1. “Senhores passageiros…” (introdução)
O patamar de “homem-pássaro” foi atingido no Século XX, depois de muitas tentativas, erros, e vidas perdidas. Hoje a artificialidade do “lugar” a bordo de um avião pouco nos preocupa (e ainda bem). Todavia ela impõe-se a diversos níveis: sustentação, elevada altitude, velocidade, escassez de oxigénio, ruído, baixa humidade e pressão atmosférica. Tudo, menos um ecossistema humano. Tornar esta atmosfera habitável foi sempre apanágio de quem fornece o serviço de transporte. Atrasos, cancelamentos, turbulência, acidentes, são tabu na construção identitária de qualquer companhia aérea.
Na aviação tudo está alinhado para que se obtenha uma noção de eficácia e segurança, com a mesma naturalidade que numa viagem de comboio ou autocarro. É necessário para isso transformar o reduzido e claustrofóbico espaço da cabina num palco onde se possam desenrolar diversas acções, como encenações ou momentos de entretenimento (Lovegroove, 2000) [1].
A viagem por ar está cheia de simbolismos e percepções condicionadas: da confiança que sentimos no uniforme militarizado do comandante, à sofisticação tecnológica que vislumbramos através da porta semiaberta do cockpit quando embarcamos. Tudo o que nos rodeia faz parte de uma representação credível. Quando falamos em encenação, clarifique-se, não nos referimos a dissimulação. De acordo com o site da IATA (International Air Transport Association) a aviação é o meio de transporte mais seguro. Devemos agradecer este facto, reconhecendo o esforço de diversas áreas científicas. Não apenas a Matemática, Física ou Engenharia Aeronáutica, mas também, entre muitas, a Ergonomia e Psicologia Cognitiva, e claro, o Design: estratégias de comunicação, uniformes de tripulantes, concepção de interiores e poltronas, até aos mais diversos objectos que rodeiam o passageiro. À falta de melhor opção, quando se fecham as portas do avião, somos mesmo obrigados a confiar que todas essas áreas se alinharam para nos transportar do ponto “A” ao ponto “B”, em segurança e conforto.
Uma refeição a bordo tornou-se simultaneamente num momento lúdico e disciplinador. O que a companhia (e os assistentes de bordo) menos desejam é que os passageiros se passeiem pelos corredores estreitos e se concentrem na zona das casas-de-banho e galley 2 (copa), enquanto são servidas dezenas ou centenas de refeições. O momento tão esperado da refeição (embora nos queixemos sempre da qualidade) encurta a percepção que temos da duração da viagem, e sobretudo implica o regresso ao lugar sentado, e à disciplina.
Como nos demonstraram Augé (1992)[2]; Riviére (1997) [3]; Onfray (2007) [4] ou Bottom (2009)[5], os rituais ou “atracções” de uma viagem de avião, entre elas a alimentação, encerram complexos mecanismos sociológicos e antropológicos de identificação cultural. Estes mecanismos permitem que se diferencie um “ambiente aéreo” com base na cultura. Entre ser servida lagosta e pagar por um café passaram algumas décadas. A história das refeições a bordo evoluiu (ou regrediu) bastante, estando hoje praticamente restrita aos voos de longa duração.
2. “Plano de voo” (metodologia)
O olhar da Crítica e da História do Design sobre Aviação, em cruzamento contextual com o estudo dos rituais sociais e antropológicos, começa a dar alguns passos. No contexto nacional quase tudo continua por fazer (Gentil-Homem, 2014) [6]. O presente artigo pretende fornecer um contributo parcelar e transdisciplinar, limitado ao território do interior de um avião, durante um serviço de refeição.
A metodologia adoptada para esta investigação de base qualitativa, assenta na análise documental em arquivos e na revisão de literatura de artigos, teses de mestrado e doutoramento que versem tangencial ou directamente o tema. A análise empírica contempla a observação directa do espólio do Serviço de Documentação e Arquivo do Museu TAP (SDA / MTAP)3, bem como artefactos usados pela companhia Aero-Portuguesa, à guarda da Fundação Medeiros e Almeida. Estes últimos encontravam-se totalmente por estudar do ponto de vista do design. Alguns hiatos foram pontualmente colmatados com recurso à colecção pessoal do autor.
3. “Dentro de momentos iremos proceder ao serviço de refeição” (desenvolvimento)
O serviço de refeição, ou catering, constitui um exercício logístico complexo e especializado4. A sua evolução histórica adaptou-se aos avanços tecnológicos da capacidade de voar, às características operacionais (altitude, raio-de-acção5, peso máximo à descolagem, etc.), logísticas (número de passageiros e refeições, escolha de menus, nacionalidades prevalentes a bordo, etc.) e temporais (duração do voo).
Este serviço esteve, na sua origem, intimamente relacionado com a duração dos voos. Na Europa, as ligações regulares entre destinos relativamente próximos, tornaram-no prescindível, implicando um acréscimo substancial de peso, não apenas devido às louças e alimentos, mas sobretudo pelo número de tripulantes necessários. Já nos Estados Unidos da América (EUA), a maior distância entre destinos, com várias escalas, impunha-o. Assim, o primeiro membro da tripulação responsável por servir refeições foi, estranhamente (impensável nos dias de hoje) um co-piloto6 (Foss, 2015, p.25) [7].
A assistente de bordo, ainda hoje erradamente associada pelo passageiro à tarefa de servir refeições, surgiu, como indica a denominação, pela função de “hospedar” e “bem receber”: uma visão sexista e pouco técnica, como sabemos hoje. A associação feminina desta “hospedeira”, ou anfitriã que nos recebe, tinha sobretudo um efeito calmante (e porque não sedutor) entre os audazes passageiros, maioritariamente business men (Ibid. p.29) [3]. Após a Grande Guerra (1914 - 1918) o passageiro masculino associara a imagem da enfermeira a alguém que assegurava tratamento clínico nos campos de batalha e lhe devolvia alguma humanidade. Este facto justifica que as primeiras hospedeiras fossem recrutadas à enfermagem (Vantoch, 2013) [8]. Comparativamente, o comissário de bordo decalcou a imagem menos simbólica do camareiro de hotel, ou de um navio transatlântico: o zelador da qualidade do serviço.
Os primeiros menus, frugais, quedavam-se pelos sanduiches, bolachas, fruta e bebidas quentes. Por esta razão as garrafas térmicas e as chávenas de café (descartáveis)7 foram os primeiros objectos de refeição a serem transpostos para o interior dos aviões. Em 1936 a United Airlines e.g. contratou Henry Dreyfuss (1904 - 1972) para conceber um conjunto de objectos em plástico e papier-machê para conter refeições pré-confeccionadas, (Foss, 2015, p.46) [7]. A evolução e profusão de artefactos com diversas funções (pratos, copos, talheres, etc.), como vimos, deu-se de acordo com as características técnicas de cada avião e de cada rota operada.
A qualidade e tipo de serviço, nomeadamente depois da divisão entre Primeira Classe e Económica, tornou a morfologia e os materiais empregues, indissociável da qualidade do serviço oferecido. O luxo evoluiu com o aumento do raio-de-acção das aeronaves e com o peso máximo permitido. O elevado custo praticado nos primeiros tempos da aviação civil, não almejava outro segmento de serviço que não o de Primeira Classe. O avião tornara-se o lugar de relacionamento social por excelência entre políticos, empresários, ou estrelas de Hollywood: a versão aérea de um grémio ou gentlemen´s club 8 . A associação simbólica perduraria durante bastante tempo, conferindo à viagem de avião uma aura de prestígio, e um símbolo de Status (Baudrillard, 1981) [9].
A aerostação (não a aviação)9 foi pioneira no serviço de bordo, tendo o voo inaugural da primeira carreira internacional entre Hamburgo e Copenhaga (1912) servido uma refeição verdadeiramente luxuosa para a época10 (Foss, 2015, p.6) [7]. Mais tarde, já na “glamorosa” era dos grandes hidroaviões transoceânicos da década de quarenta e cinquenta, o ambiente e o luxo das palamentas (porcelanas, cristais, pratas, linhos) permitiu emular um restaurante de cinco estrelas. Veja-se e.g. como a classe The President da Pan American World Airways servia em 1959 refeições confeccionadas pelo chef do restaurante parisiense Maxim´s (fig. 1).
Contrariamente ao que se possa supor, não foi o serviço de Primeira Classe a emergir como factor distintivo, mas o oposto. O gradual aumento do número de lugares disponíveis tornou possível introduzir tarifas económicas e consequentemente menos luxuosas11. A segmentação da viagem aérea, acessível a um número cada vez mais vasto de rendimentos, resultou na partilha do mesmo espaço por diversos estratos sociais (Classe Económica, Primeira Classe, mais tarde a Classe Executiva).
A tendência actual acentua a segregação, quebrando o espaço comum através de companhias exclusivamente dedicadas a um tipo de serviço. Assistimos à progressiva proliferação de jactos privados, aviões inteiramente dedicados à Primeira Classe, e claro, às denominadas companhias low cost ou de baixo custo. Assinale-se curiosamente o paralelo entre as dinâmicas de mercado na aviação e o fosso social entre ricos e pobres: o avião “condomínio fechado” versus o avião “suburbano”. No meio abre-se um fosso no qual se precipita a classe média, ou seja, o passageiro “médio” que frequentava as tradicionais companhias de bandeira.
A palamenta de bordo reflecte naturalmente o seu patamar ou segmento. O serviço de Primeira Classe, exceptuando alguns casos de estudo, nunca abandonou os materiais nobres e as morfologias clássicas, gerando objectos incaracterísticos cujo design é quiçá menos interessante.
As imposições entre rácios de peso, espaço e distância, que em aviação se denomina “peso quilométrico”, impôs à Classe Económica o aparecimento de objectos com desempenhos muito condicionados e por isso projectualmente desafiantes. Não surpreende, portanto, que as principais companhias europeias de bandeira tenham recorrido a designers conceituados para promover a sua identidade corporativa, sobretudo em países cujo design fazia parte da identidade nacional, como a Escandinávia, Alemanha ou Itália. O caracter único destes enunciados é comprovado pelo modo como seduziu gerações de designers.
Entre os anos sessenta e oitenta promoveram-se soluções ímpares, usadas como “certificados de qualidade” em muitos portfólios, tanto como grandes clientes, como pelos originais resultados alcançados. Destacamos, entre outros, as linhas Cumulus (1959) ou Ultima Thule (1968) de Tapio Wirkkala para a Finnair, o faqueiro desenhado por Sigurd Persson para a SAS (1959), os serviços Linea 72 (1970) de Joe Colombo para a Alitalia, ou de Hans “Nick” Roericht e Wolf Karnagel (1967) e (1985) para a Lufthansa.
A área da palamenta de bordo, sobretudo a partir da década de noventa, foi agressivamente absorvida por grandes empresas globais com a DeSter, que hoje detém a maior fatia da produção mundial. Os projectos para a Classe Económica perderam progressivamente a associação a designers de referência para se diluírem em autorias “anónimas” que podem responder de modo eficaz e genérico a mais de 350 companhias aéreas em todo o mundo (Eisenbrand, 2006 [2004], p.228) [10].
A partir dos anos 2000 a concorrência desregulada com as companhias de aviação low cost, como vimos, alocou quase em exclusivo a refeição aos voos de longo curso, disponibilizando-se um serviço pago para destinos menos extensos.
4. “Comidinha cá da terra”
Todas as companhias de bandeira usaram menus como veículos de promoção da gastronomia nacional. Atingiu-se simultaneamente a promoção turística e a identificação simbólica com uma certa (quiçá estereotipada) ideia de identidade nacional. O contexto português não escapou à regra. Por cá, sobretudo os queijos e vinhos nacionais foram assumidos como mais-valia para voar nos Transportes Aéreos Portugueses (TAP). Aliás o vinho oferecido em Económica12 ou as generosas porções de refeição, caracterizaram a imagem da companhia junto do passageiro nacional.
“Ao longo dos anos, a companhia aérea nacional serviu muita qualidade em quantidade, na altura em que era preciso atrair e fidelizar clientes, (…)” (Belo, 2019, p.109) [11]
A pesada herança salazarista da “casa portuguesa”, fado de um país rural e fechado, no qual segundo o regime não faltava “pão e vinho sobre a mesa”, promovia valores como o português pobre mas honrado, herdeiro do aforismo “Les portugais sont toujour gais”13. Esta construção cristalizou um certo imaginário português que perduraria até hoje nas gerações mais velhas. Na TAP esta “casa portuguesa do pão e do vinho” foi em certa medida adoptada por grande parte dos passageiros portugueses que provinham da emigração. O avião e a “comidinha cá da terra” prolongavam-lhe a noção de território nacional até ao destino, e em sentido inverso antecipavam o regresso “à casa portuguesa”.
A conciliação entre o passageiro nacional e internacional, de maior e menor nível económico tornou-se bastante complexa. Assistimos a uma mistura ecléctica de haute cuisine em Primeira, e da gastronomia tradicional em Económica. Mais um sinal discriminatório que no ar cavava um fosso entre estratos sociais. É curioso observar como durante o período revolucionário pós 25 de Abril, naïve e exacerbadamente ideológico, foi extinta a Primeira Classe e os lugares marcados, considerados à data como “coisa burguesa”. Serviram-se, portanto, a todos os passageiros indiferenciadamente, menus de “sabor mais popular” ou menos elitista.
O estudo sobre as origens dos serviços de refeição a bordo na aviação civil em Portugal está refém da escassez de material disponível. Não só o período anterior a 1945 teve poucas e incipientes companhias aéreas, como a existência de objetos preservados parece pouco provável.
A propalada ligação regular com as colónias de África, ideologicamente denominada “Linha Aérea Imperial”, teve início em 1946. O serviço recorria a aeroportos impreparados, o que implicava 11 escalas e um total de 6 dias para atingir Lourenço Marques (actualmente Maputo). As pistas muito curtas impunham pesos máximos, reduzindo a capacidade de combustível e a lotação de 21 para apenas 12 passageiros. Demonstra-se assim que a vertente operacional e económica nunca foi considerada. A Linha foi explorada sobretudo como questão política e de propaganda do Estado Novo (Pinto, 2010) [12].
As refeições principais eram servidas em terra e as ligeiras através do abastecimento de alimentos de acordo com as disponibilidades locais. Dos exemplares originais desses serviços de refeição (ou material de bufete como era designado) apenas restam no SDA/MTAP um prato e uma chávena, ambos grafados TAP (figs. 2 e 2a). Estes, de origem norte-americana, faziam parte de um extenso recheio incluído com na aquisição dos aviões Douglas Dakota14, negociados pelo então director do SAC15 Humberto Delgado (1906 - 1965). O lote original era constituído por 28 conjuntos de talheres, 26 conjuntos de pratos, bandejas, saladeiras, saleiros / pimenteiros, 42 chávenas de café e de chá, 45 toalhas de linho para bandejas e a mesma quantidade de guardanapos. A estes somavam-se 200 copos descartáveis de papel (Dixie cups) (Aviquipo, 1946, p.2) [13]. Nos aviões do modelo Dakota as refeições eram servidas em bandejas apoiadas sobre as pernas, nos Douglas Skymaster os tabuleiros eram rebatíveis (semelhantes aos actuais) e nos Lockheed Superconstellation encaixados nos braços das poltronas.
Sensivelmente deste período, encontrámos na Fundação Medeiros e Almeida um conjunto único de peças da Aero-Portuguesa (1934-1953), uma menos conhecida companhia pioneira, da qual o empresário foi accionista. Preservam-se aí um conjunto composto por bandeja, prato, e dois conjuntos de chávena / pires para chá e café, fabricados em melamina e semelhantes aos exemplares da TAP (figs. 3 e 3a). As afinidades estabelecem-se sobretudo ao nível da cor e da matéria-prima. Talvez a semelhança seja herdeira da vulgarização das tecnologias de compressão emergentes entre as duas Guerras Mundiais. Morfologicamente, a pega das chávenas parece ter sido o foco, ou “O” problema, a resolver - este morfema ainda hoje distingue grande parte dos serviços de bordo. No exemplar da Aero-Portuguesa destacamos o pires de chá com pronunciada depressão para reter líquidos e estabilizar a colher quando pousada. Nenhuma das peças está grafada Aero-Portuguesa, o que pode indiciar o recurso a conjuntos genéricos destinados a diversas companhias de aviação.
Regressando à TAP, o modelo seguinte introduziu a tecnologia de injecção de termoplásticos. A datação revelou-se problemática sendo suportada exclusivamente com recurso a fontes iconográficas. O período durante o qual esteve a uso foi por nós datado no arco compreendido entre 1954 e 1960. É constituído por um tabuleiro, prato, chávena, diversas couvettes e um conjunto separado com chávena e pires de chá, todos na cor branca e com o logotipo de 1954 em vermelho (figs.4 e 4a). Em consequência dos sucessivos reaquecimentos de refeições, a escolha do polímero parece não ter sido a mais adequada. Este handicap é visível em certas peças que apresentam deformações geradas por temperaturas acima do seu ponto de amolecimento. Tudo aponta para uma origem britânica, uma vez que identificámos modelos iguais em fotografias da British European Airways (BEA). Do anterior para este conjunto destacam-se as depressões alveolares das bandejas para estabilização de componentes. Esta solução, embora menos versátil, impôs-se pelo facto dos aviões (na era anterior ao jacto) voarem a altitudes significativamente mais baixas e consequentemente mais expostos à turbulência.
A partir de 1954 a TAP separou os serviços de Primeira Classe e Económica. Naturalmente, por uma questão de prestígio, à Primeira regressaram as peças individuais dispostas livremente sobre o tabuleiro. Os sistemas alveolares associados a um ambiente de cantina ou snack-bar tornavam-se agora incompatíveis com um serviço requintado. O tabuleiro em melamina laminada por compressão (HPL)16, técnica vulgarmente conhecida pela denominação comercial Formica, foi produzido pelo fabricante dinamarquês Langva, e permaneceu em uso por duas décadas. O faqueiro (dos mais modernos utilizados pela TAP em Primeira Classe) foi produzido pela reconhecida fábrica alemã de Solingen Carl Hugo Pott (fig. 5). Fabricado em aço inoxidável de cromoníquel (18:8), era composto por garfo, faca, colher de sopa e colher de sobremesa, e ostentava no cabo o logótipo TAP em baixo-relevo. Recordemos que Pott foi fabricante do conjunto Design 1 desenvolvido em 1950 por Don Wallance (1909 - 1990) para a Lufthansa, do qual aliás as colheres TAP herdaram alguma forma17.
A dicotomia entre uma morfologia hoteleira de luxo e uma palamenta empilhável em material plástico permaneceu atual até aos dias de hoje em companhias de aviação por mundo inteiro. O advento da era do jacto, rápida, eficiente, tecnológica, moderna, funcionou como pretexto para a produção de novos equipamentos e estratégias promocionais na TAP.
Com a entrada ao serviço do Sud Aviation “Caravela” (1962) foi introduzido um novo conjunto de Primeira Classe, com cerâmicas Vista Alegre e faqueiros suíços H. Béard. Iniciou-se nesta data a relação duradoura entre a companhia aérea e a fábrica de Ílhavo, ainda hoje em vigor. Outro facto importante foi, pela primeira vez, a existência de uma sintonia formal entre peças de ambas as Classes. A título excepcional porcelanas e melaminas distinguiram-se apenas na matéria-prima e no modo de produção, criando um factor agregador do discurso visual da marca. Os serviços de Primeira Classe TAP (como em quase todas as companhias aéreas estrangeiras), raramente conseguiram descolar da estética “classicizante” e da lógica formal da restauração de luxo.
Contrastando com as palamentas genéricas das décadas de quarenta e cinquenta, a década de oitenta contou com o contributo de um nome importante para a História do Design português. Num rasgo de arrojo, a TAP decidiu encomendar (por intermédio do fabricante de plásticos Gispol) o projecto e desenvolvimento de um conjunto completo de refeição para a Classe Económica a Carlos Rocha (1943-2016), já designer nacional de referência. Foi assim que em 1988 a TAP introduziu o seu novo conjunto completo de refeição, em termoplástico por injecção, encomendado de raiz a um atelier de design português: a Letra. Como resposta aos diversos tipos de refeição foi desenvolvido e produzido um sistema intermutável, assente numa tipologia modular combinatória (fig. 6). Não apenas a redução de peso e de espaço estiveram na base do problema, também a simbiose entre menus de gosto português e internacional elevou a fasquia de complexidade:
“(…) o problema de base era o vinho. Porque isto [a garrafa] depois tinha de ser posto[a] nas gavetas. (…) os sítios de pôr as chávenas, que eram umas cânulas, (…) onde aquilo era empilhado. (…)” (Rocha, 2010) [14] 18.
Da leitura completa do depoimento dado por Carlos Rocha (Ibid, 2010) [14] se constata que todo o projecto aplicou as boas metodologias do design, desde a realização de modelos e protótipos testáveis, até à relação de proximidade entre cliente e fabricante. A feliz solução demonstrou, à data, a capacidade de resposta do design português em enunciados complexos e motivadores.
Inicialmente usado como propaganda de estado e mais tarde como factor identitário de companhia de bandeira, a TAP ao longo de mais de 75 anos procurou enaltecer uma certa ideia de “portugalidade”. A partir da década de sessenta inicia a aposta nos fabricantes nacionais e culmina na década de oitenta introduzindo design de raiz desenvolvido em Portugal.
A incorporação exclusivamente nacional emergiu do processo de identidade corporativa “TAP Portugal”19 (2005), elaborado por Carlos Coelho. Podemos afirmar que a atmosfera a bordo da TAP (comunicação, produto, moda, gastronomia, revista de bordo, etc.) conseguiu pela primeira vez em 70 anos abranger todo o processo, do design ao fabrico exclusivamente português. Facto assinalável diga-se, uma vez que cruza diversas autorias, indústrias e tecnologias de produção. Paradoxalmente os conjuntos de catering exclusivamente nacionais cingiram-se à Classe Executiva: Vista Alegre (baixela), Atlantis (copos), Dalper (cutelaria). Essa oscilação (obviamente) reflectiu imperativos de ordem económica.
Embora emergindo do quadro pós-Crise Petrolífera de 1973, a disseminação global do modelo económico neo-liberal ficou inequivocamente associada a Reagan20 e Thatcher21. Na aviação esta determinação ideológica ganhou visibilidade e eficácia a partir do Airline Deregulation Act (1978)22. Este estender-se-ia um pouco por toda a indústria como modelo único, tendo como consequência a descaracterização de projectos para catering, sobretudo em classe económica.
Se na década de sessenta e setenta se recorreu à produção de melaminas para classe económica junto da indústria nacional (Tripla)23, a partir da década de noventa, depois do feliz “episódio” Carlos Rocha, e por mera redução de custos, cedeu-se à pressão de multinacionais, como a deSter, que introduziu modelos de objectos para catering genéricos e incaracterísticos.
5. “Esperamos ter-vos brevemente de volta à nossa companhia” (conclusão)
Tal como noutras companhias de bandeira24, os serviços de bordo enalteceram características histórico-culturais. Na TAP o percurso foi evoluindo de acordo com as capacidades de concepção e produção disponíveis. Começou por apostar-se numa estratégia de encomendas a fabricantes internacionais evoluindo para a produção nacional. Conviveram simultaneamente faqueiros Pott, Béard, Christofle com louças da Vista Alegre, Secla e SPAL; plásticos produzidos pela multinacional belga pela deSter com os nacionais fabricados pela Tripla ou pela Gispol.
A ideia de luxo e requinte em Primeira Classe assentou na utilização de baixelas de gosto clássico. Um paradigma que deu ao serviço de económica espaço para soluções mais racionais, funcionais, de aparência sóbria e design regrado (Gentil-Homem, 2014) [6]. O episódio Carlos Rocha pode ter sido fugaz, mas foi significativo. O projecto veio provar o quão errado era a sensibilidade do “encomendador” português. Este preconceito foi claramente desconstruído se olharmos, actualmente, para o interior de um avião da TAP. Quase tudo o que rodeia o passageiro tem um cunho de design ou produção nacionais.
O recurso às multinacionais, com produtos pré-formatos e de escasso poder de adaptação às especificidades de cada latitude, anunciou o advento de uma realidade que se iria revelar amalgamante e massificadora. Os objectos de catering com características locais, específicos de cada cultura, com dietas e hábitos gastronómicos distintos, seguiu o exemplo dos menus. O traço cultural e antropológico deu origem ao objecto genérico supostamente consensual, todavia impessoal: algures entre o frango assado e o esparguete à bolonhesa.