Sumário: 1. Introdução; 2. A political questions doctrine; 2.1. A political questions doctrine no ordenamento jurídico norte-americano; 2.2 A doutrina das questões políticas no ordenamento jurídico brasileiro; 3. O controle judicial sobre a nomeação de Ministro de Estado; 3.1. A nomeação de Ministro de Estado no Direito Administrativo brasileiro; 3.2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; 4. Considerações finais; 5. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A partir do movimento cultural europeu do Iluminismo, ocorrido entre os séculos XVII e XVIII, a sociedade moderna herdou, dentre tantos avanços civilizatórios, a teoria da separação dos poderes. Ao ser concebida como resposta ao Absolutismo, a nova proposta de organização dos Estados modernos estabeleceu, em termos breves, que o poder político deve ser tripartido entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Na verdade, os dois primeiros são poderes inerentemente políticos, ao passo que o Poder Judiciário, por não serem os magistrados normalmente investidos pelo voto popular, teria uma legitimidade apenas técnica, pois sua tarefa residiria simplesmente em aplicar, o mais mecanicamente possível, as leis elaboradas pelo Poder Legislativo aos casos concretos3.
Em tese, ao impedir que o destino de toda uma nação estivesse submetida ao arbítrio da vontade de um soberano, a teoria da tripartição dos poderes4 revelou-se aparentemente perfeita e funcional, permitindo que efetivamente a vontade da maioria da população, expressa por meio de representantes democraticamente eleitos, governasse os destinos da nação. Todavia, acontecimentos dramáticos que ocorreram ao longo do século XX, ainda ao alcance da memória de muitos5 - o nazismo alemão, o fascismo italiano, o totalitarismo soviético, o franquismo espanhol, o salazarismo português, as experiências comunistas do leste asiático, o militarismo latino-americano, para citar os mais conhecidos - mostraram o quão distante ainda está a humanidade de alcançar formas de governo que espelhem a vontade da maioria e ao mesmo tempo respeitem os direitos fundamentais das minorias, em cenários de diversidade, pluralismo e tolerância.
Novos avanços, então, se fizeram necessários. O constitucionalismo que surgiu como resposta aos totalitarismos e autoritarismos ocorridos principalmente no segundo terço do século XX, introduziu mudanças sobre os significados tanto do poder político quanto da própria democracia. Novas cartas constitucionais modernas, liberais e com preocupações sociais são elaboradas, inicialmente na Alemanha e Itália e depois imitadas em Portugal, Espanha, países latino-americanos e, posteriormente, por países do resto do mundo6. Em verdade, esse novo movimento político e jurídico do pós-segunda-guerra, além de renovar convicções, como a do ideal democrático, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana e afirma existirem limites ao poder da maioria. Desse modo, se antes a democracia poderia ser resumida exclusivamente na vontade da maioria, agora se trata de uma maioria que também deve respeitar as minorias, que também dispõem de direitos a serem protegidos.
Assim, o exercício da jurisdição passou a envolver também um novo papel nas democracias constitucionais: a defesa dos direitos das minorias contra a maioria, papel esse que há muito vem sendo chamado de contramajoritário7.
No Brasil, são diversas as decisões em que o Supremo Tribunal Federal (STF) se vale dos seus novos papeis contramajoritário, representativo e iluminista8 para promover avanços sociais que ainda carecem de adesão majoritária e de consagração legislativa, mas que seriam imposições do processo civilizatório. Isso porque as modernas constituições contêm instâncias voltadas à transformação do presente em direção a um futuro por elas desenhado. E isso faz com que as Cortes Supremas, no desempenho da jurisdição constitucional, tornem-se garantes não só daquilo que é, mas também daquilo que deve ser e, às vezes, daquilo que deve ser contra aquilo que é9.
Todavia, o desempenho de tais papéis faz surgir inelimináveis atritos com os demais poderes e, muitas vezes, em dissintonia com certas parcelas - grandes ou pequenas - da sociedade que se se identificam com os valores preteridos pelo Poder Judiciário10.
Nesse cenário, o presente estudo surge da identificação de um problema relevante no ordenamento jurídico nacional para, em seguida, buscar potenciais soluções doutrinárias e jurisprudenciais, aplicando, inclusive, ferramentas do Direito Comparado. Em específico, o tema aqui analisado se refere aos desentendimentos institucionais decorrentes das decisões judiciais do STF que suspenderam nomeações de Ministro de Estado realizadas pelo Presidente da República, no período compreendido entre 1988 e 2020.
Este trabalho objetiva analisar os limites do controle judicial sobre os atos políticos, utilizando-se, para tanto, a denominada political questions doctrine (doutrina das questões políticas), teoria desenvolvida na Suprema Corte dos Estados Unidos da América (EUA), que afasta da tutela jurisdicional as demandas judiciais com assuntos considerados políticos. Será investigada a aplicabilidade de tal enfoque à diversa estrutura constitucional brasileira.
A pesquisa busca responder ao seguinte problema: sob a perspectiva da doutrina das questões políticas, em que ponto se situam os limites hermenêuticos das decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal que suspendem nomeações de Ministro de Estado? Como objetivos específicos, pretende-se (i) determinar, analisar e classificar as intepretações jurisprudenciais e doutrinárias existentes sobre a doutrina das questões políticas tanto no ordenamento jurídico norte-americano quanto no brasileiro; (ii) compreender, com base na dogmática do Direito Administrativo brasileiro, a natureza da nomeação de Ministro de Estado e a possibilidade de seu controle judicial; e (iii) considerar criticamente os limites impostos pela doutrina das questões políticas sobre as decisões judiciais.
A hipótese levantada, que foi confirmada como conclusão, é de que nomeação de Ministro de Estado, sendo de natureza estritamente política, configura ato judicialmente insindicável, salvo quanto aos requisitos formais previstos no ordenamento jurídico. Metodologicamente, para alcançar as finalidades indicadas, emprega-se o método dialético de contraposição de argumentos, mediante pesquisa bibliográfica e jurisprudencial envolvendo tanto o ordenamento jurídico brasileiro quanto ordenamentos estrangeiros, com ênfase para o norte-americano, em um diálogo interdisciplinar, especialmente com a Ciência Política e com a Filosofia do Direito.
2 A POLITICAL QUESTIONS DOCTRINE
Na primeira parte deste estudo, serão sintetizadas as principais compreensões teóricas e práticas sobre a doutrina das questões políticas. Com o objetivo de se realizar uma pesquisa de Direito Comparado, e não apenas de Direito Estrangeiro, abordar-se-á a political questions doctrine tanto no ordenamento jurídico norte-americano quanto no ordenamento jurídico brasileiro. Ao final, serão indicados alguns pontos de convergência entre as duas realidades.
2.1 A Political Questions Doctrine no Ordenamento Jurídico Norte-Americano
Ao determinar a estrutura organizacional do Poder Judiciário federal, o artigo III, seção II da Constituição dos EUA, circunscreve a apreciação judicial aos denominados cases e controversies11. Essas duas amplas e genéricas expressões vêm sendo interpretadas há mais de 230 anos, cujo resultado hermenêutico redundou em categorias específicas que limitam o acesso à justiça norte-americana. As expressões não têm significado idêntico naquele cenário jurídico, pois a expressão controversy tem uma acepção mais ampla, compreendendo tanto as causas civis quanto as penais, ao passo que o termo case compreende apenas as causas civis12.
Com base nessa vaga previsão normativa, a jurisprudência da Suprema Corte, ao longo do tempo, estabeleceu as denominadas doctrines of justiciability, isto é, as doutrinas de justiciabilidade, como forma de restringir e disciplinar o acesso à justiça13. A ideia básica é a de que “nem todas as questões controvertidas podem ser submetidas à apreciação judicial”, pois “o Judiciário somente poderia ser ativado para apreciar demandas que fossem justiciables (judicializáveis)”, ou seja, “appropriate for judicial determination (apropriadas para uma deliberação judicial)”14/15.
Assim, para que o Poder Judiciário possa conhecer de uma demanda, é necessário que esta não encontre entrave em alguma das doutrinas de justiciabilidade, quais sejam, a standing to sue, a ripeness, a mootness e a political questions doctrine. De modo ilustrativo, em um cenário em que os requisitos das doutrinas de justiciabilidade não são atendidos, os magistrados podem escolher não analisar o mérito do litígio16. Tais figuras jurídicas, desprovidas de uma base normativa explícita, como referido por Tushnet17, procuram responder às seguintes questões; quem pode ter acesso à justiça (standing to sue); que tipo de pretensão pode ser levada ao exame do Judiciário (political question); em que momento as pretensões podem ser levadas ao Poder Judiciário (mootness e ripeness)18.
Dentre as referidas doutrinas de justiciabilidade, destaca-se a political questions doctrine, ou doutrina das questões políticas. Por definição, ela consiste na noção de que os processos judiciais que envolvam assuntos qualificados como políticos não possam ser examinados pelo Poder Judiciário19, devendo ser resolvidas em espaços propriamente políticos20, detentores de legitimidade democrática. Essa doutrina aplica-se especialmente no âmbito do controle de constitucionalidade e no exercício da jurisdição constitucional, representando uma forma de autocontenção judicial da Suprema Corte21.
Como não há uma base normativa expressa, o real significado da doutrina das questões políticas só pode ser aferido mediante atento exame da casuística judicial. Realizando esse exame, a doutrina assinala dois diferentes conjuntos de ideias que se propõem a determinar os fundamentos dessa espécie de doutrina de justiciabilidade. Para o primeiro, a doutrina das questões políticas encontraria apoio no próprio texto constitucional, especificamente no mencionado artigo III, seção II da Constituição dos EUA. Para o segundo, a political questions doctrine resultaria, ao contrário, de uma política de prudente autocontenção judicial, representando uma espécie de resposta à dificuldade contramajoritária do Poder Judiciário. De toda e qualquer sorte, reafirma-se a relação da doutrina das questões políticas com a teoria da separação dos poderes22.
Sob o ponto de vista histórico, a doutrina das questões políticas tem sido enfrentada em julgamentos na Suprema Corte há mais de dois séculos. De modo resumido, consideram-se especialmente relevantes três casos judiciais específicos para a sua formação no ordenamento jurídico norte-americano: o caso Marbury v. Madison (1803); o caso Luther v. Borden (1849); e o caso Baker v. Carr (1962). Examinando-os, percebe-se uma evolução na compreensão do que seja uma political question. Em uma perspectiva progressiva, compreende-se, respectivamente, cada uma dessas três demandas judiciais como inserida em uma fase do desenvolvimento da political questions doctrine: na classical doctrine (doutrina clássica); na prudential doctrine (doutrina prudencial); e na judicial supremacy (supremacia judicial)23.
Em primeiro lugar, para além da afirmação do controle de constitucionalidade, o julgamento do caso Marbury v. Madison representa o surgimento da noção norte-americana de que o Poder Judiciário não deve avaliar questões exclusivamente políticas. Em 1801, John Adams, então Presidente dos EUA, nomeou William Marbury para o cargo de juiz de paz do Distrito de Columbia. No entanto, antes de Marbury tomar posse, o mandato presidencial de Adams acabou e, na sequência, o novo Presidente, Thomas Jefferson, determinou, por variadas razões, a descontinuação das nomeações realizadas na gestão anterior. Diante desse cenário, William Marbury, impetrou um writ of mandamus na Suprema Corte solicitando a notificação ao Secretário de Estado James Madison para que a sua posse fosse, finalmente, realizada.
Do ponto de vista jurídico, o caso Marbury v. Madison envolveu a discussão acerca da aplicação de lei ordinária conflitante com a Constituição - no caso, a afirmação da competência originária da Suprema Corte para conhecer de demandas contra Secretários de Estado, prevista no Judiciary Act de 1789, em descompasso com a Constituição, que não previa tal competência originária24. E, nesse ponto, considerando a supremacia do texto constitucional, os juízes da Suprema Corte, sob a liderança de seu Presidente (Chief Justice), John Marshall, atribuíram a si mesmos a competência para reconhecer a inconstitucionalidade de norma conflitante com a Constituição, com sua consequente desaplicação. No que se refere à doutrina das questões políticas, a Suprema Corte afirmou a inviabilidade de os magistrados apreciarem questões políticas, indicando que os tribunais norte-americanos não têm competência para avaliar a forma com que os Poderes Legislativo e Executivo desempenham as suas funções discricionárias constitucionalmente atribuídas. De forma minimamente objetiva, Marshall indicou como políticas as questões referentes à nação; e, por exclusão, como não políticas as questões relativas a direitos individuais25.
Em segundo lugar, na disputa entre Martin Luther e Luther Borden, o Chief Justice Roger Taney aplicou a doutrina das questões políticas pela primeira vez como fundamento jurídico autônomo26. No ano de 1849, Martin Luther teve a sua prisão ordenada por Luther Borden, agente público de um governo paralelo que surgiu como decorrência da Rebelião Dorr, no Estado de Rhode Island. Diante da Suprema Corte, Luther requereu a declaração de ilegitimidade do referido governo, indicando que a existência desse, por fundar-se em forma não republicana, confrontava a Constituição. No julgamento, o Chief Justice Taney reconheceu a impossibilidade de o Poder Judiciário apreciar a causa em razão da ausência de nítidos parâmetros jurídicos. Assim, ao abster-se do julgamento do mérito, determinou que o caso em questão deveria ser resolvido pelo Congresso e pelo Presidente da República, compreendendo que a solução de demandas como essa são próprias dos espaços discricionários e políticos.
E em terceiro lugar, o julgamento do caso Charles Baker et al. v. Joe. Carr et al reformulou totalmente a doutrina das questões políticas, tal como compreendida até então. Na situação em questão, um grupo de eleitores do Tennessee requereu judicialmente a declaração de inconstitucionalidade da distribuição de certos distritos eleitorais naquele Estado27.
No voto majoritário, o Justice William Brennan Jr., reformulou a political questions doctrine, indicando seis critérios para configurar uma questão como política e, portanto, não judicializável. São eles: (a) atribuição de competência para o enfrentamento da questão a um dos poderes políticos por expressa disposição constitucional; (b) ausência de critérios jurídicos objetivos para a resolução da questão; (c) impossibilidade de decidir juridicamente a questão sem antes emitir um posicionamento político; (d) impossibilidade de o Poder Judiciário decidir sem desrespeitar os outros poderes políticos; (e) necessidade extraordinária de aderir a decisões políticas anteriores; e (f) potencial dificuldade e constrangimento decorrente da coexistência de soluções conflitantes oriundas de diferentes setores do governo28.
Ao final, por maioria de 6 votos contra 2, a Suprema Corte afirmou a inconstitucionalidade da divisão dos distritos eleitorais do estado do Tennessee. Dessa forma, depois da elaboração de critérios relativamente objetivos sobre o alcance da doutrina das questões políticas, confirmou-se a ampliação da revisão judicial sobre questões consideradas precedentemente não judicializáveis29.
Em conformidade com as ideias expostas anteriormente, verifica-se que a aplicação da doutrina das questões políticas requer a presença de certas premissas. Primeiro, vigora em ordenamentos jurídicos que permitem a afastabilidade da jurisdição. Segundo, pressupõe a separação entre os espaços político e jurídico. No ambiente norte-americano, em razão da inexistência de previsão normativa sobre o conceito de questão política, os parâmetros hermenêuticos para o enfrentamento da questão derivam da casuística da Suprema Corte.
2.2 A Doutrina das Questões Políticas no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Como visto, nos EUA, a doutrina das questões políticas, enquanto espécie das doctrines of justiciability, encontra vago fundamento normativo no texto constitucional e também na postura de autocontenção judicial. Sua adoção, por uma questão de lógica, supõe ordenamentos jurídicos que permitam o afastamento da jurisdição. No caso do ordenamento jurídico brasileiro, ao longo de sua evolução constitucional, passou-se da possibilidade de abstenção judicial para a obrigatoriedade de apreciação das demandas levadas ao Poder Judiciário.
De fato, na Constituição de 1891, depois da alteração promovida pela Emenda Constitucional n.º 3/1926, proibiu-se a apreciação judicial de algumas questões consideradas políticas, indicando-se expressamente uma série de situações não passíveis de judicialização30. Na sequência, revelando uma influência da cultura constitucional norte-americana, os textos constitucionais de 1934 e de 1937, com idêntica redação, genericamente vedaram ao Poder Judiciário “conhecer questões exclusivamente políticas”31. A partir da Constituição de 1946 inaugura-se a inafastabilidade da jurisdição no ordenamento jurídico nacional, afirmando que “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”32. Por último e com conteúdo normativo semelhante, mas mais amplo ao suprimir a expressão “individual” e abrindo espaço para a tutela de direitos coletivos, a vigente Constituição de 1988 estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”33.
Assim, no Brasil, percebe-se que embasamento normativo para o acolhimento da doutrina das questões políticas somente existiu durante a vigência das constituições de 1891, 1934 e 1937. A partir da Constituição de 1946, a fundamentação para o uso da political questions doctrine em decisões judiciais pode ser encontrada apenas em razões jurisprudenciais e doutrinárias. Pode-se até sustentar, como fazem alguns34, que por causa do princípio da inafastabilidade da jurisdição, seria inaplicável entre nós a doutrina das questões políticas na ordem constitucional vigente.
Em retrospectiva histórica, o Supremo Tribunal Federal aplicou a doutrina das questões políticas pela primeira vez no julgamento do Habeas Corpus n.º 300, em 1892. Na época, o Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca, havia renunciado antes de transcorridos dois anos de seu mandato. O artigo 42 da Constituição de 1891 previa, para situações como essa, a convocação de novas eleições presidenciais35. No entanto, o Vice-Presidente, Marechal Floriano Peixoto, recusou-se a deixar o cargo, provocando a insatisfação de parte da população. Em vista disso, treze oficiais militares publicaram na imprensa o denominado “Manifesto dos 13 Generais”, em que se exigia a realização de novas eleições. Como resposta à manifestação, Floriano Peixoto decretou, por meio do Decreto n.º 791, de 10 de abril de 1892, estado de sítio no Distrito Federal, suspendendo as garantias constitucionais por 72 (setenta e duas) horas e ordenando o desterro dos cidadãos discordantes para o estado do Amazonas.
Na condição de advogado, Rui Barbosa, então, impetrou, perante o STF, o referido Habeas Corpus n.º 300 em favor dos desterrados. Em sua argumentação, antevendo a possível recusa da apreciação jurisdicional, defendeu que apenas as questões puramente políticas não eram passíveis de apreciação por parte do Poder Judiciário, afirmando que situações que envolvessem direitos individuais, ainda que ligados a interesses políticos, deveriam ser analisadas pelos tribunais36. Todavia, em atenção ao texto constitucional então vigente, os ministros do STF decidiram, com apenas um voto vencido, pela não concessão do remédio constitucional, afirmando que “não é da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo”37.
Já na vigência da Constituição de 1946, que acolheu o princípio da inafastabilidade da jurisdição, destacaram-se dois julgamentos do Supremo Tribunal Federal. O primeiro, realizado em 1953, ao apreciar o Mandado de Segurança n.º 1.959, evidenciou a alteração constitucional ao afirmar que “desde que se recorre ao judiciário alegando que um direito individual foi lesado por ato de outro Poder, cabe-lhe examinar se esse direito existe e foi lesado. Eximir-se com a escusa de tratar-se de ato político seria fugir ao dever que a Constituição lhe impõe”38. O segundo julgamento, concluído em 1962, para o Mandado de Segurança n.º 9.077, envolveu a regulamentação imposta pelo Governo Federal sobre a indústria do trigo. Naquela ocasião, o Ministro Victor Nunes, excluindo a questão do controle judicial, declarou que “não cabe ao Supremo Tribunal Federal corrigir essa política, mesmo que ela possa parecer a um ou outro injusta, não equitativa”39.
Na vigência da Constituição de 1988, o tema das questões políticas foi analisado pelo Supremo Tribunal Federal em diferentes oportunidades. Em 1989, com suporte em informações levantadas por Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada pelo Senado Federal, um grupo de políticos liderado pelo Senador José Ferreira impetrou o Mandado de Segurança n.º 20.941, pretendendo questionar a decisão da Presidência da Câmara dos Deputados que liminarmente rejeitara denúncia por crime de responsabilidade envolvendo o então Presidente da República José Sarney e alguns Ministros de Estado. De acordo com os impetrantes, a análise do mérito da denúncia seria de competência privativa do Plenário da Câmara.
No julgamento, concluído em fevereiro de 1990, os magistrados do Supremo Tribunal Federal decidiram, por cinco votos contra quatro, pelo indeferimento do Mandado de Segurança. Preliminarmente, discutiram a tese da falta de jurisdição do Poder Judiciário em relação ao impeachment. Sobre esse ponto, restaram vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard e Célio Borja, que entenderam que todas as decisões tomadas pelo Congresso Nacional relativas a processos de impedimento seriam infensas a escrutínio judicial. O posicionamento majoritário, porém, sustentou que “embora a autorização prévia para a sua instauração e a decisão final sejam medidas de natureza predominantemente política [...], cabe submeter [a apreciação judicial] a regularidade do processo de ‘impeachment’, sempre que, no desenvolvimento dele, se alegue violação ou ameaça ao direito das partes”40.
Posteriormente o Supremo Tribunal Federal analisou a justiciabilidade de questões políticas para além dos referidos casos envolvendo estado de sítio, políticas públicas e impeachment. De forma ilustrativa, os magistrados do STF decidiram sobre o controle judicial em relação a pontos como veto do Poder Executivo41, indulto presidencial42 e assuntos internos das Casas Legislativas43.
Percebe-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal, ao longo de sua história, acompanhando a evolução constitucional, manifestou-se sobre o enquadramento conceitual de certas questões como políticas e sobre a possibilidade de sua apreciação na arena judiciária44.
Em comparação com as premissas consideradas para a aplicação da doutrina das questões políticas no ordenamento jurídico norte-americano, constata-se que, embora o Supremo Tribunal Federal não faça menção formal à political questions doctrine, a invocação judicial dessa ideia fundamenta-se materialmente na separação dos Poderes Políticos, estabelecida no artigo 2º da Constituição de 198845. Assim, embora vigorando entre nós um dispositivo constitucional consagrando o princípio da inafastabilidade da jurisdição, a jurisprudência do STF reconhece a existência de certas controvérsias, originadas dos outros dois poderes, sobre as quais não deve incidir controle judicial. Essa orientação da maioria, porém, nem sempre se reflete no posicionamento individual de alguns Ministros. É o que se passa a analisar, com foco no objeto específico deste estudo.
3 O CONTROLE JUDICIAL SOBRE A NOMEAÇÃO DE MINISTRO DE ESTADO NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA DE 1988
Depois de examinados os principais aspectos da teoria e da prática da doutrina das questões políticas, aborda-se agora o tema da nomeação de Ministro de Estado na ordem constitucional brasileira de 1988 e a possibilidade de questionamentos judiciais a respeito. Em um primeiro momento, abordaremos a dogmática jurídica a respeito do tema, seguido da análise da casuística jurisprudencial existente, no âmbito do STF, abrangendo um período compreendido entre 1988 e 2020.
3.1 A Nomeação de Ministro de Estado no Direito Administrativo Brasileiro
Os Ministros de Estado, compreendidos como integrantes da Administração Pública direta em nível federal, conforme o artigo 4º do Decreto-Lei n.º 200/1967, na condição de chefes dos Ministérios, têm como dever primordial o auxílio ao Presidente da República no desempenho do Poder Executivo.
Do ponto de vista normativo, a regulamentação referente aos Ministros de Estado está prevista na própria Constituição da República. De forma específica, destacam-se os dispositivos constitucionais compreendidos no capítulo II (“Do Poder Executivo”), do título IV (“Da Organização dos Poderes”), da Constituição. Deste arcabouço normativo, depreende-se que a função precípua dos Ministros de Estado consiste em auxiliar o Presidente da República no exercício do Poder Executivo (artigo 76). Sua nomeação, assim como sua exoneração, é de competência privativa do Presidente (artigo 84, inciso I), observados poucos condicionamentos legais (artigo 87). As atribuições dos Ministros de Estado estão previstas de forma meramente exemplificativa (artigo 87, parágrafo único), podendo ainda ser-lhes delegados alguns encargos privativos do Presidente, taxativamente indicados (artigo 76, parágrafo único).
De acordo com o artigo 87 da Constituição, o Ministro nomeado deve atender apenas aos seguintes requisitos: (i) que seja brasileiro nato (artigo 12, § 3º, VII); (ii) que tenha mais de vinte e um anos de idade; e (iii) que se encontre no exercício dos seus direitos políticos. Não há necessidade de aprovação pelo Senado Federal.
Como o constituinte estabeleceu outras exigências para a nomeação presidencial de outros cargos (Ministros do Supremo Tribunal Federal, Ministros do Tribunal de Contas da União; certos magistrados; Advogado-Geral da União; membros do Conselho da República), deduz-se que, no caso dos Ministros de Estado, aquelas acima elencadas são as únicas a serem observadas, observando-se o chamado argumento a contrario46.
Examinando-se as atas das comissões da Assembleia Nacional Constituinte47, percebe-se que os parlamentares, naquela oportunidade, trataram do tema dos Ministros de Estado sob diferentes perspectivas. Quanto à nomeação, com base no exemplo norte-americano, os congressistas brasileiros debateram a possibilidade de exigir-se a aprovação da indicação pelo Congresso Nacional, ou ao menos de uma de suas Casas48 (provavelmente o Senado, como ocorre nos EUA, de acordo com o artigo II, seção 2 da Constituição norte-americana). Em relação à exoneração, os parlamentares constituintes analisaram, dentre outras sugestões, a proposta de destituição de Ministro de Estado pelo Parlamento49. Ao final, vingou o entendimento, fixado no texto constitucional, que tanto a nomeação quanto a exoneração dos Ministros de Estado são atribuições de competência privativa do Presidente da República, sem interferência do Legislativo, ressalvada a hipótese excepcional do impeachment, nos termos da legislação própria.
Por serem considerados auxiliares do Chefe do Poder Executivo, os Ministros de Estado são entendidos, na classificação dos agentes públicos, como agentes políticos50, sendo sua investidura fundamentada única e exclusivamente na condição cívica do cidadão - a denominada investidura política51. Em outras palavras, diante do figurino constitucional, não estão em causa as qualidades profissionais e técnicas do Ministro de Estado, mas tão somente as suas condições cidadã e política52.
Atualmente, em conformidade com o artigo 20 da Lei n.º 13.844/2019, são considerados Ministros de Estado: os titulares dos Ministérios; o Chefe da Casa Civil da Presidência da República; o Chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República; o Chefe da Secretária-Geral da Presidência da República; o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; e o Advogado-Geral da União. Com a alteração promovida pela Lei Complementar n.º 179/2021, o Presidente do Banco Central do Brasil deixou de integrar o referido elenco dos Ministros de Estado.
Os administrativistas brasileiros divergem quanto à natureza jurídica da nomeação de Ministro de Estado. Enquanto alguns teóricos, como Hely Lopes Meirelles53 e Maria Sylvia Zanella Di Pietro54, compreendem a nomeação de Ministro de Estado como ato político, outros, como Odete Medauar55, entendem-na como ato administrativo discricionário. A adoção de uma outra perspectiva resulta em diferentes consequências, sobretudo em relação ao controle judicial da nomeação de Ministro de Estado.
A compreensão da nomeação de Ministro de Estado como ato político fundamenta-se em certas razões, como: a previsão própria no texto constitucional; a noção de Ministro de Estado como agente público que desempenha função de governo; e o enquadramento do Ministro de Estado como agente político. Já o entendimento da nomeação de Ministro de Estado como ato administrativo discricionário firma-se nos seguintes motivos: a designação do Ministro de Estado como servidor para cargo comissionado; a regulamentação estatutária do cargo de Ministro de Estado, no caso, disposta na Lei n.º 8.112/1990, configurando-se como servidor público em sentido estrito.
Com a devida vênia, discorda-se da integração do Ministro de Estado como servidor público em sentido estrito, na forma da Lei n.º 8.112/1990. Diferentemente dos servidores públicos civis da União, os chefes de Ministério ocupam cargos constitucionalmente previstos de caráter político e precário, estando sujeitos à livre exoneração por parte do Presidente da República. Nesse mesmo sentido, invocável o Parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) n.º GQ-35, de conteúdo vinculante, que reconhece a natureza especial dos chefes de Ministério e, com isso, afasta a sujeição dos Ministros de Estado às regras da Lei n.º 8.112/1990.
Rejeitando-se o entendimento da nomeação de Ministro de Estado como ato administrativo discricionário, como aqui se faz, resta sua compreensão como ato político. Como tal, ele resulta de uma tomada de decisão pela mais alta autoridade do Poder Executivo56, autorizada pelo próprio texto constitucional57, dispondo o nomeante de amplo espaço para uma ampla “discricionariedade política ou governamental”58.
Passa-se, agora, a analisar a casuística jurisprudencial a respeito do tema.
3.2 A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de 1988 a 2020
Ao analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal referente ao tema do controle judicial sobre a nomeação de Ministro de Estado, no período entre 1988 e 2020, percebe-se que apenas no último quadriênio da pesquisa a questão foi alvo de demandas judiciais - e por três vezes. Primeiro, o caso do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nomeado Ministro-Chefe da Casa Civil, em 2016; segundo, o do ex-ministro Wellington Moreira Franco, nomeado Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, em 2017; e terceiro, o da ex-deputada federal Cristiane Brasil Francisco, nomeada Ministra do Trabalho, em 2018.
Desses casos, apenas os dois primeiros serão efetivamente aqui analisados, uma vez que a decisão judicial da Ministra Cármen Lúcia, na Reclamação n.º 29.50859, sobre a nomeação de Cristiane Brasil para o cargo de Ministra do Trabalho, abordou matéria essencialmente processual e regimental, dirimindo questão afeta à fixação da competência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do Supremo Tribunal Federal, deixando de analisar a viabilidade ou não do controle judicial sobre a nomeação de Ministro de Estado.
Quanto ao primeiro caso, rememora-se que em março de 2016, a então Presidente da República, Dilma Rousseff, nomeou Lula para o cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil, substituindo Jaques Wagner. Naquela época, o ex-presidente estava sendo investigado na denominada Operação Lava Jato. Em razão de terem sido tornadas públicas as gravações telefônicas de conversa entre a Presidente Dilma e o ex-presidente Lula (independentemente do posterior reconhecimento, pelo STF, da ilegalidade de tal grampeamento, posteriormente divulgado em rede nacional), questionou-se se a sua nomeação para a chefia da Casa Civil não representaria uma tentativa de evitar eventual prisão de Lula, conferindo a ele foro especial, por prerrogativa de função, junto ao Supremo Tribunal Federal.
Nessa perspectiva, depois de decisão do juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Federal do Distrito Federal (DF)60, que sustou, liminarmente, o ato de nomeação do ex-presidente, impetraram-se dois mandados de segurança perante o STF: o Mandado de Segurança Coletivo n.º 34.070, promovido pelo Partido Popular Socialista (PPS); e o Mandado de Segurança Coletivo n.º 34.071, proposto pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Ambos buscavam a declaração da nulidade da nomeação para o cargo de Ministro de Estado, sob os argumentos de desvio de finalidade e violação ao princípio da moralidade administrativa.
No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes analisou, monocraticamente, os dois mandados de segurança coletivos de forma conjunta61. Em sua decisão, apreciou diversos aspectos processuais relativos ao caso em análise, discorrendo, por exemplo, sobre a legitimidade de partidos políticos impetrarem mandado de segurança e, ainda, acerca da licitude da gravação telefônica da Presidente com o ex-presidente. De forma específica, sustentou a nulidade do ato administrativo praticado em contrariedade à sua finalidade legal; e a necessidade de observância, por parte de qualquer ato administrativo, dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública. Em seus termos:
Apesar de ser atribuição privativa do Presidente da República a nomeação de Ministro de Estado (art. 84, inciso I, da CF), o ato que visa o preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios constitucionais, mais notadamente os da moralidade e da impessoalidade (interpretação sistemática do art. 87 c/c art. 37, II, da CF) [...]. Aplicando essas noções ao caso em tela, tem-se que a Presidente da República praticou conduta que, a priori, estaria em conformidade com a atribuição que lhe confere o art. 84, inciso I, da Constituição - nomear Ministros de Estado. Mas, ao fazê-lo, produziu resultado concreto de todo incompatível com a ordem constitucional em vigor: conferir ao investigado foro no Supremo Tribunal Federal62.
Ao final, de forma liminar, o Ministro Gilmar Mendes, entendendo que a nomeação do ex-presidente para a chefia do mencionado Ministério consistia em desvio de finalidade com a intenção de fraudar a lei e que poderia obstar consequências futuras da Operação Lava Jato, determinou a suspensão da sua eficácia. Além disso, de forma expressa, determinou a manutenção da competência judicial da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento dos procedimentos criminais que envolviam Lula.
Somente três anos mais tarde, o colegiado da Segunda Turma do STF, em sessão virtual realizada em março de 2019, analisou o caso em questão, em sede de Agravo Regimental interposto em face da decisão monocrática do Ministro Gilmar. Apesar de reconhecerem a perda superveniente do objeto da ação judicial, o colegiado não sufragou o entendimento do Ministro Relator, com exceção do Ministro Fux, que não teceu qualquer comentário sobre a questão. O Ministro Fachin entendeu que partidos políticos não tinham legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança no caso tem tela e, por isso, não ingressou no mérito. Já os Ministros Levandowski e Rosa Weber, ainda que concordando que teria havido perda superveniente do objeto, fizeram questão de deixar claro que, no mérito, entendiam que se tratava de ato judicialmente insindicável:
A Senhora Ministra Rosa Weber: a indicação e nomeação de autoridade para assumir o cargo de Ministro de Estado está na alçada político-administrativa decisória do Presidente da República [...]. Ou seja, circunscreve-se ao âmbito decisório do Chefe do Poder Executivo da União, porquanto versa matéria político-administrativa de seu interesse e competência, não cabendo ao Poder Judiciário o controle dessa liberdade decisória, cuja responsabilidade centra-se no campo da sua legitimidade política.
O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski: Acompanho o relator, mas registro que a nomeação e a destituição de Ministros de Estado, nos termos do art. 84, I, da Constituição Federal, são atos de governo de competência privativa do Presidente da República e, portanto, insindicáveis pelo Poder Judiciário, desde que observados os requisitos constantes do art. 87 da CF63.
O segundo caso teve início em fevereiro de 2017, quando o então Presidente Michel Temer nomeou Wellington Moreira Franco para o cargo de Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Moreira Franco também estava sendo investigado na Operação Lava Jato. Também invocando a tese do desvio de finalidade da nomeação como forma de garantir a Moreira Franco foro especial por prerrogativa de função, o juiz federal Eduardo Santos da Rocha Penteado, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, suspendeu, liminarmente, a eficácia do ato de nomeação64.
Depois de sucessivas decisões judiciais liminares, umas cassando e outras mantendo a posse de Moreira Franco, o partido político Rede Sustentabilidade (REDE) impetrou o Mandado de Segurança n.º 34.609 no Supremo Tribunal Federal, afirmando que a demanda se assemelhava ao caso da nomeação do ex-presidente Lula e defendendo, de forma semelhante ao anterior, a sua invalidade em razão da configuração do desvio de finalidade, por apenas procurar garantir foro privilegiado a um investigado.
De forma monocrática, o Ministro Celso de Mello analisou o processo judicial com entendimento diferente daquele antes externado pelo Ministro Gilmar Mendes no caso do ex-presidente Lula. Na fundamentação da sua decisão judicial, o Ministro Celso de Mello fez referência a diversos precedentes do STF, valendo-se da afirmação de que “A interferência excessiva do direito e do Poder Judiciário na política, ainda que iniciada ou fomentada pela atuação dos próprios partidos políticos, pode acarretar prejuízo à separação dos poderes”. Além disso, o magistrado reconheceu que:
a investidura de qualquer pessoa no cargo de Ministro de Estado não representa obstáculo algum a atos de persecução penal que contra ela venham eventualmente a ser promovidos perante o seu juiz natural, que, por efeito do que determina a própria Constituição (CF, art. 102, I, alínea “c”), é o Supremo Tribunal Federal65.
Assim, o Ministro Celso de Mello manteve a nomeação de Moreira Franco como Ministro de Estado Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Posteriormente, em março de 2019, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5.079, tendo por objeto a constitucionalidade ou não da medida provisória que, em 2017, havia conferido status de ministério à Secretaria-Geral da Presidência, voltou a analisar, ainda que secundariamente, o controle judicial exercido sobre a nomeação de Moreira Franco. Nesse caso, a Ministra Rosa Weber, na condição de Relatora, voltou a afirmar que:
O argumento de que a criação da Secretaria-Geral da Presidência da República, com o status de Ministério de Estado, implica burla aos postulados constitucionais de moralidade e probidade na Administração Pública não convence e não se sustenta do ponto de vista jurídico, porque a criação e a extinção de Ministérios e órgãos da Presidência da República estão no campo decisional do Chefe do Poder Executivo. Ademais, encerra hipótese abstrata de criação de órgão que não está relacionado com o favorecimento de pessoa específica, haja vista que o nomeado para assumir o cargo de Ministro de Estado está na alçada político-administrativa decisória, conforme art. 84 da Constituição Federal, desde que presentes os requisitos do art. 8766.
Nessa mesma ADI n.º 5.079, o Ministro Roberto Barroso também adiantou seu posicionamento sobre o cerne da questão, nos seguintes termos:
No tocante ao desvio de finalidade, também penso - e, neste caso, ainda não havia manifestação do Plenário - que, preenchidos os requisitos do art. 87 da Constituição, que é mais de 21 anos e no gozo de direitos políticos, a escolha de um ministro de Estado é uma decisão política discricionária do Presidente da República, insuscetível de exame, no seu mérito, pelo Supremo Tribunal Federal ou qualquer órgão Judiciário.
Vale a pena também reproduzir trecho do voto, em sede de discussão, do Ministro Lewandowski, nesse mesmo julgamento:
Foi em um ato conjunto, ao passo que o ex-Presidente Lula foi em um ato exclusivo de nomeação de Sua Excelência. Mas o “pano de fundo” é o mesmo. O que se diz é que houve desvio de finalidade. E, agora, o Plenário reafirma que esse ato é de altíssima discricionariedade, um ato político exclusivo do Presidente da República, insindicável por parte do Poder Judiciário, aliás, como ensina a doutrina de longa data.
Resumindo-se este tópico, alguns pontos podem ser fixados: (i) não há um posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca da viabilidade de controle judicial sobre a nomeação de Ministros de Estado; (ii) entre os Ministros que clara e expressamente se manifestaram sobre o tema, apenas o Ministro Gilmar Mendes defendeu a possibilidade de um controle judicial sobre a nomeação de Ministros de Estado, invocando princípios do Direito Administrativo, como a teoria do desvio de finalidade e da moralidade administrativa. Dentre os integrantes da Corte nos últimos anos, os Ministros Celso de Mello, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Roberto Barroso entenderam tratar-se de ato político, de competência exclusiva do Presidente da República. Com a aposentadoria do primeiro, em 2021 e a iminente aposentadoria dos Ministros Lewandowski e Rosa Weber no ano de 2023, pode-se dizer que há uma incógnita sobre como o STF irá se posicionar nos anos futuros, caso novamente chamado a intervir, pois da composição que restará e que já se manifestou sobre o tema, restarão os posicionamentos opostos dos Ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo examinou, com suporte na political questions doctrine, as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal que suspenderam nomeações de Ministro de Estado, no período compreendido entre 1988 e 2020. Referida teoria consiste em uma das denominadas doutrinas de justiciabilidade estabelecidas pela Suprema Corte dos EUA ao longo de sua bicentenária atividade jurisdicional, representando um conjunto de ideias que são utilizadas como filtros ou barreiras ao acesso à justiça. Em nome dessas figuras, veda-se o acesso à justiça sob o argumento de que determinadas pretensões não devem, ou não podem, ou ainda não podem ou não podem mais, serem enfrentadas em uma ação judicial.
Em específico, a political questions doctrine sustenta a noção de que os processos judiciais que versem sobre assuntos de natureza essencialmente política não devem ser examinados pelo Poder Judiciário, devendo ser enfrentados em arenas propriamente políticas, ou seja, no âmbito do Executivo ou do Legislativo. Sua invocação, por magistrados, também representa uma forma de autocontenção judicial.
Observando-se o desenvolvimento jurisprudencial na Suprema Corte dos EUA, identificaram-se algumas premissas para a aplicação da political questions doctrine, podendo-se destacar as seguintes: ela é invocável em ordenamentos jurídicos que permitem a afastabilidade da jurisdição e pressupõe a separação entre os espaços político e jurídico e a existência de temas essencialmente políticos e outros em que há parâmetros jurídicos para uma tomada de decisão.
Confrontando a experiência norte-americana com a brasileira, percebeu-se que embora inexista menção formal à doutrina das questões políticas, o recurso judicial a essa teoria se alicerça materialmente na separação dos Poderes Políticos e tem sido utilizado como fundamento para posicionamentos judiciais. Com isso, constatou-se que o STF, ao longo da sua história, realizou apreciações empíricas sobre o enquadramento conceitual de certas questões como políticas, com repercussão na possibilidade de seu controle judicial.
O cargo de Ministro de Estado integra a Administração Pública direta em nível federal e serve, primordialmente, ao auxílio do Presidente da República no desempenho do Poder Executivo. Segundo nosso texto constitucional, os critérios legais para a nomeação dos Ministros de Estado são fixados em rol próprio e taxativo, entendendo-se que a relação estabelecida entre o Ministro de Estado e o Presidente constitui um vínculo essencialmente político.
Expostas as divergências teóricas a respeito da natureza jurídica da nomeação para o cargo, posicionou-se pelo seu enquadramento como um ato político. Em termos jurisprudenciais, observou-se que o Supremo Tribunal Federal aflorou o tema, na atual ordem constitucional, em três situações, sem que em nenhuma delas tenha havido uma expressa manifestação do plenário da Corte ou de ambos os colegiados, sobre o fundo da questão. Dentre os Ministros que expressamente se posicionaram a respeito, o Ministro Gilmar Mendes entendeu ser possível o controle judicial da nomeação de Ministros de Estado, quando violados importantes princípios do Direito Administrativo, quais sejam o que veda o desvio da finalidade e que exige a observância da moralidade. Outros três, Celso de Mello, Lewandowski e Rosa Weber, entenderam que se trata de ato judicialmente insindicável, por se tratar de ato eminentemente político.
Confrontando-se as experiências norte-americana e brasileira a respeito do tema das political questions doctrine, percebe-se que aquela estipula firmes limites ao controle judicial da Suprema Corte sobre as questões consideradas essencialmente políticas. Nas vezes em que enfrentou o tema, a Corte manifestou-se como órgão colegiado, ainda que com divergências internas. Já na experiência brasileira, ainda não houve um claro e recente posicionamento colegiado do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. As manifestações monocráticas ou obiter dictum proferidos em sede de julgamento colegiados permitem identificar posicionamentos individuais diversos. Ainda que tenha predominado o entendimento no sentido de uma maior autocontenção, em homenagem à natureza essencialmente política de atos como o de nomeação de Ministros de Estado, a aposentadoria de três dos Ministros com posicionamentos mais deferentes deixará a Corte com dois abertos posicionamentos opostos entre aqueles Ministros que já se manifestaram sobre o tema (Ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso).
De nossa parte, em termos objetivos, posicionamo-nos da seguinte forma em relação à conclusão deste estudo: (i) a nomeação dos Ministros de Estado encontra-se disciplinada na própria Constituição; (ii) os critérios normativos para a nomeação dos Ministros de Estado constituem um rol próprio e taxativo; (iii) durante a Assembleia Constituinte, apresentaram-se e rejeitaram-se propostas de intermediação do Congresso Nacional na nomeação e na exoneração dos Ministros de Estado; (iv) os Ministros de Estado são considerados agentes políticos em nosso arcabouço legislativo; (v) a relação estabelecida entre os Ministros de Estado e o Presidente da República representa um vínculo essencialmente político; (vi) em sendo de natureza estritamente político, configura-se como ato judicialmente insindicável, salvo quanto aos requisitos formais previstos no ordenamento jurídico.
Assim, encerra-se esta pesquisa com a confirmação da hipótese indicada. As nomeações de Ministro de Estado representam ato judicialmente insindicável, salvo quanto aos requisitos formais previstos no ordenamento jurídico. Com isso, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar pedidos de suspensão de nomeações de Ministro de Estado, deve limitar sua análise à apreciação dos aspectos formais do ato, não podendo invadir o seu mérito. Quanto a esse último aspecto, eventuais consequências de uma malfadada nomeação deverão se situar na esfera política - com a perda de apoio popular ou da classe política -, não na jurídica.