interpretação convencional que considera a ideologia uma “representação do mundo” que se expressaria como uma espécie de “ilusão” não correspondente à realidade, pois, em seu entendimento, isso implicaria supor a possibilidade de acesso à “verdadeira realidade”. Para ele, a ideologia consistiria em uma relação imaginária dos indivíduos no tocante às relações de produção e às relações delas derivadas. Logo, na ideologia não estaria representado o sistema de relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária de tais indivíduos acerca das relações reais às quais eles estão submetidos. Por conseguinte, a deformação (sempre imaginária) nela consignada não seria proveniente de uma relação direta com o real, mas de uma “duplicação da relação” (doublement du rapport)31.
Por fim, na perspectiva de Althusser, a ideologia, não apenas em sua forma moderna (burguesa), transformaria os indivíduos em sujeitos32. Segundo Richard Sobel, a manutenção da coerência dessa terceira tese implicaria considerar a categoria “sujeito” como uma “produção trans-histórica da ideologia”33. Isso ocorre porque, para Althusser, no processo de “fabricação social do homem” (anthropofacture), o tornar-se humano consiste em um “tornar-se sujeito” (devenir-sujet), o que importa afirmar que, mesmo antes de seu nascimento biológico, o homem já estaria “integrado” e “assujeitado” a uma ordem simbólica preexistente.34 Assim, nessa perspectiva, fortemente inspirada pela psicanálise lacaniana, os indivíduos seriam desde sempre sujeitos.35 Por conseguinte, a teoria althusseriana, tal como assevera Pascale Gillot, atribui um papel crucial à noção de sujeito no âmbito do “dispositivo ideológico”36.
Como observa Richard Sobel, a forma mais acabada da teoria althusseriana da ideologia estaria expressa no artigo “Idéologie et appareils idélogiques de l’État”, publicado, em 1970, na revista Pensée e, em seguida, republicado na coletânea de textos intitulada Positions, em 1976. Postumamente, em 1995, por iniciativa de Jacques Bidet, foi publicado o livro intitulado Sur la reproduction que, além do texto original, é constituído por fragmentos que, em seu conjunto, remontam a cerca de 300 páginas37. Fundada no pensamento marxista, essa teoria de Althusser teria definido, conforme François Dosse, um vasto programa de pesquisa que contribuirá significativamente para a consolidação do prestígio do autor de L’avenir dure longtemps, cenário intelectual francês e internacional, especialmente a partir dos movimentos de maio de 196838.
3 A TEORIA ALTHUSSERIANA DOS “APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO” (AIE)
Como visto, em consonância com o pensamento marxista, Louis Althusser concebe o Estado como uma máquina de dominação de classe, ou seja, como o instrumento pelo qual a classe dominante submeteria as classes dominadas às relações capitalistas de produção. Nesse aspecto, o autor é enfático ao ressaltar que, concebido como aparelho repressivo, o Estado seria uma “máquina de repressão” que proporcionaria às classes dominantes (compostas, a partir do século XIX, pela burguesia e pelos grandes proprietários de terra) a capacidade de assegurar a sua dominação sobre a classe operária para sujeitá-la à exploração capitalista, ou seja, ao processo de extorsão da mais-valia.39 Nesse sentido, Althusser salienta que, no pensamento marxista clássico, o Estado seria designado como “aparelho de Estado”, e essa expressão compreenderia não apenas o “aparelho especializado”, em sentido estrito (polícia, tribunais, prisões e exército), mas também o chefe de Estado, o governo e a administração40.
De acordo com Althusser, em sua figuração convencional, a “teoria marxista do Estado” exprimiria o que de essencial o caracteriza, mediante a definição de sua função fundamental: atuar como força de execução e de intervenção repressiva a serviço das classes dominantes.41 Assim, após resumir os aspectos gerais da “teoria marxista do Estado” (1. identificação do Estado com os seus aparelhos repressivos; 2. distinção entre “poder de Estado” e “aparelho de Estado”; 3. indicação da aquisição do “poder de Estado” como objetivo da luta de classes; 4. ideia de que o proletariado deve se apoderar do “poder de Estado” para, em um primeiro momento, substituir o Estado burguês pelo proletário e, em uma fase posterior, destruir o Estado, pondo fim ao seu poder e aos seus aparelhos),42 Althusser propõe adicionar a ela a sua tese relativa à existência dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), consistentes nas seguintes instituições distintas e especializadas: a) “AIE religioso” (sistema das diferentes igrejas); b) “AIE escolar” (sistema composto pelas diversas instituições escolares, públicas e privadas); c) “AIE familiar”; d) “AIE jurídico” (que também ostentaria um caráter repressivo);43 e) “AIE político” (sistema político com seus distintos partidos); f) “AIE sindical”; g) “AIE da informação” (imprensa, rádio, televisão etc.); h) “AIE cultural” (letras, belas-artes, esportes etc.)44.
Após enumerar as instituições que, em seu entendimento, constituiriam os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), Althusser procura indicar os traços que, caracterizando-os, permitiriam diferenciá-los do “aparelho repressivo de Estado” (ARE). Assim, em primeiro lugar, ressalta que, se existe um único “aparelho repressivo de Estado” (ARE), o mesmo não ocorre com os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), uma vez que estes constituem uma “pluralidade” cuja unidade, supondo que ela exista, não seria imediatamente visível.45 Em segundo lugar, “aparelho repressivo de Estado” (ARE), unificado, pertenceria inteiramente ao domínio público, ao passo que os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), em sua aparente dispersão, situar-se-iam no âmbito privado.46 Em terceiro lugar, o “aparelho repressivo de Estado” (ARE) “funcionaria”, de maneira massiva e prevalente, pautado pela violência, enquanto os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) “funcionariam” preponderantemente com base na ideologia e apenas secundariamente com base na repressão47.
Assim, Althusser, em uma perspectiva fortemente consonante com a de Antonio Gramsci, afirma que nenhuma classe seria capaz de deter o poder de forma duradoura sem exercer, ao mesmo tempo, a sua hegemonia sobre e dentro dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE).48 Por esse motivo, eles seriam o lugar da luta de classes, inclusive das mais obstinadas, uma vez que teriam por função contribuir para assegurar a “reprodução das relações de produção”.49 Contudo, cabe notar que Althusser procura demarcar a sua posição da de Gramsci afirmando que nela seria dada maior ênfase ao caráter estatal dos aparelhos ideológicos. Isso ocorre porque, segundo ele, a tendência gramsciana de relacioná-los à sociedade civil outorgar-lhes-ia uma autonomia que, na realidade, excederia a sua força real e, em contrapartida, levaria à tendência de se subestimar a força do Estado e, como decorrência, a da dominação da classe que detém o poder.50 Aliás, Althusser busca circunscrever a pertinência empírica da tese de Gramsci a países como Espanha e Itália.51
Portanto, Althusser, em um esforço de síntese relativamente à sua teoria, enfatiza os seguintes aspectos: 1. todos os “aparelhos de Estado” funcionariam, simultaneamente, a partir da repressão e da ideologia. A diferença entre eles estaria na ênfase dada a uma ou a outra; 2. o “aparelho repressivo de Estado” (ARE) constituiria um todo organizado cujos diferentes membros seriam centralizados sob a égide de uma unidade de comando consistente nos representantes políticos das classes dominantes que detêm o poder de Estado, ao passo que os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) seriam múltiplos, distintos, relativamente autônomos e suscetíveis de oferecer um campo objetivo às contradições expressas, com grau variável de intensidade, nos efeitos dos choques entre as lutas de classe; 3. a unidade do “aparelho repressivo de Estado” (ARE) repousaria em sua organização centralizada sob a direção de representantes de classe no poder. No entanto, o mesmo não ocorreria com os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), cuja unidade seria assegurada pela “ideologia dominante”.52
4 O DIREITO COMO “APARELHO” REPRESSIVO E IDEOLÓGICO DE ESTADO
Ao elencar as instituições que, em seu entendimento, constituiriam os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), Louis Althusser assinala que o direito (por ele grafado com “d” maiúsculo) pertenceria, simultaneamente, ao “aparelho repressivo de Estado” (ARE) e ao sistema constituído pelos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE).53 Aliás, referindo-se à teoria althusseriana, Michel Miaille afirma que nenhum “aparelho do Estado” seria exclusivamente ideológico ou repressivo, motivo pelo qual o “aparelho jurídico” seria multiforme e não poderia ser dividido em setores diferenciados. Assim, se a polícia cumpre uma função eminentemente repressiva, ela também não deixa de exercer um significativo papel ideológico.54 É nesse sentido que Althusser, aludindo ao pensamento de Kant, enfatiza que, por um lado, o direito seria necessariamente repressivo. Entretanto, por outro lado, também salienta que ele seria sustentado por uma “ideologia jurídica” que ensejaria o cumprimento de suas disposições independentemente da coerção, mesmo preventiva.55
Analogamente, Benoît Frydman e Guy Haascher enfatizam que, na perspectiva de Althusser, o direito contribuiria de duas maneiras para a sustentação do aparelho de Estado burguês.56 Por um lado, ele desempenharia uma função repressiva, destinada a sancionar aqueles que porventura descumpram as regras do jogo impostas pela sociedade capitalista, mediante a organização judiciária que mobiliza as forças policiais e as instituições penitenciárias para a persecução e condenação de quem por acaso seja considerado criminoso ou delinquente. Todavia, por outro lado, o discurso jurídico também ocuparia uma posição central em meio aos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), de modo a adimplir, simultaneamente, as funções de ocultação e de reprodução da ordem social. Isso ocorreria porque, ao travestir de justiça, liberdade e igualdade a opressão e a exploração que permeiam e caracterizam o sistema capitalista, o discurso jurídico engendraria o desconhecimento (méconnaissance) das relações sociais reais, o que, por sua vez, contribui para a manutenção da vulnerabilidade ou miséria das massas operárias diante da acumulação de que se beneficia a classe burguesa. Consequentemente, dessa função de ocultação decorreria a reprodução (e, portanto, a conservação e a consagração) do sistema capitalista.57
Vale notar que Althusser define o direito como um sistema formal de regras não contraditórias que “exprimiria” as relações de produção sem, entretanto, mencioná-las, de modo a, na verdade, escamoteá-las.58 Nesse sentido, a sua “função específica” consistiria em assegurar diretamente o funcionamento das relações capitalistas de produção com o intuito de garantir, ainda que de maneira subordinada, a sua reprodução. Como visto, na perspectiva de Althusser, o direito combinaria, em seu funcionamento, tanto a repressão como a ideologia. Logo, ele se exprimiria como um “sistema real” que abrange e combina códigos, ideologia jurídico-moral, polícia, tribunais e seus magistrados, prisões etc. Por conseguinte, na qualidade de um “aparelho ideológico de Estado” (AIE), o direito articularia a superestrutura “sobre” e “dentro” da infraestrutura.59
5 LOUIS ALTHUSSER E SEUS CRÍTICOS
Juan Domingo Sánchez Estop ressalta que, por razões distintas, Louis Althusser e Carl Schmitt teriam em comum o fato de criticarem as concepções teóricas que, tal como o positivismo jurídico, enfocam o direito ostentando pretensão de neutralidade analítica.60 Por conseguinte, ambos não aceitariam a distinção entre “ser” (Sein) e “dever-ser” (Sollen) que, como se sabe, fundamenta a perspectiva normativista de Hans Kelsen.61 Partindo dessa premissa, Juan Domingo Sánchez Estop enfatiza que a concepção althusseriana sustentaria o caráter exógeno dos fundamentos do direito, ou seja, o fato de que a existência do direito como realidade social seria sempre externamente determinada por outras esferas e, em última instância, pelas relações de produção ou, o que significa o mesmo, pela exploração e pela luta de classes. Aliás, segundo Sánchez Estop, é nesse sentido que Althusser concebe o direito como um “aparelho ideológico de Estado” (AIE) direcionado à reprodução das relações de produção.62
Como visto, a obra de Althusser incitou significativa controvérsia e, depois de se impor com grande expressividade, especialmente no contexto intelectual francês, experimentou um significativo declínio. Nesse sentido, François Dosse alude à “implosão da grade althusseriana”, ocorrida especialmente após os movimentos estudantis de maio de 1968 na França. François Dosse ressalta ademais que uma das mais expressivas dissensões sucedidas nesse contexto seria a de Jacques Rancière que, como se sabe, foi interlocutor de Althusser e, inclusive, colaborador da obra coletiva Lire le capital. Ora, em seu livro intitulado La leçon d’Althusser, publicado em 1974, Jacques Rancière desenvolve uma contundente crítica ao althusserianismo que, entre outras coisas, afirma que este teria morrido nas barricadas de maio de 1968, tal como outras tantas “ideias do passado”.63 Tendo isso em vista, serão analisados a seguir alguns autores que, por sua importância, exprimem, em caráter ilustrativo, a contundência da crítica a que foi submetido o pensamento de Althusser no que concerne à sua concepção do direito como “aparelho ideológico de Estado” (AIE).
5.1 Nicos Poulantzas
Segundo Bob Jessop, Nicos Poulantzas seria habitualmente classificado como um “estruturalista althusseriano”. Contudo, como assinala o sociólogo britânico, não se pode desconsiderar que, já em meados da década de 1960, Poulantzas publicou uma incisiva crítica ao livro Pour Marx, de 1965.64 Ademais, apesar de corroborar seus preceitos metodológicos, Poulantzas procurava diferenciar a sua teoria política da de Louis Althusser e da de Étienne Balibar.65 Bob Jessop também salienta que Poulantzas discordaria de Althusser no que concerne à sua visão dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE), da articulação dos modos de produção e da estratégia política.66 Evidentemente que não se trata aqui de reconstituir o teor integral da crítica que Poulantzas endereça a Althusser.67 Para os propósitos deste artigo, importa enfocar apenas algumas de suas objeções ao modo pelo qual o autor de Sur la reproduction concebe os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE).
Nicos Poulantzas considera que a distinção althusseriana entre o “aparelho repressivo de Estado” (ARE) e os “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) ensejaria certas objeções. Em primeiro lugar, apesar de ampliar o espaço do Estado (de modo a fazê-lo abranger as instituições ideológicas) e de destacar a sua presença no seio das relações de produção, essa distinção funcionaria de maneira restritiva, uma vez que, do modo como a concebe Althusser, ela repousaria sobre o pressuposto de que o Estado não agiria senão pela “repressão” e/ou pela “inculcação ideológica”. Assim, a eficácia do Estado residiria naquilo que ele “interdita”, “exclui”, “impede” e “impõe” ou naquilo que ele “engana”, “mente”, “oculta” ou “faz crer”. Ademais, a partir dessa distinção, considera-se que a economia seria uma instância capaz de produzir e de regular a si mesma e que o Estado não serviria senão ao estabelecimento de “regras negativas” para o “jogo” econômico. Consequentemente, o Estado existiria apenas para impedir (pela repressão e pela ideologia) as eventuais intervenções perturbadoras que porventura pudessem acometer a economia. Ora, segundo Poulantzas, tudo isso remeteria a uma “velha imagem juridista do Estado”, já defasada, que jamais teria correspondido efetivamente à sua realidade.68
5.2 Michel Miaille
Michel Miaille também desenvolve uma crítica ao pensamento de Althusser que, sob diversos aspectos, é consonante com a de Nicos Poulantzas.69 Para ele, ao atrelar os “aparelhos repressivos e ideológicos” ao Estado, o autor de L’avenir dure longtemps acabaria não apreendendo as relações sutis e complexas existentes entre eles.70 Por essa razão, Michel Miaille propõe que se retome o conceito de “sociedade civil” de Antonio Gramsci para superar as limitações das concepções marxistas convencionais que procurariam explicar a dominação burguesa a partir de um conjunto de aparelhos autoritários e repressivos entronizados no Estado. De acordo com ele, Gramsci concebe a “sociedade civil” como a parte da “superestrutura” que se interporia entre a “economia” e a “sociedade política”, ou seja, o Estado, de maneira a reunir, para além deste último, as instituições, os organismos e os modos de pensamento que assegurariam a hegemonia da classe burguesa.71
Por conseguinte, como observa Michel Miaille, a partir da perspectiva de Gramsci seria possível, entre outras coisas, explicar a manutenção da hegemonia da classe burguesa mesmo diante de um Estado decadente.72 Aliás, por esse mesmo motivo, Gramsci considerava que, paralelamente à tomada do aparelho de Estado pela classe operária, seria fundamental que esta também organizasse uma hegemonia.73 Michel Miaille, sublinhando o caráter preponderantemente não repressivo dos conceitos de “hegemonia” e de “violência simbólica”, aponta certa proximidade entre as perspectivas de Antonio Gramsci e de Pierre Bourdieu.74 Ademais, não é despiciendo observar que Michel Miaille, ao enfatizar que discurso crítico jamais escapa ao meio social no qual ele se forma, corrobora, em certa medida, a crítica que Jacques Rancière endereça ao pensamento de Althusser.75
5.3 Pierre Bourdieu
No bojo de sua “sociologia do campo jurídico”, Pierre Bourdieu afirma que uma “ciência rigorosa do direito” distinguir-se-ia da “ciência jurídica” pela razão de tomar esta última como objeto. No decorrer dessa análise, Bourdieu sustenta, ademais, que a “ciência rigorosa do direito” evitaria o contraste dominante no “debate científico a respeito do direito” que opõe, de um lado, o “formalismo”, que postularia a “autonomia absoluta” da “forma jurídica” em relação ao “mundo social” e, de outro, o “instrumentalismo”, que conceberia o direito como uma espécie de “reflexo” (reflet) ou “utensílio” (outil) a serviço dos dominantes.76 No entendimento de Bourdieu, a perspectiva “formalista” estaria representada pela “teoria pura do direito” de Hans Kelsen, ao passo que a “instrumentalista” encontraria em Louis Althusser um de seus próceres. Desse modo, Bourdieu assevera que os marxistas estruturalistas ignorariam a estrutura dos “sistemas simbólicos” e, por conseguinte, a “forma” específica do discurso jurídico.77
Nesse sentido, Pierre Bourdieu considera que a perspectiva “instrumentalista”, representada especialmente pelo pensamento de Louis Althusser, não seria capaz de apreender a especificidade do “universo social” em que o direito se produz e se exerce. Justamente por essa razão, visando romper com as perspectivas “formalista” e “instrumentalista”, Bourdieu sustenta a existência de um “campo social” relativamente independente das pressões externas, em cujo interior observar-se-iam a produção e o exercício da autoridade jurídica, entendida, segundo ele, como forma por excelência da “violência simbólica” legítima cujo monopólio pertenceria ao Estado que, por sua vez, teria a prerrogativa de combiná-la com o exercício da força física.78 Assim, o “campo jurídico”, tal como o concebe Bourdieu, caracterizar-se-ia por sua relativa autonomia, e não por ser um instrumento de dominação de classe, tal como afirma Althusser.
5.4 Jacques Commaille
Mais recentemente, Jacques Commaille, no livro intitulado À quoi nous sert le droit?, procura realizar uma “ruptura epistemológica”79 relativamente à representação dominante da legalidade, por ele designada como “juridismo”.80 Desse modo, afirma que tal representação, ao caracterizar o “Direito” como portador de uma “Razão jurídica”, associar-se-ia a uma concepção hierarquizada, piramidal e top down da regulação política e, também, a certas teorias das ciências humanas e sociais que, ao assumirem uma postura radicalmente crítica, inspirada pelo “paradigma da dominação”, tenderiam a desenvolver uma perspectiva que entroniza o direito estatal, excluindo, por esse motivo, toda e qualquer possibilidade de resistência. Segundo Jacques Commaille, autores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu seriam exemplos expressivos dessa perspectiva, pois ambos tenderiam a focalizar a regulação jurídica como um instrumento a serviço da dominação. Assim, segundo seu entendimento, ao enfocar o direito como uma espécie de “máscara do poder”, Foucault acabaria por reduzi-lo a um mero dispositivo de controle social que participaria da “governamentalidade disciplinar”.81 Por sua vez, no pensamento de Bourdieu, o direito, concebido como um instrumento eficaz de garantia da reprodução social, serviria ao propósito de perpetuação da dominação e de consagração do status quo.82
Para os propósitos deste artigo, vale notar que Jacques Commaille alinha as perspectivas de Louis Althusser e de Pierre Bourdieu no que tange a uma concepção do direito como instrumento de dominação. De acordo com Jacques Commaille, ambas as perspectivas estariam fundadas em uma “teoria da dominação política” marcada por uma “visão centrada no Estado” (vision étato-centrée). Assim, com razão, ressalta que tanto Bourdieu como Althusser conceberiam o direito como uma espécie de reflexo das relações de força existentes, ou seja, como “instrumento de dominação”. Essa crítica poderia eventualmente ser contestada no que concerne à noção de “campo jurídico”, pois, como visto, ela sustenta a relativa autonomia desse “microcosmo” social.83 Entretanto, por outro lado, ela tem muita pertinência no que tange à tese do direito como “aparelho ideológico de Estado” (AIE).84
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo procurou enfocar os aspectos essenciais da tese de Louis Althusser acerca do direito como um “aparelho do Estado”, que desempenha uma função tanto repressiva como ideológica, para, depois, examinar o teor de algumas críticas expressivas que lhe são dirigidas. Assim, em primeiro lugar, foram abordados os aspectos gerais da teoria althusseriana que sustentam a sua compreensão do Estado como instrumento de dominação de classe. Em seguida, analisou-se a teoria althusseriana dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) e, a partir dela, o direito como “aparelho de Estado”. Por fim, foram concisamente enfocadas as perspectivas de Nicos Poulantzas, Michel Miaille, Pierre Bourdieu e Jacques Commaille que, de ângulos distintos, veiculam objeções à tese althusseriana do direito como “aparelho ideológico de Estado” (AIE).
De todo modo, apesar das críticas que lhe são endereçadas, vale notar que a teoria althusseriana dos “aparelhos ideológicos de Estado” (AIE) remanesce bastante influente, especialmente em virtude de sustentar a constatação de que a reprodução da ordem social não decorre de sua imposição por um poder repressivo, mas da existência de um “Estado invisível” que se manifestaria como uma “forma de pensamento inconsciente” dos sujeitos.85 Como visto, Althusser ressalta que a imensa maioria das pessoas respeita o direito sem que sejam necessárias intervenções ou ameaças preventivas do “aparelho repressivo de Estado” (ARE). Segundo ele, a “ideologia jurídica” faria como que a prática jurídica se desenvolvesse por si só.86 Portanto, na perspectiva de Althusser, a reprodução da ordem social não decorreria apenas (nem sequer preponderantemente) da repressão, ou seja, do “medo da polícia” (peur du gendarme)87.
Por outro lado, Olivier Corten sublinha o papel desempenhado pela obra de Althusser na fundamentação de uma “abordagem crítica” do direito que, transcendendo a concepção positivista e formalista, permitiria contextualizá-lo.88 Aliás, como visto, Juan Domingo Sánchez Estop ressalta que o pensamento de Louis Althusser, tal como o de Carl Schmitt, seria portador de uma contundente crítica às concepções teóricas que, tal como o positivismo jurídico, enfocam o direito ostentando pretensão de neutralidade analítica.89 Ao sustentar que a existência do direito como realidade social seria sempre determinada por outras esferas e, em última instância, pelas relações de produção, Althusser questiona o formalismo jurídico de modo a desvelar o quanto os juristas efetivamente se afiguram como “guardiões da hipocrisia coletiva”.90 Trata-se, portanto, de um autor cujo pensamento, a despeito de todas as críticas que lhe são endereçadas, mostra-se muito profícuo no âmbito dos estudos sociojurídicos91.