Sumário: 1 Introdução. 2 Origens do genocídio. 3 Genocídio e Dolus Specialis. 4 “Dolo sem vontade” e o crime de genocídio. 5 O combate à pandemia no Estado do Amazonas. 6 Considerações finais. 7 Referências.
1 INTRODUÇÃO
Passado o ápice da Pandemia de Covid-19 no Brasil, que deixou expressivo número de mortes, foram postas em questão as condutas adotadas pelo poder público no efetivo combate à doença, além das medidas tomadas e não tomadas para a prevenção. A população voltou sua atenção especialmente aos eventos ocorridos no Estado do Amazonas, aventando a possibilidade de comissão de genocídio por alguns dos dirigentes nacionais.
Foi, inclusive, instaurado procedimento investigatório, denominado Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia de Covid-19, ou, como popularmente ficou conhecida, a “CPI da Covid-19”/“CPI da Pandemia”. À época, foi proferido relatório pela negativa da comissão do crime, que contou com a análise de especialistas no tema. Contudo, posteriormente ao encerramento do procedimento, foi levantado o sigilo de inúmeras documentações que poderiam revelar o contrário.
A conclusão do referido relatório baseou-se na ausência da verificação dos requisitos elementares do crime de genocídio, sobretudo o intent to destroy, espécie de dolo especial que não tem parâmetros de verificação objetivamente definidos.
A fim de contribuir para o debate e lançar luz à questão, inclusive diante da descoberta dos documentos oficiais outrora sigilosos, o presente estudo debruçou-se, por método dialético, sobre duas teorias que norteariam a identificação do dolo especial que é requisito para a verificação do crime de genocídio. São elas, a teoria proposta por Kai Ambos sobre uma estrutura dupla de dupla verificação dos elementos do dolo, e a teoria do “dolo sem vontade” de Ingeborg Puppe, corroborada por Luís Greco.
Verificada a total compatibilidade entre ambas as teorias, portanto, se propôs uma combinação que resultou em uma terceira teoria, sobre cuja ótica foram verificados os eventos ocorridos no Estado do Amazonas durante a Pandemia de Covid-19.
Ao cabo, foi possível deduzir pela possibilidade de comissão de crime de genocídio por dirigentes nacionais apenas contra populações indígenas específicas, como os Yanomami, por exemplo, posto que, pela teoria proposta, preenchidos todos os requisitos para verificação tanto do intent to destroy, quanto as demais elementares do tipo penal do genocídio.
Contudo, não foi possível, como outrora proposto à CPI, a verificação das elementares do tipo nas condutas perpetradas contra a população geral do Estado do Amazonas, que, relembra-se, enfrentou dificuldades muito acentuadas, com mortes por asfixia devido a falta de fornecimento de oxigênio pelo poder público, falta de vacinação e de campanha de prevenção, etc. Isto se deu tanto porque inexistentes os requisitos do dolo especial conforme teoria proposta, como porque inexistentes os demais elementos do crime, como a identificação de um grupo.
O estudo indica, portanto, não só para a utilização de uma nova teoria que, baseada em teorias consagradas, estabelece critérios mais objetivos para a efetiva verificação dos elementos necessários para a caracterização do importante conceito do intent to destroy em hipóteses de comissão do crime de genocídio, mas igualmente para a necessidade de revisão das conclusões a que chegou a CPI da Pandemia, especialmente quanto às vítimas pertencentes aos grupos indígenas identificados.
2 ORIGENS DO GENOCÍDIO
Não é de hoje que a humanidade se depara com episódios marcados por ações atrozes que ameaçam ou efetivamente destroem grupos inteiros de pessoas, não apenas pela morte física, mas pela eliminação da cultura, da língua, dos costumes, pela esterilização e deportação forçadas, dentre outras condutas que aterrorizam o imaginário de qualquer ser humano.
Norman M. Naimark narra em seu livro “Genocide: a world history” a reunião de condutas que atualmente conhecemos como genocídio e que perpassam a história da humanidade, desde a mais remota época, provavelmente em 1.200 a.C.3, até a condenação do general sudanês Omar al-Bashir pelas condutas praticadas em Darfur durante sua permanência no governo do Sudão, de 1989 a 2019. Embora a obra de Naimark tenha interrompido seu desenvolvimento histórico em 2017, data da publicação, a mesma interrupção não acompanhou o desenvolvimento dos genocídios mundiais, sendo certo que, no presente momento, há fortes indícios de prática de genocídio pelo governo chinês contra os povos Uyghur, de ascendência islâmica, que estão cativos em supostos centros de reabilitação e educação da província de Xinjiang4, por exemplo.
Mas fato é que, em que pese tais episódios sempre tenham tido o potencial de estarrecer a opinião pública, apenas a partir de 1944 o genocídio ganhou nome e foi identificado como tal, pelo esforço do incansável advogado polonês de ascendência judaica Raphael Lemkin, com a publicação de seu trabalho “Axis rule in occupied Europe”5, que marcou época no desenvolvimento do Direito Penal Internacional.
Lemkin inicia o capítulo 9 de sua inovadora obra com os seguintes termos:
Novas concepções exigem novas denominações. Por “genocídio” queremos dizer a destruição de uma nação ou de um grupo étnico. Esta nova palavra, criada pelo autor para denominar uma antiga prática em seu moderno desenvolvimento, é composta da palavra em grego antigo genos (raça, tribo) e em latim cidio (assassínio), ademais correspondendo em formação a palavras como tiranicídio, homicídio, infanticídio, etc. Em termos gerais, genocídio não significa necessariamente o assassinato de todos os membros de uma nação. Pretende-se muito mais que signifique um plano coordenado de diversas ações com o objetivo de destruição dos fundamentos de vida essenciais de grupos nacionais, visando aniquilar o próprio grupo. Os objetivos de tal plano seriam desintegrar as instituições políticas e sociais, a cultura, língua, sentimento de nacionalidade, religião, e a economia de grupos nacionais, bem como a destruição da segurança pessoal, liberdade, saúde, dignidade, e até mesmo as vidas de indivíduos pertencentes a tais grupos. Genocídio é dirigido contra o grupo nacional enquanto entidade, e as ações envolvidas são dirigidas contra indivíduos, não a suas capacidades individuais, mas enquanto membros do grupo nacional6.
Ou seja, ao contrário do pensamento popular, genocídio não importa pura e simplesmente em assassinato em massa, posto que tal conduta, por si só, poderia configurar “apenas”7 homicídios em concurso, ou mesmo crime contra a humanidade, a depender do contexto em que cometida.
O conceito fica ainda mais claro se considerarmos que o crime de genocídio, como idealizado por Lemkin, adveio da união de outras duas tipificações por ele propostas, em 1933, ao Fifth International Conference for the Unification of the Penal Law, em Madrid, para figurarem como crimes internacionais: o de “barbárie” e o de “vandalismo”. Este era definido como “destruição maliciosa de obras de arte e cultura, porque representam criações específicas de genialidade de tais grupos”8, e aquele como “ações opressivas e destrutivas direcionadas contra indivíduos membro de grupos nacionais, religiosos ou raciais”9.
A ideia inicial era, portanto, coibir qualquer tipo de ato lesivo ao patrimônio físico, cultural, ou mesmo à integridade física de membros de determinado grupo, calcado no ódio nutrido em face de tal grupo e, consequentemente, aos indivíduos a este pertencentes, o que se pode extrair do uso das expressões “maliciosamente” e “ações opressivas”. Em que pese a definição atual de genocídio seja melhor delineada e não tão ampla conforme pretendia Lemkin, o elemento da motivação odiosa ainda se faz presente implicitamente no conceito de intent to destroy.
Fato é que o genocídio foi muito bem caracterizado por William Schabas como “o crime dos crimes”10 justamente por possuir elementos característicos que lhe emprestam especial reprovabilidade social, não podendo ser resumido a “simples” homicídio em massa. Assim, ressalta o professor Kai Ambos11 que o genocídio é, em essência, um crime contra a humanidade em categoria especial, justamente por sua maior reprovabilidade.
Não obstante, como já referido por diversos estudiosos da matéria12, os elementos descritos na legislação não são suficientes para abarcar o real sentido do fenômeno do genocídio, tendo sido estabelecidos após extensa discussão e embates preliminares à redação final da Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, replicada no Estatuto de Roma, por líderes nacionais especialmente interessados em delimitar com exatidão os termos legais, sobretudo dos grupos protegidos, sob pena infringirem eles mesmos os termos da Convenção que acabavam de criar.
Necessário relembrar, assim, que a intenção que se extrai da citada conceituação feita por Lemkin é exatamente a de proteger o maior número possível de grupos e indivíduos eventualmente submetidos à cruel política de eliminação de seus elementos de vida essenciais, sem, entretanto, banalizar o termo, o que se faz claramente através do elenco de requisitos aptos a caracterizar a conduta genocida.
Assim, alcançou-se a seguinte redação do tipo penal de genocídio na Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, com réplica exata no artigo 6 no Estatuto de Roma, que foram incorporados à legislação pátria, respectivamente, pelo Decreto n. 30.822, de 6 de maio de 195213 e pelo Decreto n. .388, de 25 de setembro de 200214:
Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
Aqui chegamos, finalmente, ao ponto que nos interessa para o presente estudo, que consiste no entendimento mais aprofundado da expressão “intenção de destruir”, utilizada pela legislação e que deve ser interpretada em conjunto a todos os demais elementos já suscitados. Vale lembrar que o crime de genocídio ganhou especial proteção na Lei n. 2.889, de 1 de outubro de 195615, com a exata mesma redação dos tratados, cominando-se penas de crimes já previstos no Código Penal brasileiro e com acréscimos da Lei n. 7.960, de 1 de dezembro de 198916.
3 GENOCÍDIO E DOLUS SPECIALIS
A especial referência ao dolo encontra-se logo no caput dos mencionados dispositivos que tipificam o crime de genocídio, mas pouco, ou quase nada, se pode extrair da simples redação legal, sem que se atente para o histórico da criação jurídica do instituto, como fizemos até agora neste estudo.
O dolo no crime de genocídio, contudo, em que pese não bem delineado na legislação, é assunto da maior importância, posto que, sua ausência, levará à impossibilidade de imputação penal.
Conforme bem destaca Kai Ambos, em seu artigo dedicado exclusivamente ao tema, a conduta denominada genocida se caracteriza por “dois elementos mentais separados, a saber, um geral que poderia ser denominado ‘intenção geral’ ou dolo, e uma adicional ‘intenção de destruir’”17, este último elemento a complementar o primeiro na constituição de um “crime orientado pelo objetivo” (Absichts-oder Zieldelikt).
Como mencionado brevemente, a “intenção de destruir”, ao que alguns chamam de intenção especial ou dolo específico (special intent ou dolus specialis), é um dos fatores distintivos que distancia a conduta genocida do “mero” crime contra a humanidade e, como esclarece Kai Ambos, citando decisão da Câmara Julgadora do caso Promotoria v. Zoran Kupreskic et al.18, transforma o genocídio “na mais extrema e desumana forma de persecução”. Daí a enorme importância de se estudar o real significado deste requisito legal e, sobretudo, como verificá-lo, dado que uma das críticas mais comuns ao dolo, conforme entendimento das teorias tradicionais, é exatamente a impossibilidade de demonstração no caso concreto de determinada vontade.
Neste ponto, cabe ressalvar que nunca se pode perder de vista que o direito penal é a ultima ratio19 e, conforme ensinam Brito, Fabretti e Ferreira20, não existindo elementos mínimos do “fenômeno criminal”, ou seja, elementos mínimos que evidenciem a conduta, tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade do agente, inviabilizada por completo a ação penal por falta de justa causa, devendo-se ter em vista que o dolo é elemento essencial do crime, independentemente da teoria do delito que se adote21.
De início, destaca-se que o conteúdo do que se pode depreender por “intenção de destruir” pode ser extraído, principalmente, dos julgados e precedentes, já que não há uma definição legal precisa deste elemento que é, portanto, normativo por excelência. Mas há que se considerar, igualmente, que não são muitos os casos de condenação do Tribunal Penal Internacional ou de outros tribunais internacionais ao crime de genocídio, cabendo, portanto, a ressalva de se tratar a “intenção de destruir” de objeto doutrinário em desenvolvimento - para o qual pretendemos contribuir através deste trabalho, mas não esgotar, por óbvio, dada a extensão e complexidade do tema.
Neste sentido, no julgamento de Jean Paul Akayesu, por exemplo, o dolus specialis foi definido como “elemento constitutivo do crime [de genocídio] que requer que o perpetrador claramente objetive produzir a conduta imputada”22. Assumiu-se, portanto, em clara similitude às teorias finalistas da ação, que a intenção de destruir se extrairia de algo intrinsecamente subjetivo ao agente, o que se conhece por "elemento volitivo do dolo”23.
Mas a grande dificuldade que fica é, novamente, a demonstração de tal estado mental, cuja importância é tamanha que a sua ausência de comprovação implica absolvição do crime de genocídio - que não admite a modalidade culposa - como o ocorrido no julgamento de Goran Jelisic24, por exemplo, em que se considerou que o Special Intent seria extraído da verificação de dois elementos não comprovados no caso: “que as vítimas pertenciam a um grupo identificado” e “que o suposto perpetrador cometeu os crimes enquanto parte de um plano maior de destruir o grupo em si”. Concluiu-se, portanto, pela absolvição de Goran Jelisic em face da não comprovação deste elemento volitivo, já que verificado que os crimes foram cometidos contra vítimas aleatórias, em que pese houvesse um plano genocida em curso.
Assim, voltamo-nos, uma vez mais, às concepções trazidas e resumidas por Kai Ambos, em linhas gerais, afirmando que o dolo especial da conduta genocida se extrai do contexto em que cometido o crime, do nível de conhecimento que detinha o perpetrador25 acerca de tal contexto, da vontade do agente, das condutas individualmente consideradas dentro do contexto genocida, e, ainda, da existência de certo nível de planejamento ou organização que indique o curso de uma política genocida - em que pese, frisa, a premeditação não seja um requisito para a tipificação da conduta, mas um forte elemento indiciário da existência do fenômeno genocida em curso -.
Ao mesmo tempo, conclui-se pela necessidade de distinção entre um conceito mais geral de intenção e a necessidade de delimitação de um conceito de dolo especial, sugerindo que a “intenção de destruir” se deva extrair de uma “estrutura dupla de duas faces” (twice twofold structure), baseada na constatação de dois elementos mentais (aspecto subjetivo) - o conhecimento e a vontade deliberada de praticar atos genocidas - e dois pontos referenciais de ação (aspecto objetivo) - os atos individualmente considerados e o contexto genocida - que permitirão a classificação do perpetrador segundo seu nível de participação na campanha genocida - alto, médio ou baixo -.
O teórico traz, ainda, a noção de que, a depender do papel ocupado pelo perpetrador e seu nível de participação na campanha, elementos distintos seriam necessários, defendendo que, para o perpetrador de “nível baixo”, por exemplo o soldado raso que apenas executa ordens de superiores hierárquicos, não seria preciso demonstrar o elemento volitivo, mas seria suficiente que tivesse conhecimento de que seus atos contribuiriam para a comissão do crime.
Por outro lado, para perpetradores de nível médio e alto, ou seja, pessoas com poder decisório sobre o genocídio em curso, seria imprescindível a comprovação do conhecimento, vontade e do duplo referencial da ação - individualmente e coletivamente considerada -.
Seu intuito com tal teoria é o de mitigar as dificuldades probatórias enfrentadas a partir da aplicação do entendimento de uma teoria finalista da ação26, contudo, não nos parece que esta teoria, da forma como lançada, tenha o condão de atingir este objetivo.
Isto porque, mesmo após todo o detalhamento lançado pelo raciocínio de Kai Ambos com base nos precedentes internacionais, a caracterização da conduta como genocida em sua teoria ainda segue dependente da demonstração de um elemento subjetivo, que é a vontade do agente, por ele referida como purpose ou desire, enquanto sinônimos. E mesmo que haja uma clara tentativa de tornar os critérios de verificação do Special Intent algo mais objetivo, no fim, acaba sendo o conceito tomado de subjetivismo de difícil verificação.
Neste sentido, os conceitos trazidos por Ingeborg Puppe e também desenvolvidos por Luís Greco podem auxiliar a pensar a melhor forma de verificar o intent to destroy genocida, de forma que passaremos a analisá-los em cotejo com o quanto desenvolvido até aqui.
4 “DOLO SEM VONTADE” E O CRIME DE GENOCÍDIO
Em seu artigo Dolo Sem Vontade, Greco expõe e elabora a concepção de dolo por meio da Teoria Cognitiva, defendida e compartilhada por Ingeborg Puppe27, desprezando, em última análise, as tão difundidas Teorias Volitivas do Dolo, segundo as quais este elemento subjetivo estaria configurado a partir da constatação de conhecimento e vontade para a realização da conduta delitiva de forma dolosa.
Em breve síntese, explica Greco que a vontade pode ser considerada em dois aspectos: o psicológico-descritivo, em contraste com o atributivo-normativo. Afirma, assim, acerca da vontade em sentido psicológico-descritivo que “qualquer que seja o elemento volitivo que se considere correto, nunca é realmente possível provar a sua existência de maneira compatível com as exigências da presunção de inocência e do in dubio pro reo”28, um dos motivos pelos quais critica tão veementemente tais teorias, afirmando categoricamente que sempre será possível ao autor da ação “negar ter agido com o estado mental a que a teoria volitiva preferida se refere, sem que o juiz tenha como atestar estar o autor mentindo”.
Nesta esteira, expõe que, inobstante os problemas de prova e definição do conceito de vontade pelo aspecto psicológico-descritivo adotado pelas teorias volitivas do dolo, sua maior crítica se coloca, em realidade, quanto à própria utilidade de tal conceito, defendendo, ao cabo, que em uma teoria cognitiva do dolo seu conceito se daria apenas enquanto conhecimento fundado em domínio e controle do agente sobre seu ato e a situação antinormativa, ou seja, aspectos, em tese, verificáveis objetivamente e, por isso, compatíveis com os postulados do estado de inocência e in dubio pro reo, não havendo grande valia, portanto, a demonstração da vontade em sentido psicológico:
Psicologicamente, dolo é conhecimento, e não conhecimento e vontade. Se todo dolo é conhecimento, e a vontade não tem relevância alguma, não há mais qualquer razão para diferenciar dolo direto (em suas duas formas, de primeiro ou de segundo grau) e dolo eventual. Há apenas uma forma de dolo. (…) para que se possa falar em dolo, tem o autor de agir com conhecimento tal que lhe confira o domínio sobre aquilo que está realizando. Ou seja, ao menos em parte o dolo acaba se tornando uma questão de tipo objetivo: o autor tem de conscientemente criar um risco de tal dimensão que a produção do resultado possa ser considerada algo que o autor domina.29
E, no mesmo sentido, Puppe afirma ser suficiente para a configuração do dolo que o autor “tenha conhecimento de um perigo intenso” por ele criado, “perigo este cuja intensidade deve ser tal que uma pessoa racional praticaria a ação apenas na hipótese de que ela estivesse de acordo” com a consumação de seu objetivo delitivo30. Tais considerações importam, inclusive, na resolução de debate acalorado na doutrina acerca da possibilidade de comissão do crime de genocídio por dolo eventual do agente, é dizer, concluindo-se não haver diferença entre os convencionados primeiro e segundo graus de dolo, resolvida a questão quando verificado o dolo pelo conceito atributivo-normativo que propõe Greco.
Enxergamos aqui um claro paralelo com as ideias sobre o special intent do crime de genocídio desenvolvidas por Kai Ambos, na medida em que defende, conforme já referenciado, ser esta modalidade verificável através da observação do grau de conhecimento que o agente detinha sobre o contexto genocida e sobre a contribuição de sua conduta individualmente considerada para tal contexto. Embora não teça considerações diretas acerca do conceito normativo da vontade enquanto conhecimento e domínio, apenas, mas siga a presunção de que o dolo se configuraria a partir de conhecimento e vontade, como defendem as teorias tradicionais, a concepção trazida pelo teórico é, em nossa visão, de todo compatível com as ideias esposadas por Greco e Puppe.
Relembramos que, nesta concepção, o elemento essencial do crime de genocídio, a “intenção de destruir”, é extraído da denominada “estrutura dupla de duas faces”, que consiste na verificação de dois elementos mentais - o conhecimento e a vontade direcionados a atos genocidas - e dois pontos referenciais de ação - os atos individualmente considerados e o contexto genocida -.
Nos parece suficiente que os “dois elementos mentais” - que nada mais são do que o conceito de dolo adotado pelas teorias volitivas - sejam substituídos pelo sentido atributivo-normativo explicitado por Luís Greco, de forma que a twice twofold structure defendida por Kai Ambos poderia, sem maiores dificuldades conceituais, verificar o dolo como conhecimento e domínio e, ainda assim, combinar os aspectos dos atos individualmente considerados e o contexto genocida para concluir o special intent.
Poder-se-ia argumentar que a teoria é falha se considerado que o executor direto das condutas genocidas, o low-level perpetrator como referencia Kai Ambos, jamais teria o domínio completo sobre sua conduta e que esta, isoladamente considerada, não seria capaz de consumar o delito de genocídio. É que este agente de “nível baixo”31 poderia ser considerado um simples executor direto de ordens emanadas de superiores hierárquicos, facilmente substituível e, portanto, sem domínio efetivo sobre o cometimento do genocídio como um todo. É o mesmo problema já lançado quanto à autoria e a participação delitivas discutido e solucionado pela celebrada Teoria do Domínio do Fato, na concepção última de Claus Roxin32, e, neste ponto, ganha especial importância a consideração do contexto genocida conforme proposição de Kai Ambos.
Explica-se. Para os casos de crimes comissivos dolosos, Roxin já afirmou deter domínio do fato aquele que tem o (i) domínio da ação, (ii) domínio da vontade, ou (iii) domínio funcional do fato. O agente de “nível baixo” seria, portanto, quem age em autoria imediata, que tem o domínio da ação, “ainda que aja a pedido ou a mando de outrem”33.
Ora, se o agente de “nível baixo” é autor imediato e sua conduta individual é considerada em relação ao contexto genocida sobre o qual tem conhecimento, logo, impossível negar a comissão dolosa do crime de genocídio por este agente. Por tal razão, entendemos, é que defende Kai Ambos que, para tal indivíduo, bastaria que fosse demonstrado seu conhecimento sobre o contexto genocida para que se configure, em relação a ele, o special intent.
Este raciocínio traz conclusão diversa daquela adotada no julgamento de Goran Jelisic, referenciada no início do texto, arguindo que o dolo especial não estaria configurado porque as vítimas seriam aleatórias e que Jelisic não teria cometido os crimes “enquanto parte de um plano maior de destruir o grupo em si”, tudo com base na ausência de demonstração de seu dolo, no aspecto volitivo-psicológico. Entendemos que a necessidade de identificação de um grupo, apesar de ser elemento essencial da figura típica do genocídio, não constitui elemento a demonstrar o dolo especial, tratando-se de mero requisito objetivo. Outrossim, a percepção global sobre tais vítimas pertencerem ou não a um grupo também não nos parece ser fator relevante para a determinação do special intent individualmente considerado, e nem mesmo a necessidade de premeditação, como já firmado por Kai Ambos, em relação a um “plano maior de destruir o grupo em si”.
No caso, tendo sido Jelisic um oficial da polícia declaradamente avesso à vida de muçulmanos bósnios, e tendo conduzido ações para assassinar pessoas, especialmente membros do que, para ele, constituiria um grupo identificável de pessoas, enquanto em contexto genocida, executando diretamente, por vezes, as matanças, nos parece suficientemente demonstrado o dolo especial, em que pese os demais elementos do crime possam, eventualmente, não estar presentes. Entendemos, portanto, que o motivo da absolvição neste caso específico não estaria adequadamente fundamentado por meio da negativa de dolo especial, mas o poderia ter sido por motivos outros, de verificação de elementos essenciais do tipo, por exemplo.
5 O COMBATE À PANDEMIA DE COVID-19 NO ESTADO DO AMAZONAS
A teoria conjunta de “dolo sem vontade” e two fold structure ora proposta também teria aplicabilidade para o recente caso do Brasil, em que veio à baila a possibilidade de comissão de dito genocídio pelo então presidente e autoridades brasileiras em relação às condutas adotadas em face da situação pandêmica geral e também especialmente no estado do Amazonas.
No caso, brasileiro, inicialmente, pelo quanto apurado pela Comissão Parlamentar de Inquérito34 instituída para tal investigação (CPI da Covid-19), concluiu-se pela negativa de verificação do dolo especial de genocídio. Contudo, ao término do governo de Jair Bolsonaro, com a ascensão ao poder da oposição, mais de duzentas atas de reuniões ministeriais e de órgãos governamentais diretamente ligados à presidência outrora sigilosas vieram a público e, por sua enorme quantidade e conteúdo, poderiam tornar questionável a conclusão da CPI da Covid-19. Vejamos.
Conta o Relatório Final da CPI que
A situação do caos no sistema de saúde do Estado do Amazonas mereceu atenção especial, pois revelou-se um corolário da ineficiência da ação governamental. A população da cidade de Manaus vivenciou momentos de desespero, em razão do caos que se instalou no sistema de saúde do Amazonas. Houve mortes por asfixia, em razão da falta de oxigênio medicinal. (…) a incapacidade das autoridades responsáveis pelo sistema de saúde em solucionar as dificuldades relacionadas à pandemia já era do conhecimento do governo federal. (…) Sucede que, superada a primeira onda do novo coronavírus e mesmo sabendo das dificuldades do Estado do Amazonas, o governo federal não colocou em prática nenhum plano de contingência para prevenir uma futura propagação da contaminação do vírus. (…) A falta de ações coordenadas e planejadas dos governos federal, estaduais e municipais para a superação da crise, em meio ao aumento abrupto e consistente das hospitalizações, conduziu o sistema de saúde ao completo colapso. (…) O resultado dessa inação e falta de planejamento foram dezenas de mortes por asfixia de pessoas internadas por covid-19.
Diante de tal situação caótica, e em vista das incontáveis mortes de doentes, foi praticamente inevitável a utilização e propagação do termo “genocídio”35, com clara acepção política, para qualificar as condutas dos dirigentes governamentais, sobretudo do chefe do poder executivo, dado seu histórico de condutas declaradamente negacionistas da crise sanitária global.
Houve especial apuração da possibilidade de cometimento do crime de genocídio em relação às populações indígenas. Também houve investigação acerca de núcleos gerenciados pelo gabinete da presidência da república para a disseminação de informações inverídicas - as ditas fake news - com identificação, inclusive, do que se convencionou chamar o “Gabinete do ódio”36.
Concluiu-se, inobstante, no Relatório que leva a contribuição da renomada jurista internacional Sylvia Steiner, que inexistiriam os requisitos necessários para a imputação do crime de genocídio a qualquer dos dirigentes nacionais, em face de suas condutas - comissivas ou omissivas - perante a pandemia. Argumentou-se, entretanto, o possível cometimento de crimes contra a humanidade, que fogem ao escopo do presente trabalho.
O Relatório Final não indica, de forma exaustiva, os motivos pelos quais considerou impossível a imputação do crime de genocídio aos dirigentes nacionais, referindo, apenas, que
Ainda que o governo brasileiro tenha agido para promover a imunidade de rebanho por contágio, tudo indica que as mortes ocorridas na população em geral tenham sido consideradas como um ônus aceitável para preservar a economia, mas não como um objetivo em si.
Concordamos com tal constatação e julgamos prudente acrescentar que, ao menos ante as evidências apresentadas na CPI da Covid-19, inexistente o elemento essencial do tipo do “crime orientado pelo objetivo” (Absichts-oder Zieldelikt), conforme menciona Kai Ambos, posto que impossível verificar quaisquer dos demais requisitos para a caracterização do special intent pela teoria cognitiva do dolo e pela twofold structure outrora sugeridas. É dizer: à época, verificou-se ausente o objetivo de “destruir, no todo ou em parte, um grupo”, porque, com as informações até então disponíveis, era impossível afirmar que os dirigentes, especialmente o chefe do poder executivo, detinham pleno conhecimento e domínio de uma resultante genocida de suas condutas, estando ausente, inclusive, um contexto genocida, o que torna, por sua vez, impossível tomar as condutas individualmente consideradas em relação a tal contexto inexistente.
Todas estas conclusões foram tiradas, contudo, antes de virem a público centenas de documentos outrora sigilosos, os quais não foram analisados pela referida CPI e poderiam colocar à prova suas conclusões.
Segundo se noticia, após a mudança da presidência, foram atendidos pedidos de publicização das atas de reuniões do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), instituído durante o governo Jair Bolsonaro, com base na Lei de Acesso à Informação37, vindo a público, no início do ano de 2023, ao menos 233 documentos que totalizam quase mil páginas de informações veiculadas de forma sigilosa entre dirigentes governamentais acerca da gestão da maior crise sanitária do planeta, no Brasil38.
Há registros de relatórios timbrados pela Casa Civil, entidade diretamente ligada à Presidência da República, dirigida por pessoa de confiança do então presidente, além de outros com timbre da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), órgão essencial para garantia da segurança nacional, “responsável por produzir conhecimentos que são repassados à Presidência da República para subsidiar a tomada de decisões do (a) presidente”39.
É dizer, não há dúvidas sobre o pleno conhecimento do ocupante da presidência à época acerca das informações contidas e tais documentos, bem como do teor das discussões ocorridas em tais reuniões, que eram registradas apenas de forma sucinta nos documentos oficiais.
Os documentos analisados pelas reportagens veiculadas desde o início de 2023 demonstram que, especialmente para o caso do Amazonas, inexistia qualquer plano concreto de ação para controle da epidemia40, e, ainda, de forma geral, que a Presidência da República ignorou recomendações do Ministério da Saúde sobre a recomendação do uso de máscaras faciais e promoção do distanciamento social, bem como incentivou, apesar de comprovada ineficácia, a adoção de tratamento precoce da doença com medicamentos ineficientes e causadores de reações adversas graves como a cloroquina e hidroxicloroquina41.
Há registros de que houve efetivo empenho, tanto da Presidência, quanto de órgãos por ela diretamente comandados - como o Ministério da Defesa e das Forças Armadas - na produção de tais ineficazes medicamentos à despeito da existência de diversos estudos e relatórios comprovando sua ineficácia e relatando os riscos de reações adversas42.
Os documentos também revelaram que o então presidente ignorou relatórios produzidos pela ABIN alertando sobre o iminente colapso do sistema de saúde do Amazonas, bem como sobre a falta de oxigênio terapêutico, o que implicaria, certamente, em mortes por asfixia43, e foi exatamente o que se verificou durante a pandemia naquela região44.
As conclusões da maioria das reportagens sobre os documentos revelados no início de 2023 são praticamente idênticas no sentido de que havia pleno conhecimento da situação caótica instaurada em face da pandemia de Covid-19, com recomendações de organismos internacionais sobre as melhores medidas a se adotar, mas o Governo Federal optou por ignorá-las, promovendo campanha de negacionismo e atitudes contrárias às recomendadas, tendo, contudo, pleno conhecimento de que tais ações impactariam no aumento do contágio e, consequentemente, no aumento de mortes, ante o colapso dos sistemas de saúde de diversos estados brasileiros.
Nos termos da teoria já posta anteriormente, vislumbra-se que, após a análise, ao menos superficial, dos documentos que foram revelados recentemente, preenchidos plenamente os requisitos de conhecimento e domínio pelos dirigentes governamentais, posto que os documentos revelam a ciência da crise sanitária, a inexistência de qualquer plano de contingência eficaz e, pelo contrário, a adoção deliberada pela Presidência da República de atitudes contrárias às recomendações internacionais.
Quanto aos referenciais das condutas individualmente consideradas e o contexto genocida, outros dois elementos essenciais para verificação do dolo especial de genocídio, como já anteriormente veiculado, percebe-se, contudo, dificuldade em vislumbrar seu preenchimento.
É que, ao menos da análise aqui realizada, não se percebe, com clareza, um contexto genocida que tenha sido causado e intencionado exclusivamente pela omissão de agentes governamentais que detinham o dever legal de contingência da pandemia. É certo que tais graves omissões, enquanto condutas individualmente consideradas, contribuíram para o agravamento do cenário, mas não se pode dizer com plena certeza que a ação no sentido recomendado por organismos internacionais de saúde evitariam tal cenário.
Necessário destacar que a comissão de genocídio por omissão daqueles que tenham dever legal de ação é tema controvertido. Esclarece William Schabas45 que o genocídio por omissão é possível por todas as condutas previstas no Estatuto de Roma, mas que está previsto de forma mais óbvia na alínea “c” do referido artigo do Estatuto de Roma, que prevê a “sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”. Cita como exemplo a redução deliberada do abastecimento de alimentos em territórios sob jugo da Alemanha Nazista, mencionando fala do Ministro do Trabalho Robert Ley que dizia que “uma raça inferior precisa de menos espaço, menos roupas, menos comida, e menos cultura, do que uma raça superior”46.
Contudo, entendemos que o exemplo dado pelo teórico e a afirmação de comissão de genocídio por omissão não são coerentes, posto que o ato de diminuir a quantidade de alimentos fornecidos aos subjugados da Alemanha Nazista configura ato de comissão, e não omissão. É dizer, deliberadamente optou-se por reduzir, em atitude afirmativa, a comida fornecida. É diferente da inação diante de alerta de falta de comida quando se tinha o dever legal de provê-la, por exemplo.
Por outro lado, menciona que o Estatuto de Roma impõe a responsabilização de dirigentes militares e civis por omissão na prevenção de atos de genocídio praticados por seus subordinados47. Tal não parece ser o caso brasileiro, contudo, já que o que se vislumbra é a omissão dos próprios dirigentes federais e, por outro lado, em muitos casos, a atitude contrária dos agentes estaduais e municipais que, em que pese não subordinados à Presidência da República, estão sujeitos à intervenção federal em casos extremos. Verificou-se, por exemplo, no próprio estado do Amazonas, que instituída por longo período a proibição de circulação de pessoas em determinados horários em atitude implementadora do distanciamento social48 recomendado pela Organização Mundial da Saúde, mas menosprezados pelo então presidente brasileiro. Ou mesmo no caso de São Paulo em que o governo estadual exercia forte oposição às recomendações da presidência do país49.
Por tais exemplos, se descarta a constatação do contexto genocida, que é necessário para a verificação dos requisitos do special intent, segundo a teoria de Kai Ambos ora adotada. Em outras palavras, não é possível vislumbrar um contexto genocida sobre o qual a conduta omissiva individualmente considerada dos dirigentes federais contribuiria, o que impede a verificação do dolo especial que permite a responsabilização penal por genocídio.
Ainda que se considerasse que a omissão dos agentes federais seja penalmente relevante, o que se vislumbra é um incremento de risco de morte por contaminação e complicações da doença, o que pode claramente ser enquadrado na tipificação dos crimes contra a humanidade, notadamente alíneas “h” e “k” do parágrafo 1º do artigo 7º do Estatuto de Roma, mas não se vislumbra o incremento de risco de genocídio já que inexistente o contexto.
Neste ponto, retomamos ainda William Schabas50 acerca da comissão de genocídio por omissão:
Quando o genocídio é cometido pela omissão em prover as necessidades vitais, de maneira calculada para destruir o grupo no todo ou em parte, esta omissão será provavelmente aparente, não por algum padrão abstrato de um mínimo vital, mas porque é discriminatória em relação a outros grupos.
Aqui vemos uma elementar objetiva do tipo, no caso, a clara identificação do grupo, como requisito para a configuração do elemento subjetivo que é o dolo especial, o que, a nosso ver, é coerente e compatível com a tese apresentada, já que tal identificação se mostra como ferramenta objetiva da qual seria possível extrair o conceito normativo de dolo proposto por Puppe e Greco. É dizer, se verificado objetivamente que a omissão dos líderes nacionais era intencionalmente dirigida para causar o genocídio de um grupo identificável de pessoas que é alvo de ódio e discriminação negativa, seria possível afirmar a existência do dolo especial requisito do genocídio, pois tal omissão tornaria o risco em um risco de genocídio, incrementando-o.
Há diversas pesquisas que constatam o maior impacto da pandemia em estados brasileiros do Norte e Nordeste51, regiões cujas populações são notoriamente discriminadas racial e culturalmente, sobretudo por nacionais das regiões sul e sudeste - como é o caso do então presidente - o que poderia sugerir a identificação de um grupo nacional alvo, como preconiza a legislação de punição ao crime de genocídio, mas que, por certo, demandaria análise mais aprofundada e detida, já que, contrariando tal assunção, também é fato que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro foram grandemente afetados e não se enquadrariam em tal grupo.
Seria necessário apurar se os impactos da omissão governamental na tomada de medidas eficazes contra a pandemia foram direcionados a um grupo nacional identificável, para, então, ser possível constatar o preenchimento do requisito objetivo do tipo que daria, como delineado alhures, a caracterização do dolo especial. E isto se verifica, sem sombra de dúvidas, com relação às comunidades indígenas, em que pese seja difícil, com as informações até o momento disponíveis, afirmar o mesmo para outros grupos sociais. Vejamos.
Segundo reportado, dentre os documentos que foram tornados públicos, há relatórios da ABIN alertando o Governo Federal do aumento do garimpo ilegal em terras indígenas amazônicas52, que importa em contaminação e destruição do meio ambiente do qual a sobrevivência de tais grupos depende, bem como contágio da doença levada pelos garimpeiros a populações isoladas e sem acesso a medicamentos, vacinas e facilidades hospitalares.
Ficou comprovado, ainda, que o Governo Federal enviou cloroquina a comunidades indígenas para suposto tratamento de Covid-19, para o que era comprovadamente ineficaz, mas que seria eficaz no tratamento de malária se associados a outros medicamentos que não foram provisionados pelo Governo53, deixando claro que o envio de medicamentos se destinava ao tratamento ineficaz defendido abertamente pelo Presidente da República à despeito de comprovações científicas e recomendações do contrário, e não para prover à população o necessário tratamento da malária.
Após o término do Governo de Jair Bolsonaro, foram lançadas luzes sobre a situação que acometia a população Yanomami da região amazônica, constatando-se números assombrosos de mortes causadas justamente por malária - comprovando o constatado no parágrafo anterior - e desnutrição em decorrência da destruição e contaminação ambiental proporcionada pelo garimpo ilegal que foi fomentado sob regência do então presidente e seu Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles54. A taxa de mortalidade a cada mil habitantes em terras Yanomami em 2020 foi significativamente maior do que a média nacional do período55, comprovando os impactos das omissões dos dirigentes federais sobre tal população.
Dentre os documentos outrora sigilosos, há, ainda, relatórios da ABIN alertando à Presidência sobre o massivo desmatamento, sendo certo que o então presidente mentiu sobre estas informações na 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas sediada em Nova York em setembro de 202056. Alinhado a tal discurso, o então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, descredibilizou a teoria de savanização da Amazônia, conhecida como Tipping Point, ou de ponto de não retorno, mesmo admitindo não possuir dados e provas concretas e suas afirmações, orientando os presentes na reunião do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) a como enfrentar questionamentos sobre o assunto, desacreditando a teoria que é reconhecida internacionalmente57.
Ricardo Salles foi exonerado do cargo após investigações da Polícia Federal que o ligavam à exportação ilegal de madeira, colocado em seu lugar, a mando do Presidente, o General Hamilton Mourão, com a transferência do CNAL da estrutura do Ministério do Meio Ambiente à alçada da Vice-Presidência. Mais tarde, em reunião do CNAL ocorrida em 30 de agosto de 2022, o referido general, então vice-presidente da República, exarou conhecimento pleno das consequências nefastas do garimpo ilegal que se alastrava por regiões da etnia Yanomami e afirmou a necessidade de medidas urgentes para coibi-lo, o que jamais ocorreu durante o governo de Jair Bolsonaro58.
De tais evidências, é possível extrair, com clareza, que as omissões dos dirigentes federais foram intencionalmente direcionadas aos povos indígenas com incremento de risco de genocídio, e não apenas de mortes em simples decorrência da epidemia da doença, especialmente porque há inúmeros indicativos não só de omissão deliberada de proteção a tais comunidades, mas igualmente de obtenção de vantagens, sobretudo econômicas, em decorrência do genocídio destes povos.
No caso indígena, vislumbra-se completamente o preenchimento dos requisitos ensejados do dolo especial de genocídio por omissão, a saber, conhecimento da situação catastrófica pelos dirigentes estatais integrantes, principalmente, do Governo Federal e domínio, destes mesmos agentes, dos meios necessários e suficientes para evitar ou mesmo minimizar as fatalidades, além do o contexto de possível genocídio que se torna factível e cujo risco é incrementado pelas condutas omissivas individualmente consideradas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando por premissa a dificuldade de verificação e definição do que viria a ser o special intent enquanto elemento essencial e caracterizador do dolo no crime de genocídio, cuidamos de analisar a teoria da twice twofold structure formulada por Kai Ambos especialmente para tal fim, acrescendo-se-lhe as ideias apresentadas por Ingeborg Puppe e desenvolvidas no texto de Luís Greco acerca de uma Teoria Cognitiva do Dolo, em detrimento das tradicionais teorias volitivas do dolo.
Evidenciamos, ademais, a importância do estudo da matéria, cujos conceitos e elementos ainda são nebulosos e de difícil verificação, mas que, ao mesmo tempo, são essenciais para a correta e estrita aplicação da legislação internacional contra o crime de genocídio, de forma que, em decorrência, se verifica aplicação bastante díspar dos conceitos em casos concretos já julgados por tribunais internacionais.
Propusemos, assim, de forma dialética, uma terceira teoria que faz convergir os conceitos das duas primeiras, a fim de fornecer, ao menos de forma incipiente, elementos objetivamente verificáveis, em tese, para a caracterização do dolo especial de genocídio, concluindo como sendo seus requisitos o conhecimento e o domínio da conduta individualmente considerada e orientada a contribuir para o contexto genocida no sentido de ultimar o crime contra o grupo alvo que a lei intenta proteger.
Finalmente, para averiguar a aplicabilidade da teoria proposta, tomando por exemplo a situação pandêmica no Brasil investigada pela Comissão Parlamentar de Inquérito autodenominada “CPI da Pandemia”, no tocante às acusações de comissão de crime de genocídio por dirigentes nacionais e, principalmente, pelo presidente da república, corroboramos as conclusões do Relatório Final da CPI no sentido de que não seria possível, de forma generalizada, imputar aos agentes o crime de genocídio por omissão, uma vez que ausentes os elementos essenciais do tipo e, principalmente, o special intent to destroy com relação à população em geral, mas contrastamos as conclusões com a documentação que teve o sigilo levantado posteriormente e não foi submetida à análise da CPI, deduzindo pela possibilidade de comissão de genocídio contra populações indígenas, posto que preenchidos todos os requisitos do crime, inclusive de acordo com os ensinamentos de William Schabas acerca da verificação do special intent em condutas omissivas ensejadoras de genocídio, posto que há provas de que as omissões de agentes governamentais, sobretudo de integrantes do Governo Federal, no combate ou mitigação dos impactos da Pandemia de Covid-19 em tais populações foram deliberadas e direcionadas à obtenção de vantagens pessoais em detrimento de comunidades indígenas. Havia risco de destruição do grupo étnico e tal risco foi incrementado pela omissão deliberada que caracteriza a conduta como genocida.
Concluiu-se, portanto, pela propriedade da teoria proposta, com a aplicabilidade em caso concreto documentado e ocorrido no Brasil, e, ainda, pela necessidade de revisão das conclusões a que chegou a CPI da Pandemia, posto que equivocada ante as evidências documentais posteriormente descobertas.