Sumário: 1. Introdução. 2. Direito ao Desenvolvimento. 3. Ideia de Sustentabilidade. 4. Os Deveres nos Direitos Humanos. 5. O Dever de Promover a Sustentabilidade. 6. Considerações Finais. 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como propósito examinar qual é o sentido de desenvolvimento no âmbito dos direitos humanos e de sustentabilidade - se ela pode e se deve ser tomada como sinônimo de desenvolvimento sustentável.
Objetivo. Tendo a finalidade de investigar o que se pode compreender por desenvolvimento sustentável, busca, também, compreender se a realização do desenvolvimento sustentável pode ser considerada um dever no âmbito dos direitos humanos.
Problematização. Adotando a ideia de que o desenvolvimento, nos direitos humanos, refere-se à transição econômica, social e cultural, para modos de vida mais humanizados, com a inclusão da sustentabilidade, abre-se um leque mais amplo de elementos de proteção para salvaguarda do meio ambiente e da justiça intergeracional.
Dessarte, o texto apresenta ideias de sustentabilidade do ponto de vista dogmático e normativo, bem como o conceito de dever e sua compatibilidade com os direitos humanos, cuja razão de ser está na proteção da dignidade da pessoa humana.
Hipótese. A primeira hipótese adotada pelo trabalho é de que o direito ao desenvolvimento deve ser realizado considerando a ideia de sustentabilidade. Também considera a hipótese de que os direitos humanos têm o aspecto dos deveres, não apenas dos direitos e, nessa toada, que o desenvolvimento sustentável dá efetividade aos direitos humanos, tanto para fruição individual, quanto para o benefício dos povos.
Metodologia. Foi utilizada, na pesquisa, o método dedutivo, com procedimentos bibliográficos e documentais.
2 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
O direito ao desenvolvimento, que busca estabelecer “equidade entre todos os povos da humanidade”3, embora tenha bases antigas na história de conquista dos direitos4, foi primeiro divulgado na doutrina social da Igreja.
Como ideia fundante e expressamente mencionado na Carta Encíclica Pacem in terris5, o direito ao desenvolvimento também foi mencionado por Felipe Nery Moschini, em seus estudos sobre a Carta Encíclica. Depois, a expressão passou ao campo da política e, então, em 1972, Keba M’Baye realizou a conferência “O direito ao desenvolvimento como um direito humano”6.
Como explica o saudoso Professor Antonio Augusto Cançado Trindade, o reconhecimento do direito ao desenvolvimento, enquanto um direito humano foi se consolidando nas Nações Unidas, sobretudo, durante as Consultas Mundiais7 e, muito além do aspecto econômico, foi sendo compreendido como um processo de proteção e promoção dos direitos humanos em todo o globo8.
A própria adoção da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, pela Resolução 41/128, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 4 de dezembro de 1986, como anota Arjun Sengupta9, recebeu voto contrário dos Estados Unidos, o que se explica pela profunda divisão ideológica que havia entre as ideologias que dividiam o mundo na Guerra Fria entre socialistas e capitalistas.
Superada essa questão pela característica de interdependência dos direitos humanos, pode-se considerar que o direito ao desenvolvimento é um processo de melhoramento, que nas palavras do Padre Lebret: “é a passagem pelo conjunto de subpopulações que integram um povo, de um nível de vida menos humano, a um nível de vida mais humano, ao custo de trabalho e capital menos elevado possível, no ritmo mais rápido possível”10.
No mesmo sentido, Melina Girardi Facchin explica que “a alusão ao desenvolvimento de pronto conduz a um processo, de múltipla natureza (...), que se instaura para satisfação das necessidades humanas, também de caráter multíplices, e se renova com a contínua e constante ressignificação das precisões humanas”11.
O direito ao desenvolvimento, pois, se perfaz no reconhecimento dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, tanto das pessoas quanto dos povos. Não há que se falar em desenvolvimento com a exclusão de qualquer desses elementos.
E quando surgiu o desenvolvimento sustentável? Pode-se afirmar que o foco do processo de desenvolvimento foi mudando com o passar das décadas, nas Nações Unidas: “na década de 1970, o foco eram as necessidades humanas básicas, na década de 1980, começou-se a pensar nas condições de vida e na década de 1990, na erradicação da pobreza e no desenvolvimento sustentável”12.
3 IDEIA DE SUSTENTABILIDADE
Segundo Paulo Affonso Leme Machado:
A noção de sustentabilidade funda-se em pelo menos dois critérios: primeiro, as ações humanas passam a ser analisadas quanto à incidência de seus efeitos diante do critério cronológico, pois esses efeitos são estudados no presente e no futuro; segundo, ao se procurar fazer um prognóstico do futuro, haverá de ser pesquisado que efeitos continuarão e quais as consequências de sua duração13.
Assim, quando se pensa na questão ambiental e no equilíbrio que deve haver entre desfrutar de tudo o que a natureza pode oferecer no presente e que também deve estar disponível às futuras gerações, inevitável se remeter à ideia de justiça intergeracional. Como aponta Médici, a justiça e a pacificação social não se circunscrevem ao tempo presente:
Ao contrário, envolvem uma perspectiva temporalmente diferida, resultante do impacto da ação humana na formatação da própria sociedade do futuro. Como advertia Edmund Burke já em 1790, o Estado/Sociedade “torna-se uma associação não só entre os vivos, mas também entre os que estão mortos e os que irão nascer”. Nessa perspectiva surge o dilema da justiça intergeracional14.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo aponta que o termo sustentabilidade na dimensão utilizada hoje foi inicialmente empregado na Conferência Mundial de Meio Ambiente, em Estocolmo, no ano de 1972, tendo sido repetido, depois, na ECO-92, que foi a Conferência do Rio de Janeiro15.
A ideia do desenvolvimento sustentável
(...) tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham a oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa disposição16.
Contudo, Paulo Affonso Leme Machado explica que não necessariamente o desenvolvimento é orientado para a sustentabilidade: “Desenvolvimento sustentável é uma locução verbal em que se ligam dois conceitos. O conceito de sustentabilidade passa a qualificar ou caracterizar o desenvolvimento”17 e pontua que, embora “desenvolvimento”, no clássico sentido econômico de aumento quantitativo, isto é, crescimento, se oponha à ideia de sustentabilidade:
O antagonismo dos termos - desenvolvimento e sustentabilidade - aparece muitas vezes, e não pode ser escondido e nem objeto de silêncio por parte dos especialistas que atuem no exame de programas, planos e projetos de empreendimentos. De longa data, os aspectos ambientais foram desatendidos nos processos de decisões, dando-se um peso muito maior aos aspectos econômicos. A harmonização dos interesses em jogo não pode ser feita ao preço da desvalorização do meio ambiente ou da desconsideração de fatores que possibilitam o equilíbrio ambiental18.
A oposição inicial entre desenvolvimento e sustentabilidade também é explicada por Maria Luiza Machado Granziera, elucidando que o relatório The limits to grows, elaborado por uma equipe de cientistas do MIT - Massachusetts Institute of Technology, “influenciou a elaboração dos estudos preliminares para a Conferência de Estocolmo, em que, inicialmente, ‘os conceitos meio ambiente e desenvolvimento eram tido como antagônicos’”19.
Juarez Feritas conceitua sustentabilidade da seguinte forma:
Traduz-se, portanto, a sustentabilidade, como dever fundamental de, com a mira no bem-estar intergeracional, produzir e compartilhar o desenvolvimento limpo e propício à saúde, todos sentidos, aí abrangidos os componentes primordialmente éticos, em combinação com os elementos sociais, ambientais, econômicos e jurídico-políticos. Assimilado dessa forma, do princípio fundamental descendem relevantes obrigações20.
Posto o conceito, cumpre entender o que se pode chamar de deveres, em sentido jurídico, ideia essa tão cara e necessária para que a sustentabilidade seja colocada em prática.
4 OS DEVERES NOS DIREITOS HUMANOS
A contemporaneidade, cujo marco histórico é a Revolução Francesa, é marcada pelo reconhecimento de direitos. Como afirma Douglas Cristian Fontana, “junto ao catálogo de direitos, deve haver também um catálogo de deveres, que podem ser morais (não exigíveis) ou jurídicos, cujo cumprimento pode ser coletivo, difuso ou destinado às futuras gerações”21.
Filosoficamente, “dever” pode ser compreendido como “ação segundo uma ordem racional ou uma norma”22. Ora, se o dever é sinônimo da ação bem guiada, qual o motivo de estar cada vez mais esquecido na atualidade?
Na Era Medieval, as monarquias não reconheciam muitos direitos aos súditos, de modo que, historicamente, o dever remonta à submissão, seja ao divino, seja à monarquia, o que tem uma conotação negativa, conforme aponta Macaruella23.
A própria Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, de 1789, em seu preâmbulo, inscreve os deveres ao lado dos direitos24, de modo que não foram esquecidos pela Assembleia Nacional francesa, durante a Revolução.
Do ponto de vista positivista, o dever pode ser compreendido como “uma posição jurídica passiva, uma vez que subordina um interesse do agente e exige dele um comportamento para que esse dever se cumpra”25.
O dever jurídico, diferentemente da obrigação, não necessariamente encontra um sujeito, individualizado, em situação jurídica ativa. Nesse sentido, explica Fontana:
Contudo, cabe dizer que deveres não devem ser confundidos com obrigações jurídicas. Isso porque, na visão de Días Revorio, a obrigação jurídica existe de forma correlativa a um direito subjetivo de outrem que nasce de uma relação entre particulares, notadamente de um negócio jurídico. Já o dever é algo que se impõe a um sujeito em consideração a interesses que não são seus, podendo ser de uma coletividade ou de outro sujeito; trata-se de uma proteção a direitos objetivos, de modo que, frente ao dever de alguém, existe um poder de outro para exigir seu cumprimento. Observa-se, com isso, que os aspectos marcantes da distinção entre as duas figuras são a natureza (pública dos deveres e privada das obrigações) do titular do poder jurídico de impor ou exigir seu cumprimento; a singularidade (das obrigações) e a generalidade (dos deveres); e os interesses que justificam a imposição (gerais e objetivos nos deveres; particulares e subjetivos nas obrigações)26.
Assim, segundo essa perspectiva, os deveres têm por objeto uma prestação que pode ser em benefício da coletividade ou de uma pessoa específica, sendo o Poder Público quem pode impô-los ou exigir seu cumprimento, motivado por interesses gerais - não particulares - e objetivos - não subjetivos.
Os deveres também estão consagrados no plano normativo do direito internacional dos direitos humanos.
No sistema regional interamericano de direitos humanos, que é inaugurado com a Carta da Organização dos Estados Americanos - OEA, tem-se a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada na IX Conferência Internacional Americana. Já no preâmbulo, o texto afirma que os homens - referindo-se, genericamente, à pessoa humana - “devem proceder fraternalmente uns com os outros”27.
Então, prossegue a Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem, em seu preâmbulo:
O cumprimento do dever de cada um é exigência do direito de todos. Direitos e deveres integram-se correlativamente em toda a atividade social e política do homem. Se os direitos exaltam a liberdade individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade.
Os deveres de ordem jurídica dependem da existência anterior de outros de ordem moral, que apóiam os primeiros conceitualmente e os fundamentam.
É dever do homem servir o espírito com todas as suas faculdades e todos os seus recursos, porque o espírito é a finalidade suprema da existência humana e a sua máxima categoria.
É dever do homem exercer, manter e estimular a cultura por todos os meios ao seu alcance, porque a cultura é a mais elevada expressão social e histórica do espírito.
E, visto que a moral e as boas maneiras constituem a mais nobre manifestação da cultura, é dever de todo homem acatar-lhes os princípios28.
A ideia expressa no preâmbulo da Declaração adotada pela Resolução XXX, Ata Final, aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948, vai no sentido que expressamos: coloca o dever como necessário à realização dos direitos humanos e a serviço de algo maior, para o bem de todos.
Embora o Artigo II da Declaração aponte que todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados no documento, os deveres estão agrupados no capítulo segundo, reservado a tratar mais detidamente sobre o assunto.
Lá estão, no Artigo XXIX, o dever de convívio; no Artigo XXX, o dever dos pais de cuidar dos filhos e, sempre que necessário, dos filhos de cuidar dos pais; no Artigo XXXI, o dever de adquirir a instrução primária; no Artigo XXXII, o dever de votar nas eleições de que se é nacional; no Artigo XXXIII, o dever de obedecer à lei e às determinações legítimas das autoridades; no Artigo XXXIV, o dever de realizar prestações cívico-militares; no Artigo XXXV, o dever de cooperar com a assistência e a previdência sociais; no Artigo XXXVI, o dever de pagar impostos para manutenção do serviço público; no Artigo XXXVII, há o dever de trabalhar, pela própria subsistência ou em benefício da coletividade; e, no Artigo XXXVIII, o dever do estrangeiro de se abster de tomar parte nas atividades políticas do país onde se encontrar29.
Os deveres também podem ser extraídos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do sistema global de proteção dos direitos humanos. O texto, em seu preâmbulo, afirma que o objetivo do documento é “que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades”30.
O Artigo I, da Declaração adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, aduz que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”31.
Além do último parágrafo do preâmbulo e do Artigo I, a Declaração Universal dos Direitos Humanos também fala em deveres no Artigo XXIX, segundo o qual:
1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas32.
A afirmação de que toda pessoa tem deveres para com a comunidade, reafirma a ideia de que deveres são posições jurídicas passivas, que têm como beneficiário tanto pessoas, individualmente consideradas, quanto a coletividade e, mais ainda, de que são plenamente compatíveis com o conceito e a linguagem dos direitos humanos.
Cristalizando essa ideia, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada em 1986 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu Artigo 2º, aponta claramente que “todas as pessoas têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando em consideração o pleno respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como seus deveres para com a comunidade”33. Ora, a própria Declaração reconhece expressamente, no âmbito dos direitos humanos, um dever.
5 O DEVER DE PROMOVER A SUSTENTABILIDADE
Diante do que foi visto até esse ponto, há que se perguntar: haveria um dever relacionado à sustentabilidade?
A Declaração de Estocolmo, de junho de 1972, sobre o Meio Ambiente Humano, em seu preâmbulo, tratando das condutas que devem ser orientadas em prol da salvaguarda ambiental, aponta que
7. Para se chegar a esta meta será necessário que cidadãos e comunidades, empresas e instituições, em todos os planos, aceitem as responsabilidades que possuem e que todos eles participem equitativamente, nesse esforço comum. Homens de toda condição e organizações de diferentes tipos plasmarão o meio ambiente do futuro, integrando seus próprios valores e a soma de suas atividades34.
O princípio 1 da Declaração aponta que a pessoa humana tem a solene responsabilidade de proteger e melhorar o meio ambiente35. O princípio 4, com mais especificidade, afirma que a pessoa humana tem a especial responsabilidade de salvaguardar e cuidadosamente gerir o patrimônio da vida selvagem e seu habitat36.
Anos depois, a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, fruto da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, entre os dias 3 e 14 de junho de 1992, também consagrou a indissolubilidade entre a proteção ambiental e o desenvolvimento37.
No Princípio 5, a Declaração do Rio aponta que os Estados e as pessoas têm de cooperar na tarefa de erradicar a pobreza; e, no Princípio 27, tem-se a parceria entre os Estados e os povos, para cooperação de boa-fé, a fim de realizar cada um dos princípios do documento38.
Após a Declaração da Rio 92, a Carta da Terra, documento elaborado pela sociedade civil em 2000, após anos de consultas e debate entre especialistas de todos os continentes habitados39, ainda que não seja juridicamente vinculante, sobretudo, por não proceder do poder do Estado, tampouco de Organizações Internacionais que tenham o poder de representá-los, nos ajuda a compreender o papel da responsabilidade individual e do dever no alcance do desenvolvimento sustentável.
O preâmbulo do documento conclama as pessoas a assumirem sua responsabilidade individual pela prevalência do respeito ao meio ambiente, aos direitos humanos, à justiça econômica e à cultura da paz: “Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações”40.
No parágrafo “Terra, Nosso Lar”, a Carta menciona que “A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado”41. Adiante, a Carta convida à assunção do dever relacionado ao desenvolvimento sustentável:
Responsabilidade Universal
Para realizar estas aspirações, devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com toda a comunidade terrestre bem como com nossa comunidade local. Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual a dimensão local e global estão ligadas. Cada um compartilha da responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem-estar da família humana e de todo o mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida, e com humildade considerando em relação ao lugar que ocupa o ser humano na natureza. Necessitamos com urgência de uma visão compartilhada de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à comunidade mundial emergente. Portanto, juntos na esperança, afirmamos os seguintes princípios, todos interdependentes, visando a um modo de vida sustentável como critério comum, através dos quais a conduta de todos os indivíduos, organizações, empresas, governos, e instituições transnacionais será guiada e avaliada42.
Na sequência, a Carta da Terra, seguindo a redação formal de um documento soft law, também elenca princípios, entre os quais, destaca-se: “I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA”, cujo ponto 2, intitulado “Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor”, fala textualmente em direitos que implicam na assunção de deveres:
a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os direitos das pessoas. b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica responsabilidade na promoção do bem comum43.
O ponto 4, a seu turno, trata da responsabilidade de garantir o usufruto das belezas e benesses da natureza às futuras gerações, apontando, no item “a.”, que é necessário “Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas necessidades das gerações futuras”44.
Ao final, reforçando a ideia de que a construção do desenvolvimento sustentável passa pelos deveres no âmbito dos direitos humanos, a Carta da Terra aponta que “Todo indivíduo, família, organização e comunidade têm um papel vital a desempenhar. (...) A parceria entre governo, sociedade civil e empresas é essencial para uma governabilidade efetiva”45.
Mais atualmente, a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, A/RES/76/300, de 26 de julho de 2022, intitulada “O direito humano ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável”, termina com uma exortação aos Estados, às organizações internacionais e, dividindo a responsabilidade com agentes privados, para que também as empresas e os interessados em geral (steakholders) adotem políticas e, entre outras condutas, compartilhem boas práticas a fim de intensificar esforços na garantia do meio ambiente limpo, saudável e sustentável para todos46.
É imperioso, para a manutenção da vida humana e do meio ambiente, que a sustentabilidade não fique relegada às incumbências do Estado e seja, finalmente, um compromisso de toda e qualquer pessoa. Nesse sentido, explica Leonardo Boff:
Como se pode compreender, a sustentabilidade recobre todos os âmbitos da realidade, do mais vasto, que é o universo, até o mais íntimo, que é o coração do indivíduo pessoal. Tudo existe, coexiste e continua a existir porque há uma Energia poderosa que continuamente produz sustentabilidade e permite que a evolução continue em seu curso de expansão, de autocriação e de ascensão a formas de ser cada vez mais complexas e espirituais e concede ao ser humano poder testemunhar este processo, sentir-se parte dele, crescer e enriquecer com ele47.
Nesse sentido, José Eli da Veiga, explicando sobre a nomenclatura do período geológico em que se vive, “em que a durabilidade da vida na Terra passou a depender demais da conduta de uma única espécie - a humana”, grande parcela dos pesquisadores de geociências passou a denominar o período de antropoceno48.
Se a continuidade da vida depende da conduta humana, evidente que a sustentabilidade não pode ser tarefa de realização e fiscalização exclusiva do Estado: trata-se de um dever sagrado, compatível com os direitos humanos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui, teve-se a oportunidade de examinar o direito ao desenvolvimento na perspectiva dos direitos humanos, que deve ser compreendido como um processo em que os modos de vida se tornam mais humanizados, com a completude dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, na perfeita interdependência dos direitos humanos, tanto para as pessoas, quanto para os povos.
O desenvolvimento, nessa compreensão, supera a antiga ideia de crescimento como grande finalidade da economia, de modo que é compatível com o conceito de sustentabilidade. Sustentabilidade, como vimos, consiste no usufruto de direitos no tempo presente, sem descurar daquilo que também deve estar à disposição das futuras gerações.
Como foi visto, a ideia de deveres, no âmbito dos direitos humanos, mais do que uma interpretação favorável, encontra legitimidade expressa na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento.
Um desses deveres que compete a todos, enquanto pessoas humanas, é a responsabilidade sagrada de zelar pela sustentabilidade, que é o desenvolvimento sustentável, tanto por um compromisso ético com a vida existente em suas mais diversas manifestações - na natureza -, quanto com o fim de garantir a possibilidade de vida para um tempo que, embora se saiba que nem todos conhecerão nesta existência, tem-se a certeza de que virá.














