Sumário: ; ; 3. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 frente ao cenário pandêmico do Amazonas; ; 5. .
1 INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19 teve evolução rápida no Brasil. A Amazônia, maior bioma brasileiro, não escapou da situação trágica que se abateu em solo nacional, por toda sua extensão, atingindo a todos, inclusive, os povos originários e a população do campo, da floresta e das águas. O avanço da pandemia para essas comunidades habitadas por povos com acentuada diversidade étnica e cultural, cuja logística territorial da extensa área é complexa; o acesso ao sistema de saúde precário e a saúde negligenciada pelas demais doenças como - malária, dengue, desidratação, dentre outras, fez implodir na região um dos momentos mais avassaladores da história da saúde pública brasileira.
Manaus foi a primeira capital severamente afetada pela pandemia em 2020 e vivenciou dias de terror em janeiro de 2021. A falta de estrutura do sistema de saúde do Amazonas, a chegada de uma nova variante da Covid-19, a acentuada desigualdade social existente no território amazonense, somada a sucessão de erros cometidos no enfrentamento à pandemia, onde as autoridades deveriam buscar meios para reduzir a propagação da doença e tratar os indivíduos contaminados, fez eclodir uma grave crise sanitária. O sistema hospitalar colapsou, não havia leitos comuns nem de UTI, além de ter faltado oxigênio levando à inúmeras mortes por asfixia.
A Advocacia Geral da União (AGU) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 756/2021, indicou alguns fatores que contribuíram para essa calamidade pública: (i) deficiência na resolutividade da atenção primária, (ii) falta de aquisição de materiais de consumo hospitalar, medicamentos e equipamentos; (iii) dificuldades na contratação de profissionais com habilitação para atuação nas UTIs; (iv) alta ocupação dos leitos dos serviços de urgência e emergência revelando alta taxa de ocupação de leitos de UTI (BRASIL, 2021a).
A tragédia sanitária sofrida em Manaus se espalhou pelo interior do Amazonas e não poupou a população que habita o estado banhado pela maior bacia hidrográfica do mundo, onde os rios norteiam a vida social e são as principais fontes de renda, vias de acesso e transporte dos moradores da região.
Segundo Lalwani et al. (2019) a Covid-19 deve ser encarada “como uma sindemia, ou seja, quando uma determinada doença é agravada por contextos sociais e econômicos”, visto que já foi comprovado mundialmente que os indivíduos mais vulneráveis estão sob o maior risco de adquirir a infecção e maior propensão a evoluir para a doença severa. Portanto, para o enfrentamento da Covid-19 são necessárias medidas que transpassem os determinantes sociais e ambientais.
No Brasil, essa realidade não foi diferente, a pandemia atingiu todo o país, mas de forma diversa escancarando a perversa desigualdade social e econômica entre as regiões brasileiras, assim como revelando e expandindo as iniquidades em saúde, principalmente nas regiões mais pobres (ORELLANA et al., 2020; BEGA, SOUZA, 2021).
Tavares e Betti (2021) apontaram que o Norte do país foi a região que apresentou maior grau de vulnerabilidade à exposição à Covid-19.
As condições de vida no Amazonas são amplamente desfavoráveis para a maioria da população. A desigualdade existente é revelada pelos mais elevados indicadores de vulnerabilidade socioeconômica - pobreza, insegurança alimentar, renda per capta insuficiente, baixa escolaridade, ausência de saneamento básico e acesso limitado a serviços públicos de saúde (GALVÃO et al., 2019; GARNELO, 2019; ARACATY e SILVA et al., 2022).
O IBGE, em 2020, demonstrou que o Amazonas era o 4º maior em desigualdade na distribuição de renda no País, cujo índice de Gini foi de 0,5683. Outras evidências do cenário desigual no Amazonas, se dão através dos resultados do Índice de Progresso Social Amazônia - 2021 (IPS Amazônia) que demonstrou que a performance social do estado (54,96) estava abaixo da média do país (63,29)4, enquanto o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) - 2021 indicou vulnerabilidade social na faixa média (0,342)5, ao passo que o resultado da média do país encontrava-se na faixa baixa (0,249).
Embora Manaus seja o grande centro urbano e econômico do estado e, em 2020, representava 1,3% da economia do país com o quinto Produto Interno Bruto (PIB)6, exibe uma enorme desorganização social, visto que no mesmo ano, era a capital do País com a maior proporção (53,3%) de domicílios localizados em invasões, palafitas, loteamentos e favelas, indo de encontro a condição econômica existente. Logo, não se vislumbra a pujante economia sendo usufruída pela população da capital e muito menos pelos demais 61 municípios amazonenses (BRASIL, 2020a; BRASIL, 2022). O distanciamento de grande parte da população do estado acarreta um profundo isolamento em relação à economia regional, nacional e internacional (IPEA, 2017).
Diante do panorama local desigual, somado a grave crise sanitária instaurada durante a pandemia da Covid-19, esta pesquisa se propôs a revisitar a segunda onda da Covid-19, no Amazonas, a fim de descrever a conjuntura que se abateu com a crise de oxigênio e observar as mudanças ocorridas após este período crítico com o intuito de contribuir de maneira significativa para o entendimento dos problemas existentes referentes à saúde do estado.
O encadeamento metodológico deste estudo partiu do tema central da pandemia da Covid-19, no Amazonas, especificamente na segunda onda, e os desdobramentos após este período. O referencial teórico foi pesquisado em documentos governamentais, artigos publicados em periódicos especializados, textos acadêmicos etc., além de dados secundários coletados em publicações nacionais e outras fontes governamentais.
Quanto ao raciocínio científico o processo adotado foi o dedutivo, a partir do conteúdo das premissas gerais, no caso a pandemia de Covid-19. O gênero do estudo adveio da pesquisa empírica buscando os aspectos de validade e confiabilidade das informações/dados detectados, se baseando nas observações (i) técnicas, (ii) por assunto/conteúdo, (iii) qualitativos (não numéricos), (iv) precisos ou vagos, (v) históricos ou contemporâneos, (vi) legais, judiciais e jurisprudenciais, e em (vii) dados coletados em fontes secundárias.
A escolha da metodologia, portanto, sucedeu pela possibilidade de traçar inferências fundadas em observações científicas para informar a situação descritiva, qual seja, entender o que os dados/informações revelam sobre o período pandêmico que vivemos. As fontes primárias, documentos de todas as espécies - livros, artigos, decisões administrativas e judiciais, entrevistas, notícias na mídia, teses etc., aumentaram a percepção crítica do estudo com relação aos dados qualitativos para fins de evidenciar o contexto da saúde pública local.
2 A SITUAÇÃO DO AMAZONAS DURANTE A SEGUNDA ONDA DA COVID-19
A pandemia da Covid-19 teve reconhecimento oficial no Brasil quando o governo federal, através da Portaria GM/MS nº 454, em 20 de março de 2020, declarou o estado de transmissão comunitária do coronavírus em todo o território nacional e cujo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), preservou a atribuição de cada esfera de governo para expedir providências e atos normativos atinentes às medidas sanitárias de enfrentamento à pandemia (BRASIL 2020b; BRASIL, 2020c).
No âmbito do Poder Público do Amazonas o primeiro Decreto estadual publicado, nº 42.061, em 16 de março de 2020, declarou situação de emergência na saúde pública do estado, em razão da disseminação do novo coronavírus (2019-nCoV), e institui o Comitê Intersetorial de Enfrentamento e Combate à Covid-19, ao qual compete o acompanhamento dos reflexos das medidas estabelecidas no referido Decreto, com base nos indicadores técnicos relativos ao tema, tais como a disponibilidade de leitos de UTI e clínicos, taxa de transmissão, ocorrência de novos casos e demais dados da epidemia, e a consequente proposição de ações, quando necessárias, de revisão das medidas (AMAZONAS, 2020a). Logo em seguida, através do Decreto estadual nº 42.100, em 23 de março de 2020, foi declarado “estado de calamidade pública” comprovando a situação crítica que se abateu no estado desde o início da pandemia da Covid-19 (AMAZONAS, 2020b).
O Amazonas sofreu uma grave crise de saúde pública em decorrência da pandemia da Covid-19, que teve início na chamada primeira onda, apresentando taxas de letalidade acima da média estipulada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)7, resultando no colapso do sistema de saúde e, inclusive, do sistema funerário. Ante ao cenário calamitoso que se instalou no estado, medidas sanitárias de enfrentamento ao coronavírus foram adotadas, algumas restritivas8 e outras com relaxamento9 do isolamento social, mesmo estando em período pandêmico (BARRETO et al., 2021).
Como consequência, o estado vivenciou por poucos meses, um período de abrandamento do quadro epidemiológico, pois com a chegada do período eleitoral e de festas de final de ano10, juntamente à flexibilização das medidas de restrição social por meio do Decreto estadual nº 43.236, em 28 de dezembro de 2020, e o menor distanciamento social nos municípios do interior, a situação voltou a agravar rapidamente (AMAZONAS, 2020c; NAVECA, 2021). Houve um grande aumento no número de pessoas contaminadas, ocasionando o surgimento de uma nova variante do coronavírus, mais transmissível (P.1). O sistema de saúde pública e a rede privada não conseguiram absorver a alta demanda de doentes11, o que levou a eclosão da segunda onda da Covid-19, no Amazonas, superando o pico da primeira onda em abril e maio de 2020.
As duas ondas epidêmicas foram caracterizadas pelo Plano de Contingência Estadual para Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 do Amazonas de acordo com a evolução temporal do coronavírus no estado, em dois períodos, a saber:
(i) período de 13 de março (Semana epidemiológica 11 - S11) até 30 de maio (S22), com aumento acelerado de casos, na capital e no interior; (ii) período de 23 de dezembro de 2020 (S51) a 24 de janeiro de 2021 (S4), com acelerado aumento no número de casos, principalmente devido à circulação da nova variante P1, às aglomerações nas festividades de fim de ano e ao período sazonal de circulação de vírus respiratórios (AMAZONAS, 2021a, p. 19).
Desta feita, uma nova crise sanitária se abateu no Amazonas em meados de dezembro de 2020, sendo agravada de forma devastadora e caótica, em 14 de janeiro de 2021, quando a cidade de Manaus padeceu pelo desabastecimento de oxigênio nas unidades de saúde, levando a morte de muitos pacientes por asfixia.
Em matéria do jornal “Folha de São Paulo”, na edição de 14 de janeiro de 2021, noticiava sobre a grande dificuldade em conseguir leito nas unidades de saúde do Amazonas e da ameaça de falta de oxigênio nos hospitais de Manaus devido ao aumento da demanda, em seis vezes, somente na rede pública (PRESTES, 2021). Desse modo, era sabido e notório que havia um enorme risco de o oxigênio medicinal acabar, se nenhuma medida urgente fosse tomada a tempo de reverter esse quadro alarmante.
O que causa bastante estranheza em face desse fatídico cenário, é que o Plano de Contingência Estadual para Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 do Amazonas menciona a referida data, somente no que diz respeito a demanda de transferência interestadual pelo “crescimento no número de pacientes com necessidade de internação para o tratamento da Covid-19 e que a rede estadual já apresentava uma alta taxa de ocupação de leitos destinados para esse tratamento”, entretanto, não há menção alguma sobre a questão gravíssima da falta de oxigênio, como se ilustra abaixo:
Portanto, em 14 de janeiro de 2021, houve a tomada de decisão pelo Comitê Intersetorial, formado pelo Governo do Estado do Amazonas, Ministério da Saúde (Força Nacional do SUS), Força Aérea Nacional e Organização Pan-americana da Saúde - OPAS, quanto a estratégia de transferência interestadual para as demais unidades federativas em localidade onde havia equilíbrio na taxa de ocupação de leitos para pacientes com Covid-19 - denominada Operação Vida (AMAZONAS, 2021a, p. 128).
Segundo o Ministério da Saúde (MS), a taxa de mortos pelo novo coronavírus no Amazonas (2 mil pessoas/milhão hab.) superou a taxa da Bélgica (1.818 vítimas), país com maior número de mortes pela Covid-19 em relação ao tamanho da população, tornando-se o epicentro mundial da maior crise sanitária secular (HOMERO, 2021).
Vale ressaltar, que antes da pandemia o Amazonas apresentava uma realidade em relação à saúde de completa falta de infraestrutura - com falta de leitos, respiradores, profissionais de saúde, longas filas de espera na assistência, desvios de recursos da saúde além dos números de superfaturamento, situação que só se agravou com a Covid-19 (ARACATY e SILVA et al., 2022).
Da mesma maneira, havia imensa disparidade na distribuição dos serviços de saúde do estado, com grande concentração na capital, quando comparada aos municípios do interior. Manaus era responsável por 89% dos serviços de média complexidade e 100% de alta complexidade - com 58% do total de leitos do estado e 91% dos leitos de UTI e cuidados intermediários; e contava com mais de 80% dos equipamentos de saúde do estado (ANJOS, 2022; DE LAVOR, 2021; SALINO & RIBEIRO, 2023). A alta concentração dos serviços de saúde em Manaus, além de obrigar os moradores do interior se deslocarem por grandes distâncias à procura de assistência (alta complexidade - 462 km, média e baixa complexidade - 418 km)12, gera sobrecarga no sistema de saúde da capital, conforme visto nos períodos críticos da pandemia de Covid-19.
A questão da oferta e do acesso à assistência especializada à saúde no Amazonas, se agravou na pandemia, uma vez que para conseguir atendimento para a forma grave da Covid-19, os amazonenses tiveram que percorrer uma distância média de 615 km (NORONHA et al., 2020). As conjunturas desfavoráveis do estado evidenciam este grave problema da oferta e do acesso nos três níveis de atenção à saúde. Importante destacar que consonante ao estabelecido pela gestão tripartite do Sistema Único de Saúde (SUS), a responsabilidade pela atenção de média e alta complexidade é de âmbito estadual, enquanto a atenção básica fica a cargo dos municípios.
Estudos realizados apontam que locais com os sistemas de saúde fragilizados e onde os investimentos não foram proporcionais ao crescimento da doença tiveram maiores taxas de mortalidade na pandemia.13 Corroborando com o fato alarmante, do Amazonas ter apresentado alta taxa de letalidade referente a Covid-19.
As condicionalidades apontadas conduzem para a constatação realista e forte trazida por Anjos, 2022:
As 4.699 mortes causadas pela Covid-19 no Amazonas poderiam ter sido evitadas se os hospitais estivessem localizados mais próximos da população e possuíssem recursos físicos e humanos para o atendimento adequado dos pacientes. No entanto, o que se observa é que após o quadro caótico que o estado atravessou nos meses de abril e maio/2020, o planejamento da saúde voltado para os atendimentos da Covid-19, principalmente no estado grave, não está preparado para uma possível segunda onda da Covid-19 (ANJOS, 2022, p.34).
Em Nota Técnica ao Ministério Público do Amazonas (MPAM)14, em maio de 2020, pesquisadores haviam indicado medidas para impedir o aumento do número de casos da Covid-19, informando que um rápido aumento dos casos no interior do estado iria pressionar as UTIs em Manaus, além de alertar que a não adoção de tais medidas levaria ao surgimento de uma nova onda (AMAZONAS, 2020e).
Fatores políticos e socioeconômicos contribuíram para o recrudescimento da pandemia no Brasil, e o Amazonas, de forma severa, não escapou da “ausência de uma campanha informativa coordenada cientificamente e pela interferência na gestão da saúde pública, que acabou afetando as medidas de saúde para evitar a disseminação do Sars-CoV-2”. Não se vislumbrou uma atuação administrativa rápida, a instabilidade administrativa no comando do MS15 acentuou a crise da pandemia em território nacional e o Brasil emergiu como exemplo de “falta de uma política nacional de saúde pública robusta e implementação de uma campanha anticiência ativa” (XAVIER et al., 2022).
Segundo Ferrante et al. (2022), a fim de favorecer a economia no curto prazo, os políticos locais se recusaram a adotar medidas para conter a pandemia e prevenir uma segunda onda da Covid-19, mesmo quando os dados do governo não indicavam uma queda no número de casos ou óbitos.
Dessa forma, diante do contexto negacionista, o quadro pandêmico no Brasil refletiu caos sanitário e milhares de mortes e o Amazonas, alinhado às orientações do governo federal, contribuiu expressivamente com os números dos graves dos resultados dessa catástrofe.
2.1 A Trágica Crise de Desabastecimento de Oxigênio Medicinal no Amazonas
A explosão da Covid-19 no Amazonas, na segunda onda, foi de tamanha magnitude que houve mais mortes (6.736 óbitos/AM) nos três primeiros meses de 2021 (SE 01 a SE13) do que durante todo o ano de 2020 (5.325 óbitos/AM), assim como quando comparado ao período posterior a SE13/2021 até a SE14-abr./2023 que apresentou 2.408 óbitos/AM, comprovando o terror vivido no estado no início de 202116.
O estado ocupava, em 24 de janeiro de 2021, a primeira posição no ranking do MS de estados com maior mortalidade - 172,4 óbitos/100 mil hab. e a maior taxa de transmissão17 da Covid-19 do país (1,3) (AMAZONAS, 2021b)
Outro dado significativo se refere a taxa de letalidade18 do Amazonas em 2021 - 3,7%19, enquanto a taxa exibida no Brasil para o mesmo ano foi de 2,6%20, ambas acima da estimativa da OMS (0,6%). A realidade dos infectados que foram a óbito pela Covid-19 no Amazonas, foi seis vezes pior que a apontada para a doença, comprovando a disparidade da tragédia colossal ocorrida no estado tanto na esfera nacional, quanto internacional.
Esta situação caótica pode ser explicada pela fragilidade do sistema de saúde do Amazonas em relação ao quantitativo de leitos hospitalares, pois nas competências de jan./2020 (1,34 leito/mil hab.) e jan./2021 (1,43 leito/mil hab.), exibiu valores muito abaixo do recomendado pela OMS (3 a 5 leitos/mil hab.) (SALINO & RIBEIRO, 2023). Igualmente quanto a carência de profissionais de saúde, onde a concentração média no estado era de 1,1 médicos/mil hab.; sendo discrepante a diferença entre a concentração de médicos na capital com 1,7 médicos/mil hab. e os municípios do interior (0,49 médicos/mil hab.), exibia a média muito aquém do parâmetro adotado pelo MS de 2,5 médicos/mil hab. (AMAZONAS, 2021c).
A precariedade do Amazonas, no âmbito da saúde, se deparou com o aumento vertiginoso dos casos da Covid-19 na proporção de 420% na capital; 262% no interior e 343% no estado21, no período entre o final de dezembro de 2020 (SE52) e o pico da segunda onda em 23 de janeiro de 2021 (SE03), refletindo o avanço progressivo e exponencial da doença e a incapacidade de assistência a demanda estadual.
O quadro pandêmico perante a deficiência do sistema de saúde, acompanhado do aumento expressivo dos atendimentos, induzido pela alteração progressiva do cenário epidemiológico amazonense, deveria ter chamado a atenção dos gestores públicos estaduais, municipais e federais para a possível falta de oxigênio medicinal no estado. Fato que não ocorreu e acabou provocando, em janeiro de 202122, a crise do desabastecimento de oxigênio no Amazonas.
A falta de oxigênio não aconteceu por falta de informações, pois a empresa White Martins (WM)23 responsável pelo abastecimento do estado24, comunicou a Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas (SES/AM) em 16 de julho de 2020 e 09 de setembro de 2020, sobre o aumento de consumo e a necessidade de acréscimo de 25% nos volumes contratados, como medida preventiva imediata em caráter de urgência por se tratar de atendimento indispensável ao suporte de vida (BRASIL, 2021b, p. 278-281). No entanto, somente em 20 de novembro de 2020, foi pactuado um acréscimo de 21,9152% no volume contratado, abaixo do solicitado pela WM e aquém do necessário para a demanda do estado. A análise do Engenheiro Clínico da SES/AM havia verificado que o aditivo pactuado “não seria suficiente para atender a demanda das unidades até dezembro de 2020, que o percentual ideal de aditamento deveria ser de 46,9152%” (BRASIL, 2021b, p. 289).
Segundo informado pela empresa WM, o cálculo do volume de oxigênio a ser utilizado em futuro próximo, não é difícil e se dá a partir do prognóstico de internações. Entretanto, ficou comprovado em auditoria realizada pelo Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DENASUS), em maio de 2021, que a SES/AM não dispunha de relatórios de controle e fiscalização do consumo de oxigênio das unidades de saúde do estado (BRASIL, 2021b, p. 288 e 289).
De acordo com o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, a empresa WM (detentora de 90% do mercado do estado) tinha a capacidade nominal de produzir - 25.000 m3/dia, em Manaus. Durante o pico das internações, em janeiro/2021, a demanda diária de oxigênio na capital foi de 76.500 m³/dia, três vezes maior que a capacidade instalada, ilustrando a dimensão do caos instalado neste período (BRASIL, 2021b, p. 298).
É necessário lembrar, que o início da vacinação contra a Covid-19 no Amazonas se deu em janeiro de 2021, quando o estado batia recordes de casos de internação e o sistema de saúde estava colapsado. Em virtude disto, foram enviadas doses extras da vacina mesmo assim, não houve tempo hábil para imunizar a população a tempo de impedir o avanço da doença naquele momento, razão pela qual era essencial manter as regras sanitárias preconizadas pela OMS. Todavia, propagava-se a imunidade de rebanho, o site oficial “Agência Brasil” havia publicado em 22 de setembro de 2020 que “Manaus pode ter atingido imunidade de rebanho, sugerem pesquisadores” (BOEHM, 2020).
Agregado a estes fatores há um componente político e ideológico. O governo do Amazonas era situacionista e o governo federal manifestava-se contrário a um plano nacional de enfrentamento à Covid-19. Medidas sanitárias de bloqueio local, distanciamento social, uso obrigatório de máscaras, higienização das mãos, testes rigorosos e rastreamento de contatos da população, eram combatidas e desestimuladas pela cúpula do governo. Além disso, outros elementos contribuíram para a grave situação amazonense - o atraso na vacinação e o estímulo ao uso de drogas comprovadamente ineficazes no combate da Covid-19, como a cloroquina e a ivermectina, serviram de estímulo não só a automedicação, como também passaram a ser prescritas pela direita médica brasileira, o que agravou o número de mortes de idosos na localidade.
O negacionismo científico, a radicalização na crença de inimigos imaginários associada às teorias conspiratórias, o esvaziamento das instituições públicas, a polarização política, o empoderamento para a autoridade pessoal do governante, o estímulo à liberdade do cuidado-pessoal e ao autotratamento, foram narrativas bolsonaristas que influenciaram a percepção negativa da comunidade sobre a Covid-19. O Amazonas não fugiu à regra. O dia 14 de janeiro de 2021 e os subsequentes ficaram terrivelmente gravados na história do povo amazonense.
3 A COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CPI) DA COVID-19 FRENTE AO CENÁRIO PANDÊMICO DO AMAZONAS
O art. 58, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), estabelece que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) tem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais visando a apuração de fato determinado e por prazo certo (BRASIL, 1988). Trata-se, portanto, de função típica do Poder Legislativo, qual seja, fiscalizar os atos praticados pelo Poder Público, com competência legislativa limitada em razão da matéria de sua competência. Quer dizer, a CPI instaurada no âmbito da esfera federal não pode intervir em matéria de competência estadual, por exemplo.
É prerrogativa das minorias parlamentares refletindo na “impossibilidade de a maioria parlamentar frustrar, no âmbito do Congresso Nacional, o exercício, pelas minorias legislativas, do direito constitucional à investigação parlamentar (CF, Art. 58, § 3º)”25. Desta feita, podem “determinar diligências, requerer convocação de ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos”26, se necessário for (BRASIL, 2006).
Por intermédio do Requerimento nº 1.371, de 2021, de autoria do senador Randolfe Rodrigues foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, iniciada em Wuhan, província de Hubei, na China, no final de dezembro de 2019 (BRASIL, 2021b). A princípio, a letalidade e a transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 eram desconhecidas, mas em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto do novo coronavírus constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), o mais alto nível de alerta da OMS, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional27, alertando para a contenção do vírus “desde que os países adotem medidas fortes para detectar doenças precocemente, isolar e tratar casos, rastrear contatos e promover medidas de distanciamento social compatíveis com o risco.”28
Em 18 de janeiro de 2023 havia 663.001.898 casos da Covid-19 confirmados no mundo, mas as Américas já constavam, neste período, 2.901.903 mortes29, das quais 696 mil ocorreram no Brasil (WHO, 2023).
Em 2021, 408.333 cidadãos brasileiros perderam suas vidas, o que colocou nosso país no triste primeiro lugar do mundo em óbitos em 2021. Em termos relativos, o Brasil registrou, até o momento, 101.145 casos/milhão hab. (23º lugar (1)), 2.819 óbitos/milhão hab. (7º lugar (2)) e 12,3% dos mortos, mesmo tendo apenas 2,7% da população mundial. Menos da metade dos brasileiros está com sua vacinação completa. O Brasil também foi mal na área econômica, o que serviu de justificativa durante todo o período da pandemia, até os dias atuais, para o afrouxamento nas medidas de enfrentamento da pandemia.
Notas do Relatório: (1) Considerando apenas países com população acima de um milhão de habitantes. Foram excluídos, assim, Seicheles, Montenegro, Andorra, San Marino, Maldivas, Chipre e Luxemburgo; (2) Considerando apenas países com população acima de um milhão de habitantes. Foram excluídos, assim, Montenegro (BRASIL, 2021b, p. 11).
A crise no estado do Amazonas contribuiu neste panorama de “caos”. O primeiro óbito pela Covid-19 no estado foi registrado em 24 de março de 202030, no município de Parintins (AMAZONAS, 2020f). Logo em seguida, nos meses de abril e maio de 2020, iniciou a identificada “primeira onda” da pandemia e o sistema de saúde local dava sinais de dificuldades para enfrentar, de forma efetiva, ao recrudescimento do número de casos da doença.
Em 23 de abril de 2020 a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS/AM) divulgou que o estado atingiu mais de 96% de ocupação em leitos de UTI da rede pública de saúde e o sistema funerário já colapsado em 21 de abril de 2023, fez Manaus enterrar as vítimas da Covid-19 em valas coletivas (AMAZONAS, 2020g; SUDRÉ, 2020). No final de abril/2020, já haviam sido registrados 380 óbitos pela Covid-19 no estado (AMAZONAS, 2020h).
O número de casos da doença não parava de crescer e os óbitos aumentavam rapidamente. “Até o dia 06 de maio, foram registrados 751 óbitos pela Covid-19 no Amazonas. Do total de óbitos 71% (532) ocorreram na capital e, 29% (219), no interior” demonstrando o avanço rápido da doença para o interior do estado (AMAZONAS, 2020i).
Em 7 de maio/2020 a FVS/AM declarou que, até o momento, havia sido “confirmados 9.243 casos da Covid-19 no Amazonas. A evolução temporal dos casos mostra que a epidemia está em fase de progressão, tanto na capital como no interior”, sendo que “a taxa de incidência média da Covid-19 no Amazonas é de 223 casos/100 mil hab., três vezes superior à taxa média nacional de 59 casos/100 mil hab.” (AMAZONAS, 2020i).
Em 13 de junho/2020 já havia o registro de 2.465 óbitos pela Covid-19 no Amazonas. A FVS/AM apontava para uma situação grave ao afirmar que “do total de casos confirmados no estado (56.026), 9,4% (5.283) desenvolveram a forma grave da doença. Entre os casos hospitalizados, 21% (1.117) necessitaram de leitos de Unidade de Terapia Intensiva”(AMAZONAS, 2020f).
Dados epidemiológicos de vigilância da doença respiratória aguda grave (SRAG) e enterros indicam que a primeira onda da epidemia começou em março de 2020 e atingiu o pico por volta do início de maio de 2020, quando o número de casos caiu e depois permaneceu praticamente estável de junho a novembro 2020. No entanto, em meados de dezembro, o número de casos começou a crescer exponencialmente, estabelecendo a segunda onda da epidemia (NAVECA et al., 2020, p. 1230).
O quadro devastador causado pelo aumento significativo do número de casos da doença, com colapso hospitalar (tanto na rede pública quanto na rede privada) e do sistema funerário, em 2020, fez com o estado que fosse investigado pelo Senado Federal, uma vez que encontrava-se entre “os entes federativos que mais recebem recursos nesta seara e, em tese, deveria ter tido condições de resistir ao primeiro pico”, motivo pelo qual o Amazonas passou a integrar, em capítulo próprio, a CPI da Pandemia31 (BRASIL, 2021b, p. 260).
Para a CPI da Covid-19 a gestão pública tinha conhecimento da grave situação epidemiológica que o Amazonas poderia enfrentar em curto espaço de tempo, tanto assim que editou o Decreto nº 43.234, em 23 de dezembro de 2020, dispondo sobre medidas restritivas durante o período do final do ano32, visto que os dados indicavam alta exponencial de mortes pela Covid-19 nas semanas seguintes, “além dos riscos que as aglomerações decorrentes das festividades de fim de ano exerciam sobre a taxa de contágio”. Ademais, “reconhecia-se o déficit dos serviços hospitalares - seja em infraestrutura, seja em recursos humanos - para atendimento à projeção de alta nos casos da doença” (BRASIL, 2021b, p. 261 e 262).
Mesmo com a presença dos sinais de exacerbação da pandemia no Amazonas, em 28 de dezembro de 2020, o referido ato normativo que decretava o lockdown fora revogado33, por pressão popular, atenuando as medidas restritivas das atividades econômicas e de circulação de pessoas em Manaus e no restante do estado, conforme afirmou o então Secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus José Barroso Campêlo, em oitiva na CPI, sendo represtinado o Decreto nº 43.234/2020 por meio de “decisão judicial que fez com que o decreto voltasse a vigorar a partir do dia 2 janeiro” (BRASIL, 2021b, p. 262). Ou seja, o poder Judiciário do Amazonas acata o pedido da Ação Civil Pública (ACP) interposta pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM), em 02 de janeiro de 2021, e determina a suspensão total das atividades consideradas não essenciais pelo prazo de 15 dias.
O agravamento da situação é reconhecido pelo Poder Público amazonense ao afirmar que a partir da “segunda quinzena de dezembro houve aumento do número de internações pela Covid-19, possivelmente devido ao descumprimento das medidas de prevenção estabelecidas e às confraternizações de fim de ano e festas clandestinas”(AMAZONAS, 2021b). No entanto, em nenhum momento, seja no boletim nº 15 FVS/AM ou no nº 16 FVS/AM, há indicação de que o descumprimento às medidas sanitárias se deu pelo fato do governo ter revogado o Decreto nº 43.234/2020 que impunha o lockdown, embora as informações nos mesmos sinalizassem a agudeza da situação:
Até o dia 23 de janeiro de 2021 foram registradas 19.784 hospitalizações por pacientes com Covid-19 no estado do Amazonas. Em Manaus, foi observado aumento na ocupação de leitos clínicos e de UTI tanto na rede pública quanto da rede privada, com aumento expressivo a partir de janeiro de 2021 (...). Atualmente, a taxa de ocupação de leitos clínicos na rede pública e privada é de 101% e 81%, respectivamente, e a de leitos de UTI é de 97% na rede pública e 93% nas unidades da rede privada (...) (AMAZONAS, 2021b, p. 3).
Vale salientar que entre a expedição dos referidos boletins oficiais, ocorreu o agravamento da crise sanitária em Manaus, com a falta de oxigênio medicinal no dia 14 de janeiro de 2021, fato omitido pelo Boletim nº 16 FVS/AM, emitido após o trágico dia, embora seja descrito o referido período de grande aumento dos casos com “variação de 343% no número de casos da Covid-19 no Amazonas, em reflexo do aumento de 420% na capital e de 262% no interior” (AMAZONAS, 2020k; AMAZONAS, 2021b).
A gravidade do quadro pandêmico com mapeamento da necessidade de abastecimento de oxigênio em municípios amazonenses, já era descrito desde 18 de maio de 2020 em reunião do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE-covid-19), e nas “Ações emergenciais decorrentes do agravamento dos casos de Covid-19 no estado do Amazonas - Plano Manaus” ao reportar o aumento de casos “a partir já da semana do Natal de 2020, com significativo aumento a partir de 27 de dezembro, quando o número de hospitalizações dobrou, em relação à semana anterior (36 casos em 20 de dezembro, versus 88 casos, em 27 de dezembro) (https://localizasus.saude.gov.br/).” (BRASIL, 2021b, p. 288).
No citado documento consta também a informação que o então Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, decidiu, em 28 de dezembro de 2020, enviar para Manaus, no dia 03 de janeiro de 2021, “um dos secretários, formado em medicina, para avaliar a situação34 logo após a virada do ano. Escolheu-se, para a tarefa, a Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro”. Além da citada Secretária, a comitiva foi composta por “dois de seus diretores e cinco técnicos”35. Aponta também que na “data da chegada da comitiva do Ministério a Manaus, o número de hospitalizações motivadas pela Covid-19 em Manaus voltou a dobrar (159 casos)” (BRASIL, 2021c).
Em depoimento à CPI da Covid-19, o então Secretário de Estado, Marcellus Campêlo, confirma “no dia 31 de dezembro, pedimos o apoio via ofício à Força Nacional, pedindo ao Ministério da Saúde a presença da Força Nacional de Saúde no Estado do Amazonas para apoiar”, destacando “diretiva oficial do MS em favor de ‘orientações de intervenção precoce para covid-19’, a despeito da inexistência de lastro científico que justificasse a sua execução como política pública” (BRASIL, 2021b, p. 264/265).
Documentos secretos divulgados em fevereiro de 2023 pelo site “Agência Pública” confirmam a grave situação sanitária sofrida pelo Amazonas, em especial Manaus, revelando aquilo que já se supunha sobre o dia em que a falta de oxigênio levou à morte por asfixia inúmeras pessoas internadas nos hospitais locais, o fatídico 14 de janeiro de 202136.
O acesso aos dados pela Agência Pública, por força da Lei de Acesso à Informação (LAI), indica que em 4 de janeiro de 2021, a equipe delegada pelo MS à cidade de Manaus, após reunião com autoridades públicas locais37, e outras pessoas ligadas à área da saúde, não só davam como certa a falta de oxigênio em 10 dias, como também demonstravam conhecer em detalhes o caos vivido naquele momento de acordo com as conclusões do encontro:
- há possibilidade iminente de colapso no sistema de saúde, em 10 dias, devido à falta de recursos humanos para o funcionamento dos novos leitos;
- há deficiência na resolutividade na atenção primária, por não estarem utilizando as intervenções precoces para a Covid-19, conforme orientações do MS;
- há dificuldades na aquisição de materiais de consumo hospitalar, medicamentos e equipamentos;
- há dificuldades na contratação de profissionais com habilitação para atuação nas UTIs;
- há necessidade de estruturação de leitos de UTIs com celeridade para atendimento aos pacientes que já demandam internação, constatadas pela alta ocupação dos leitos dos serviços de urgência e emergência (salas idas e vermelhas) - taxa de ocupação atual de 89,1%; e
- estima-se de um substancial aumento de casos, o que pode provocar aumento da pressão sobre o sistema, entre o período de 11 a 15 de janeiro, em função das festividades de Natal e Réveillon38.
“Exatos 10 dias depois, hospitais de Manaus esgotaram suas reservas de oxigênio com pacientes morrendo por asfixia”39. Quer dizer, em 4 de janeiro de 2021 o governo previu, com precisão, “a data do colapso no sistema de saúde”40.
Mantidas em sigilo ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro, as atas de 233 reuniões “revelam detalhes sobre o combate à pandemia da Covid-19 adotado pelo governo federal de 2020 a 2021”, relata A Pública. Os documentos não foram analisados pela CPI da Covid-19 de 2021, e “mostram, por exemplo, como o Ministério da Defesa, o Itamaraty e o MS se empenharam na produção de cloroquina, remédio ineficaz para o tratamento da Covid-19, que era propagandeado por Bolsonaro como solução para a crise sanitária”. As atas são resultados de reuniões do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP)41, de março de 2020 a setembro de 2021. Nem a propósito, a Ata da 134ª Reunião Ordinária do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 traz o relato do MS indicando o desinteresse do Amazonas em adotar o tratamento precoce para a Covid-19:
Em resposta ao questionamento apresentado pelo Subchefe Adjunto Executivo da SAM acerca da implementação/incremento, pelo Estado do Amazonas, de tratamento precoce para a Covid-19, o representante do MS informou que o estado não tem adotado, a contento, essa estratégia. Salientou, ainda, que essa questão foi tratada pela equipe técnica que esteve em Manaus no dia 04 de janeiro42.
Antes disso, a Ata da 133ª Reunião Ordinária do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, realizada em 04 de janeiro de 202143, já apontava a grave situação pandêmica no Amazonas44, indicando que:
A taxa de ocupação dos leitos de enfermaria Covid-19 no Estado é de 80% e leitos de UTI SRAG/Covid-19 é de 89%; Número de casos confirmados nas últimas 24h: 546; Número de óbitos nas últimas 24h: 18 e; Número de pacientes internados com Covid-19: 1.33845.
Embora o MS em seu Relatório Parcial de Ações46 no período de 06 a 16 de janeiro de 2021, relatasse que “foi detectado, ainda, logo no início do período, a gravíssima situação dos estoques de oxigênio hospitalar em Manaus, em quantidade absolutamente insuficiente para o atendimento da demanda crescente”, não se observa na descrição de ações de emergências adoção de medidas para evitar o colapso iminente de falta de oxigênio na capital do Amazonas. Em vez de providenciar o abastecimento de reservas de oxigênio e plano de contingência, o que se constata é “visita às instalações da White Martins em Manaus e do reconhecimento, na mesma empresa, das obras onde será instalada uma nova planta”, como também tornar Manaus “a primeira cidade a utilizar o TrateCOV”47, plataforma digital para diagnóstico clínico e tratamento precoce de Covid-19:
Considerando a iminência de colapso da estrutura de saúde da cidade de Manaus, foi sugerida a atuação em várias frentes: educação sanitária da população e/ou introdução de diagnóstico e tratamento precoce. Foram feitas as seguintes sugestões: o diagnóstico precoce, por intermédio do escore proposto por Cadegiani; adoção de campanhas agressivas de marketing, reforçando a importância de medidas de distanciamento, higiene e uso de máscara; e adoção da quimioprofilaxia/bloqueio epidemiológico para a maior parte possível da população48. (grifo nosso)
Em 9 de janeiro de 2021, o Japão notificou o Brasil sobre uma nova variante do coronavírus detectado em quatro viajantes que estiveram no Brasil, no estado do Amazonas, e retornaram ao Japão em 2 de janeiro (PONTES, 2021). “Em 13/01/2021, o Ponto Focal Nacional para o Regulamento Sanitário Internacional do Brasil comunicou a confirmação de 2º caso de reinfecção por nova cepa variante do SAR-CoV-2 no Amazonas à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)”, com maior transmissibilidade do vírus. Coincidentemente, “Manaus/AM foi o município com maior número de registros de óbitos na SE 01 de 2021 com um total de 280 óbitos novos.” (BRASIL, 2021b, p. 72/265).
Nos dados preliminares até a SE 02 de 2021 sobre o estado do Amazonas:
O Amazonas confirmou o primeiro caso da doença em 13 de março de 2020. E até o dia 15 de janeiro de 2021 teve 226.511 casos e 6.043 óbitos até 15 de janeiro de 2021. O coeficiente de incidência foi de 5465,2 e mortalidade de 145,8 por 100 mil habitantes. O AM tem a maior taxa de mortalidade no país49 (grifamos)
Fatores como “a ausência de um monitoramento e de um planejamento acerca do fornecimento de insumos hospitalares, sobretudo o abastecimento de oxigênio medicinal, por parte dos governos estadual e federal, levaria a uma grave crise humanitária no local,” representando “nas primeiras oito semanas de 2021, pelo menos 113.732 casos e 5.506 óbitos ocorreram no Amazonas em decorrência da Covid-19.” (BRASIL, 2021b, p. 265, 266).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia da Covid-19 no Amazonas, propiciou a exposição nacional e internacional dos problemas seríssimos de saúde no estado que desencadearam o caos sanitário na segunda onda, cujo ápice culminou com a calamidade da crise do desabastecimento de oxigênio.
Além de estar localizada num estado com dimensões continentais e mesmo sendo o quinto PIB do país com grande concentração demográfica, Manaus não ultrapassou as barreiras das desigualdades socioeconômicas e geográficas, representando assim um desafio sanitário, tornando-se o epicentro da pandemia.
Verificou-se que o estado possui poucas usinas de fornecimento de oxigênio medicinal, cuja oferta se dá praticamente, com exclusividade, por uma única empresa, o que dificulta a distribuição suficiente e proporcional para todos os municípios do Amazonas e limita o aumento da oferta do volume de oxigênio. Mesmo após a pandemia.
Ferrante et al. (2020), concluíram que o conflito político sobre as medidas de controle a serem adotadas pelos entes federativos foi causa determinante para o caótico resultado sanitário no Brasil, repercutindo no nível local. Assim, o erro de não evitar a segunda onda e o número de mortes no Amazonas é de responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal.
Notou-se que os gestores públicos não foram “pegos” de surpresa pela tragédia que se abateu no Amazonas, as circunstâncias e os fatores condicionantes existentes no estado apontavam, mesmo antes da pandemia, para um quadro de total desequilíbrio no sistema de saúde, além dos documentos oficiais atestarem as carências e necessidades do estado no período mais crítico da Covid-19. Panorama este reforçado, inclusive, pela deflagração de ação policial, ano de 2020, e consequente ação judicial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) envolvendo agentes públicos do Poder Executivo, em pleno período da pandemia, tendo como centro da investigação a compra de respiradores pela Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES/AM).
Deste feito, a partir da fragilidade da saúde no estado comprovada e do quadro sanitário alarmante instaurado durante a pandemia da Covid-19, é indispensável que os gestores públicos planejem a reestruturação do sistema de saúde do Amazonas, com o propósito de reduzir a desigualdade existente, visto que a atenção à saúde encontra-se altamente concentrada na capital, dificultando o acesso e a assistência das populações dos outros 61 municípios do estado. É necessário delinear uma distribuição mais equânime dos estabelecimentos e profissionais de saúde nos três níveis de atenção, considerando a singularidade dos povos e territórios envolvidos, dado que o cenário atual desrespeita os princípios doutrinários do SUS - universalidade, integralidade e equidade.