Introdução
Junto com El Rastro, Lavapiés é conhecido como um dos “bairros baixos” da cidade de Madrid, assim definidos em virtude da posição geográfica ocupada por ambos, situados num declive que desemboca no rio Manzanares. Segundo Osorio (2017), os referidos bairros também são assim denominados em virtude do baixo poder aquisitivo da imensa maioria daqueles que ali residiram. A partir do século XV, Lavapiés transformou-se em área industrial e, posteriormente, concentrou os principais matadouros da cidade, que atraíram grande contingente de migrantes procedentes de regiões agrárias da Espanha.
Na atualidade, o bairro possui uma ocupação muito peculiar. De acordo com Osorio (2017), cerca de 32% dos seus moradores são imigrantes, ao passo que, nos outros bairros da capital espanhola, esse percentual chega a 16%. Quanto aos demais, 1/3 é composto por moradores de longa data e o restante pelos chamados residentes de “passagem”, formados basicamente por estudantes e turistas que alugam apartamentos de média e curta temporada.
Não há como desconsiderar a maneira pela qual essa diversidade acaba por produzir espacialidades (Ferrara, 2002, 2008) muito peculiares que, por sua vez, são fruto dos conflitos, intercâmbios e tensionamentos que subsistem sincronicamente na região. Na tentativa de discriminar como cada um desses três grupos de moradores se constitui como um dominante ou um vetor relativo ao modo de formação de espacialidades muito singulares, apresentamos, neste trabalho, o resultado de um experimento de análise relativo a uma configuração que emerge, primordialmente, pela presença de imigrantes: a praça Nelson Mandela, importante ponto de encontro de senegaleses e outros migrantes em Lavapiés.
Cumpre ressaltar que a seleção desse objeto não foi aleatória, mas, sim, decorrência da estratégia metodológica adotada. Durante 10 meses, de outubro de 2018 a agosto de 2019, realizamos inúmeras derivas (Debord, 2003) no bairro, em diferentes dias e horários da semana. Como Careri (2016/2017) indica, o caminhar que caracteriza a deriva situacionista implica, igualmente, “saber onde parar” (p. 33), dado o reconhecimento de uma informação presente na urbe que se destaca dentre outras.
Assim, chamou-nos a atenção o fato de que a Nelson Mandela parecia apresentar uma síntese das relações que se articulam em outras praças do bairro que igualmente são utilizadas como ponto de encontro de imigrantes, não só senegaleses, como também de outros países africanos. Isso porque nela se nota a presença de distintas formas de uso, além de uma ocupação ostensiva durante todos os dias da semana e em diferentes horários, pelas quais se constrói uma visualidade singular em que os conflitos e intercâmbios, decorrentes da presença do outro e da alteridade, se mostram de forma mais premente. Assim, interessa-nos explorar de que maneira, no referido espaço público, ocorre a constituição de espacialidades singulares, muitas vezes, ambivalentes, decorrentes da diversidade de interações e vínculos que ali se articulam.
Ainda segundo Careri (2016/2017), como “boa parte dela [a caminhada] se realiza onde não temos o direito de ir” (p. 105), logo, criar estratégias que nos permitam construir formas de “relação com o território” (p. 33) estudado se torna parte da própria investigação, uma vez que elas não são dadas à priori, mas articulam-se em função das peculiaridades do espaço que se pretende conhecer.
No estudo da praça Nelson Mandela, tal empreendimento caracterizou-se por erros, acertos e revisões de percurso que se sucederam no transcorrer do tempo. Cada uma das estratégias utilizadas com o intuito de estabelecer algum vínculo com os frequentadores do local nos permitiu conhecer melhor o próprio espaço investigado. Em outras palavras: o processo que levou à delimitação de distintas formas de interação com diferentes grupos foi, por si só, um meio de conhecê-los, como buscaremos explicitar no decorrer da análise.
O trabalho de campo foi, então, realizado em consonância com os preceitos da observação participante, conforme foi definida por Ingold (2016, 2017). Um dos traços centrais desse procedimento diz respeito ao “modo de corresponder com as pessoas” (Ingold, 2017, p. 225), o que implica entrar em consonância com a temporalidade do outro e pressupõe uma relação eminentemente dialógica, em que o próprio investigador é transformado ao longo do processo de interação. Ainda segundo (2016, 2017), não há como trabalhar em conformidade com tal perspectiva sem considerar a “espera” em relação ao movimento daquele com o qual se intenta interagir. Isso, impreterivelmente, exige tempo a ser gasto no processo investigativo, cujos resultados não se mostram imediatamente e, tampouco, podem ser mensurados quantitativamente, pois, de acordo com Careri (2016/2017): “a exploração não necessita de metas, mas de tempo a ser perdido” (p. 107).
Assim, ao longo de sete meses, de janeiro a julho de 2019, estivemos presentes na praça Nelson Mandela quase que diariamente, em horários variados, fator fundamental para que pudéssemos ter uma ideia da diversidade de relações que ali se articulam, bem como “testar” distintas formas de interação com seus frequentadores e, ao mesmo tempo, aprender com eles. Outro aspecto que não pode ser obliterado desse processo diz respeito à nossa própria condição de pesquisadora mulher, cisgênero, branca e estrangeira - procedente do Brasil -, pois tal condição interferiu, diretamente, no tipo de interação que criamos com alguns usuários da praça e na “correspondência” que estabelecemos com eles, conforme discutiremos adiante.
Por sua vez, a análise das relações que se articulam na Nelson Mandela foi realizada com base na perspectiva epistemológica de estudo da cultura proposta pelo semioticista Iuri Lotman (1996), da Escola de Tártu-Moscou. De acordo com essa abordagem, nenhum fenômeno cultural pode ser estudado isoladamente, sem que se considerem as fronteiras (Lotman, 1996) que ele estabelece com outros, o que, segundo o ponto de vista semiótico, implica considerar relações de delimitação, tensionamento, resistência, tradução e intraduzibilidade entre diferentes singularidades.
O estudo também tomou por base as distintas visualidades que se constroem pelo tensionamento entre o espaço físico-construído e os usos não previsíveis feitos dele. Ainda que utilizem diferentes terminologias, como urbano e cidade (Ferrara, 2000; Santos, 1994) ou ville e cité (Sennett, 2018/2019), os autores denotam a existência de dois fenômenos distintos: o espaço programado pelo planejamento urbano e a cidade que se constrói com base nos diversos vínculos que se estabelecem entre seus habitantes e que resultam na redefinição dos espaços edificados pelo urbanismo, atribuindo-se a eles novos significados. É justamente o modo pelo qual essa cidade se constrói na praça Nelson Mandela que buscaremos discutir neste artigo.
A Fronteira, o “Eu” e o “Alheio” e a Memória Não Hereditária
Antes de explorarmos mais detalhadamente a caracterização de uma espacialidade construída essencialmente pela relação entre o eu e o alheio, tal como ocorre na praça Nelson Mandela, cabe explicitar de que maneira esse vínculo se articula por meio da fronteira semiótica.
Segundo Lotman (1996), no processo de constituição de diferentes formas de cultura, uma das atividades centrais desenvolvidas pelos indivíduos diz respeito à criação de “modelos classificatórios do espaço”, que são elaborados com base na delimitação entre aquilo que uma coletividade define como próprio e alheio. Tais modelos são acompanhados pela tradução dos mais variados tipos de vinculação - sejam eles sociais, políticos, familiares, religiosos, entre outros - à “linguagem das relações espaciais” (p. 83), a exemplo do que ocorre com o espaço sagrado, que corresponderia ao mundo dos deuses. Trata-se de um mecanismo fundante do processo de individuação semiótica, já que, por meio dele, uma dada cultura delineia os traços distintivos que lhe conferem uma identidade singular.
Essa definição, por sua vez, é uma condição indispensável para o funcionamento da fronteira semiótica. Apenas quando se reconhece a singularidade de uma determinada forma de ordenação, se torna possível apreender o intercâmbio tradutório que ela estabelece com outras, de modo que a individualidade semiótica é imprescindível para a ocorrência de trocas e tensionamentos. É por isso que a fronteira pressupõe um duplo movimento: tanto separa, pois permite perceber a especificidade daquilo que foi colocado em diálogo e sua redefinição por intermédio dos intercâmbios com o entorno, quanto une, ao viabilizar o diálogo entre diferentes individualidades.
Para Lotman (1996), nenhuma cultura é autossuficiente, todas têm, subjacente ao seu funcionamento, um dispositivo inteligente caracterizado, essencialmente, pela capacidade dos seus vários sistemas constitutivos para instaurar intercâmbios tradutórios entre si e, paralelamente, proceder à sua auto-organização interna, processo esse absolutamente necessário após as trocas com o entorno, o que assegura a continuidade de uma determinada individualidade semiótica.
Nota-se, assim, que a fronteira deve ser entendida como uma importante “posição funcional” (Lotman, 1996, p. 26) que não se constitui de forma à priori, visto que ela é continuamente redefinida em virtude das relações que um sistema estabelece com o entorno e do consequente rearranjo interno que surge em decorrência desses intercâmbios. É por isso que aquilo que uma cultura considera como próprio e alheio pode variar significativamente: pela fronteira, qualquer forma de organização cultural subsiste num processo contínuo de individuação que se constrói na relação de alteridade com o diferente.
Por meio dessa linha de raciocínio, percebe-se que a fronteira se coloca como um importante instrumento de análise para apreender as relações geopolíticas que, cada vez mais, redefinem continuamente os espaços da urbe, sobretudo nas megalópoles, o que tem sido acentuado pelos processos migratórios, tal como se observa no bairro Lavapiés, pois toma por base, prioritariamente, a dimensão informacional dos intercâmbios socioculturais, dos quais decorre a construção de distintas espacialidades que, por sua vez, também estão em contínuo devir.
Como Mezzadra e Neilson (2013/2017) afirmam, não é mais possível pensar os imigrantes como “sujeitos marginais” que subsistem à mercê da sociedade ou que devem adaptar-se ao novo local de morada, dado que eles atuam como “protagonistas centrais no drama da ‘fabricação’ do espaço, do tempo e da materialidade do social mesmo” (p. 188), como ocorre na praça Nelson Mandela.
Ainda que não citem Lotman, os referidos autores também apresentam uma importante discussão para se pensar os processos migratórios por meio da fronteira - entendida não no seu aspecto geográfico, mas, sim, pelas relações de trabalho que ela articula - aliados aos aspectos informacional, político, econômico e temporal.
Para Mezzadra e Neilson (2013/2017), a tradução que ocorre na fronteira deve ser entendida como uma “prática social” (p. 309) que não se limita a questões meramente linguísticas, visto que qualquer tipo de interação social se produz em meio a uma infinidade de códigos culturais. E, como tal, a fronteira que viabiliza o processo tradutório se caracteriza “tanto como um dispositivo de união como de separação entre as linguagens, as culturas e, certamente, as subjetividades” (Mezzadra & Neilson, 2013/2017, p. 309). Esses processos elucidariam a constituição de formas de subjetivação construídas pelas relações tradutórias com o diferente, de modo que cada esfera colocada em diálogo mantém uma individualidade singular, porém, movente.
Cumpre ressaltar que os devires que caracterizam o movimento de distintas esferas envolvem ainda a memória cultural não hereditária. Para Lotman (1996), a diversidade constitutiva da cultura requer, antes de tudo, a configuração de distintas memórias, que igualmente subsistem em constante conflito e tensionamento. E, da mesma manei ra que a ação exercida pelo dispositivo inteligente da cultura, a memória pressupõe um duplo funcionamento, dividindo-se em informativa e criativa. A primeira é responsável pela “conservação dos textos” (Lotman, 1996, p. 158) e encontra-se diretamente relacionada aos mecanismos de autorregulação de uma dada esfera cultural, o que assegura a sua continuidade. Por outro lado, a criativa reporta-se à capacidade de geração de novos textos pela memória quando em contato com outras esferas.
Assim, no devir dos sistemas, é possível perceber o movimento de ambas as tendências, pelas quais se podem apreender o que permanece e o que se altera no âmbito de uma determinada individualidade semiótica. É pela correlação de todos esses mecanismos que se dá a formação de duas espacialidades muito singulares na praça Nelson Mandela, tal como discutiremos a seguir.
A Praça Nelson Mandela: Dois Lados, Diferentes Lógicas de Uso
Conhecida como importante ponto de encontro de imigrantes, especialmente senegaleses, a praça Nelson Mandela apresenta-se como um caso muito exemplar de espacialidades que surgiram no bairro, principalmente, a partir do final da década de 1990, em decorrência de fluxos migratórios mais recentes1. Por ter se configurado como uma região industrial, com moradias pequenas e baratas, Lavapiés passou a ser um bairro atrativo para aqueles que então chegavam à capital espanhola2.
Não apenas a praça Nelson Mandela concentra boa parte das marcas relativas à presença senegalesa no bairro, em todo o seu entorno ela se manifesta, dada a presença de restaurantes, cabeleireiros e pequenas lojas de roupas africanas, muitas delas, confeccionadas no próprio ponto de venda.
Logo que começamos a frequentar a praça, notamos a presença quase diária de um carro de polícia ali estacionado, sobretudo no final da tarde, em que os policiais, dentro ou fora do veículo, passavam algumas horas observando o local. Outro aspecto que igualmente nos chamou a atenção diz respeito à resistência dos seus frequentadores a qualquer forma de registro visual. Todas as vezes que tentamos fazer imagens com nossa câmera, havia a dispersão dos frequentadores ou, então, o questionamento de alguns deles sobre o porquê do registro. Isso nos levou a crer que boa parte dos usuários do espaço era composta por imigrantes em situação irregular3.
Posteriormente, tal desconfiança confirmou-se por toda a bibliografia consultada sobre o bairro (Fernández, 2013; Osorio, 2017; Rodríguez, 2015; Sanz, 2010), como também por Norma, representante do coletivo La quimera de Lavapiés, cuja sede se loca liza na praça Nelson Mandela. Ela também nos alertou para o tráfico de drogas na região. Nosso primeiro contato com o coletivo deu-se pela rede social Facebook, por meio da qual Norma nos convidou para participar das audiências semanais, quando, então, junto com outros membros do coletivo e quem mais estivesse presente, poderíamos conversar sobre a praça4. Também passamos a frequentar outras atividades do coletivo, sobretudo alguns ateliês antirracistas, em que a situação dos imigrantes, provenientes, sobretudo, do continente africano, era constantemente discutida.
Paralelamente à intensificação da presença de imigrantes na região, Lavapiés tem sofrido significativas intervenções do poder público com vista a requalificar a região, as quais, dentre outras ações, abarcaram o subsídio para a reforma de habitações, o incentivo à criação de equipamentos culturais, a instalação de 48 câmeras de segurança e a reforma de espaços públicos (Fernández, 2013; Rodríguez, 2015). Esses dois últimos aspectos estão diretamente relacionados porque, como em outras praças situadas no bairro - Tirso de Molina, Lavapiés, Arturo Barea e La Corrala -, na Nelson Mandela se nota uma constante na configuração dos seus desenhos: espaços abertos, cimentados, com muitos vazios, poucas árvores e raras áreas jardinadas, apesar da recorrência de equipamentos infantis.
Por se constituírem como espaços diáfanos, eles se tornam facilmente controláveis, cuja visualidade se encontra diretamente vinculada a estratégias de biopoder utili zadas pelo planejamento urbano que, como Sennett (2018/2019) aponta, visam “simplificar” o espaço físico-construído para que apenas um tipo de pessoa possa utilizá-lo, de um modo também único, de maneira que qualquer uso que não se enquadre na forma preestabelecida seja facilmente detectado, que, no caso em questão, parece ter como alvo, sobretudo, os imigrantes em situação irregular.
Ainda que não seja objeto deste estudo, não há como desconsiderar que tais ações se coadunam com o processo de gentrificação pelo qual a região tem passado desde o final dos anos 1990 (Fernández, 2013). Afinal, trata-se de um bairro central, marcado pela atividade operária, cujas residências foram revitalizadas e que reúne a maior quantidade de instituições culturais públicas e privadas de toda a Espanha. São justamente essas as características centrais que, segundo Smith (1996/2012), sintetizam o perfil das espacialidades que, historicamente, constituíram o foco da gentrificação ocorrida em grandes centros urbanos, de modo que:
os bairros pobres e proletários, situados no centro da cidade, são reformados a partir da entrada do capital privado e de compradores de moradias e inquilinos de classe média - bairros que previamente haviam sofrido uma falta de investimento e o êxodo da própria classe média. (p. 74)
Retomando a praça Nelson Mandela, no que diz respeito ao seu desenho e à sua visualidade, um aspecto chama a atenção: sua vasta quantidade de bancos, alocados especialmente nas suas extremidades, o que não ocorre em nenhuma outra área do bairro. Assim, numa das suas bordas, junto à rua Mesón de Paredes, há uma fileira de 12 bancos (Figura 1), ao passo que, na outra ponta, próxima à rua Amparo, existem outras duas fileiras, compostas por 10 bancos (Figura 2). São assentos que mais se assemelham a caixotes, sem encosto, pouco confortáveis e apenas parte deles, situada junto à rua do Amparo, possui sombra.
É impossível ignorar que a alocação desses equipamentos nas extremidades, ao lado das ruas, igualmente facilita o controle por parte da força policial. Apesar disso, tais bancos não apenas são muito utilizados como também constroem uma dinâmica muito própria para a praça.
Sennett (2018/2019) estabelece uma importante analogia entre diferentes tipos de equipamentos urbanos e a pontuação utilizada na língua, tal como prevê a gramática normativa, de modo que determinadas intervenções exerceriam, no espaço urbano, a mesma função que os sinais gráficos desempenham no texto verbal, os quais, muitas vezes, resultam na produção de sentidos que não se limitam à língua. Como indica o autor, trata-se de formas de “pontuação espacial” (Sennett, 2018/2019, p. 276) que intervêm na construção do espaço físico-construído, mas cujos sentidos podem ir além dele. Mais especificamente, no âmbito deste trabalho, nos reportaremos a uma delas: as aspas5.
Da mesma maneira que as aspas ressaltam uma palavra ou um fragmento presente num texto, as “aspas urbanas” (Sennett, 2018/2019, p. 276), materializadas por certos equipamentos, como bancos e bebedouros, chamam a atenção para o espaço onde se situam. Aliada a essa função inicial, outra se sobrepõe, pois, assim como as aspas também destacam o uso de uma palavra fora do seu contexto ou significado costumeiro pelo qual, muitas vezes, se constrói uma ironia, as aspas urbanas também não se limitam a, meramente, ressaltar a presença de um determinado espaço, mas, sim, acarretam a sua ressignificação, originando uma nova espacialidade e a geração de sentidos, muitas vezes, não previsíveis e contraditórios. Assim,
os gramáticos diriam que as aspas questionam o valor da palavra ou a frase que assinalam, ou seja, que não as consideram corretas. Mas as aspas também valorizam a palavra no seu interior; como diria Leon Festinger; as aspas estimulam a atenção focal ao arbitrário, ao problemático, mas também ao importante. O mesmo ocorre no meio construído. (Sennett, 2018/2019, p. 277)
Sennett (2018/2019) também chega a indicar que muitos desses marcadores podem ser alocados arbitrariamente, porém não é o que parece acontecer com os bancos situados na praça Nelson Mandela, dada a proximidade com a rua e a posição enfileira- da que, conforme pontuamos, tende a facilitar o controle.
Porém, paralelamente, tal disposição também favorece o encontro face a face, interação essa intrinsecamente relacionada com a ideia de comunidade que caracteriza uma praça pública. A nosso ver, essa forma de encontro, que possui lógicas distintas nas duas extremidades da Nelson Mandela, igualmente acentua e elucida os conflitos, as fronteiras, as delimitações entre o eu e o alheio, e a memória dos diferentes grupos que ali coexistem. Trata-se de aspas urbanas que não só chamam a atenção para os paradoxos que ali subsistem como também potencializam a emersão de distintas modalidades de interação e subjetivação, das quais decorre a formação de duas espacialidades no mesmo espaço físico-construído.
Um traço central dos usos dos bancos situados juntos à rua Mesón de Paredes é que eles são ocupados, praticamente, durante todo o dia, notando-se uma presença predominantemente masculina6. Não raro, também se observa a presença de homens vestidos com túnicas islâmicas e, pelo contato que tivemos com muitos deles, parte dos frequentadores desse trecho da praça são, de fato, muçulmanos. Com o tempo, descobrimos que há uma mesquita na rua Cabestreros, cuja esquina com a rua Mesón de Paredes está, justamente, diante da referida fileira de bancos. A porta do edifício permanece fechada a maior parte do tempo e apenas pelo movimento em alguns dias e horários é possível perceber que se trata de uma mesquita.
Nessa extensão da praça, verifica-se a delimitação de uma espacialidade de encontro e convivência que circunscreve um “eu” muito específico, pautado essencialmente pela correlação de aspectos religiosos, étnico-raciais e de gênero. Na nossa condição de mu- lher branca, sozinha e estrangeira, trata-se de um local em que não é fácil se sentir confortável, pois a menor aproximação era observada com desconfiança. Porém, eventualmente, há a presença de pequenos grupos de jovens espanhóis que, em horários esparsos, sentam ali para conversar entre si e pouco interagem com os demais frequentadores.
Ao longo dos meses em que frequentamos diariamente a praça, os usuários desse trecho foram, sem dúvida, os mais resistentes à nossa presença. Com o tempo, percebemos que a melhor forma de interagir com eles era responder assertivamente às “cantadas” que eles nos endereçavam, sobretudo os mais jovens. A partir desse contato, estabeleciam-se longas conversas que, frequentemente, culminavam num convite para uma festa ou um encontro privado, sobretudo quando dizíamos ser de nacionalidade brasileira. Foi por meio desses diálogos, restritos ao espaço da praça, que, efetivamente, confirmamos nossa hipótese de que a religião muçulmana era um fator de aglutinação dos usuários daquele espaço, aliada à questão étnica.
Em especial, um diálogo com um jovem rapaz, procedente da Guiné-Bissau, chamou-nos a atenção. Havia pouco tempo que ele estava em Madrid e falava o idioma espanhol com dificuldade. Num determinado trecho da conversa, ao relatarmos a importância das religiões de matriz africana no Brasil, o jovem demonstrou total desconhecimento sobre o assunto. Mais especificamente, quando falamos sobre os orixás e aludimos a Oxalá, ele imediatamente nos interrompeu e disse “ah, sim, Alá”, e passou a falar, animadamente, sobre a religião muçulmana, da qual ele era adepto. Longe de ser ruído, a tradução errônea feita pelo rapaz de “Oxalá” para “Alá” colocou-se como uma importante fonte de informação para nossa investigação.
Mais especificamente, a questão concernente à relação eu-outro parece acentuar
-se nesse trecho pelo tipo de vínculo que se estabelece entre os seus frequentadores e os atendentes/proprietários dos três minimercados situados na rua Mesón de Paredes, em frente à praça (Figura 3). Regularmente, os usuários daquele espaço entram nesses comércios para comprar produtos de consumo imediato, como água e refrigerante. São pequenos estabelecimentos que possuem um traço em comum: em todos eles, seus proprietários são provenientes de Bangladesh. Durante o dia, são as esposas as responsáveis por atender os clientes desses estabelecimentos, que não possuem funcionários contratados. Outro traço em comum é que todas usam o hijab, vestuário utilizado por mulheres pertencentes à religião muçulmana.
São negócios familiares, como uma delas nos relatou, ao afirmar, com certo orgulho, que seu marido tinha sido o primeiro a abrir o comércio naquele trecho da rua havia alguns anos. Conforme verificamos ao frequentar semanalmente esses minimercados como qualquer cliente, essas mulheres estabelecem um contato apenas “comercial” com os frequentadores daquele trecho da praça. Quanto a isso, uma situação, em especial, chamou-nos a atenção. Em outra conversa com a referida mulher, perguntamos se ela gostava de morar em Madrid e como era a relação com as pessoas do entorno. Enquanto ela respondia que a “vida era difícil ali”, um frequentador da praça entrou para comprar um produto e, quando se aproximou do caixa para pagá-lo, ela imediatamente parou de falar e abaixou a cabeça, como se não pudesse olhá-lo de frente ou como se ele não pudesse ouvir o que conversávamos. Mais sutilmente, em outras circunstâncias, tal incômodo também foi observado nos demais estabelecimentos.
Paralelamente, percebemos que, à medida que frequentávamos esses espaços, se estabeleceu entre nós e essas mulheres uma relação de certa cumplicidade, pois compartilhávamos, além da condição feminina, a situação de estrangeira procedente de país periférico. Uma das formas para tentar uma aproximação com elas era por meio de comentários banais acerca de algum produto ali encontrado - como, por exemplo, água de coco - pelo qual era feita remissão ao Brasil e à saudade do país, que resultava por servir de pretexto para que as comerciantes também falassem das suas histórias e da falta que sentiam dos seus países de origem, algo muito presente no discurso de todas as mulheres com quem conversamos.
Nota-se que a relação eu-outro se articula não apenas entre os frequentadores daquele trecho da praça, mas também entre os comerciantes que ali estão e que igualmente demarcam um espaço próprio. Pode-se dizer que a interação entre um grupo e outro também intervém na delimitação que cada um estabelece para si.
Esse mecanismo semiótico que, como Lotman (1996) indica, implica construir uma individualidade própria na relação com o outro pode, a nosso ver, acarretar ainda a
emersão de outro fenômeno sociocultural na esfera da urbe. Trata-se daquilo que Sennett (2018/2019), em alusão a Emmanuel Levinas, define como “o próximo como estranho” (p. 164). Como o autor aponta, tal relação é tecida no cotidiano das cidades e pressupõe o reconhecimento de um outro, estranho, muitas vezes impossível de ser compreendido, com o qual se trava uma relação mínima de convivência, até mesmo como garantia de sobrevivência de ambos os grupos, como acontece, por exemplo, nos mais variados intercâmbios comerciais. Com isso, seria possível apreender uma “ética civilizadora” (Sennett, 2018/2019, p. 164) que pauta boa parte dos vínculos que edificam a urbe.
A nosso ver, esse é um aspecto marcante das relações que se instituem entre os frequentadores dos bancos localizados junto à rua Mesón de Paredes e os comerciantes do entorno. Cada grupo constrói suas próprias espacialidades, com seus códigos culturais e de conduta que, de alguma maneira, retomam traços característicos dos locais de origem de cada um; paralelamente, o reconhecimento dessa diversidade é acompanhado da necessidade de se estabelecerem, entre eles, relações de convivência, uma vez que, de alguma forma, um precisa do outro. Não se percebe a existência de uma tensão manifesta entre esses grupos, porém tampouco eles mostram interesse em estreitar vínculos ou realizar qualquer intercâmbio.
Se considerarmos que, segundo a perspectiva semiótica de estudo da cultura proposta por Lotman (1996), a delimitação do espaço próprio de uma cultura é um elemen to fundante dela própria, logo se pode pressupor que esse mecanismo, como se observa no trecho relatado, constitui um processo inerente a toda coletividade que se vê diante do desafio de edificar uma espacialidade própria num novo local de morada, sobre a qual intervém, irremediavelmente, a ação da memória informacional.
Como Makarychev e Yatsyk (2017) afirmam, segundo a ótica lotmaniana, qualquer fechamento é sempre momentâneo, pois se configura apenas como um estágio de autoconsciência e reorganização interna de uma dada esfera cultural. Inclusive, quanto a isso, os autores chegam a indicar a distinção, muito apropriada, entre distanciamento e isolamento, já que, no primeiro caso, não ocorre a negação da existência do outro, ape- nas o afastamento provisório dele. Encarada com um viés semiótico, essa é, a nosso ver, uma das condições necessárias para a criação do vínculo próximo-estranho.
O fato de a memória informacional intervir na configuração de um “espaço próprio” que é fruto da interação com o outro também faz com que uma determinada organização social adquira características únicas e códigos próprios, tendo em vista a especificidade das relações eu-outro que ocorre numa dada localidade. Ainda segundo Makarychev e Yatsyk (2017), aquele que transitoriamente exclui permanece, de algum modo, ligado àquele que foi excluído. Trata-se de uma situação sempre contextual que não impossibilita que outras relações possam vir a irromper na fronteira. Dessa perspectiva, naquele contexto, não há como desconsiderar que o distanciamento entre senegaleses e bangladeses resulta, igualmente, por defini-los na sua individualidade semiótica.
Além do mais, as fronteiras que uma determinada individualidade semiótica edifica com diferentes esferas nunca são as mesmas, o que igualmente interfere na singularidade delas. A depender do contexto, o que é próprio pode mudar de posição, assim como o alheio, de modo que é a cultura que resulta por construir aquilo que, em certas circunstâncias, é o estrangeiro (Lotman, 2013), que pode adquirir diferentes gradações e níveis.
Essa é uma discussão que nos parece central para situar as relações que se articulam no referido trecho da praça, pois, para os proprietários dos minimercados situados na rua Mesón de Paredes, as pessoas que frequentam a Nelson Mandela seriam um tipo específico de estrangeiro, ou seja, o próximo-estranho, diferente do que ocorre com latino-americanos e espanhóis, com os quais parece haver outro tipo de relação e intercâmbio. O mesmo acontece com aqueles que estão diariamente na praça, que também mantêm um certo distanciamento dos proprietários dos minimercados, mas não de outros grupos, compostos também por espanhóis e latino-americanos. Como Sennett (2018/2019) igualmente aponta, “as diferenças não são todas iguais. As diferenças de classe não se vivem hoje da mesma maneira que as diferenças culturais de raça, religião ou etnia” (p. 176).
No contexto em questão, pela convivência que tivemos com os dois grupos, aliada à observação em campo, aspectos concernentes à raça e etnia parecem, de fato, adquirir uma relevância maior na tessitura da ideia do próximo-estranho, o que não significa que ambos circunscrevam a mesma delimitação em relação a outros agrupamentos. Outro aspecto que igualmente não pode ser desconsiderando, tendo em vista nossa condição de investigadora, é a relação de proximidade e cumplicidade que se constrói entre mulheres estrangeiras provenientes de regiões periféricas. O gênero parece colocar-se como um fator indispensável no grau de aproximação entre elas.
Tal percepção ganha força quando realizamos um contraponto com os usos que são feitos dos bancos situados na outra extremidade da praça, próximos à rua do Amparo, os quais ficam praticamente desocupados durante todo o dia, com exceção dos domingos, quando o bairro adquire uma dinâmica muito própria em virtude do grande afluxo de pessoas que o visitam para ir à feira do Rastro7. Nos demais dias da semana, a ocupação do espaço começa a partir da tarde, intensificando-se no final do dia.
Assim como no outro lado da praça, a presença de imigrantes oriundos do Senegal também é dominante, porém seus frequentadores são mais jovens. Também há mulheres de diferentes faixas etárias, inclusive idosas e casais inter-raciais com filhos pequenos. Em outras palavras, quando comparado ao tipo de público do lado oposto da praça, nota-se que se trata de um grupo mais heterogêneo e que são quase sempre as mesmas pessoas que, diariamente, ali se detêm.
A presença de espanhóis no trecho próximo à rua do Amparo é significativamente maior do que do outro lado, visto que é comum a presença de jovens e adolescentes que se reúnem em pequenas rodas e ali passam horas, conversando e compartilhando pequenos lanches, sobretudo nos finais de semana (Figura 4).
Provavelmente, em virtude da diversidade de grupos que frequentam esse trecho da praça, e onde, de fato, passamos a maior parte do tempo, percebemos que nossa presença ali mal era notada. Além do mais, em nenhum momento houve abordagens por meio de “cantadas”. Nesse trecho, sempre utilizávamos algum subterfúgio que surgia no momento para estabelecer alguma forma de interação, como, por exemplo, no dia que vimos um rapaz com a camiseta do grupo baiano Olodum. Esse foi um pretexto para “puxar assunto” e o jovem correspondeu dizendo que a havia ganhado de um amigo brasileiro e que, realmente, gostava muito da música brasileira.
Há ainda outro agrupamento que, diariamente, ocupa aqueles bancos: trata-se de seis a sete mulheres, também do Bangladesh e vestidas com o hijab, que, sempre no final da tarde, se juntam em torno do último banco que fica diante do pequeno parque com brinquedos infantis localizado no fundo da praça. Todas possuem filhos pequenos e levá-los ao parque para brincar, após o horário da aula, é também uma forma de encontro e socialização entre elas, que, diariamente, passam horas ali (Figura 5).
Nota-se que esse ajuntamento constitui uma configuração completamente à parte naquele trecho da praça, uma vez que as mulheres que nele se reúnem não estabelecem nenhuma forma de interação com os demais frequentadores do local. Tal comportamento assemelha-se à relação próximo-estranho que, conforme apontamos, parece ser dominante no trecho junto à rua Mesón de Paredes.
Porém, ainda no que concerne ao trecho em estudo, notam-se ali alguns indícios de relações não mais pautadas pelo distanciamento eu-outro ou próximo-distante, mas, sim, por situações que emergem pelos intercâmbios tradutórios que ressignificam vínculos, por mais esparsas que sejam.
Um caso, em especial, chamou-nos a atenção. Não raro, aos domingos, residentes espanhóis sentam-se nos bancos localizados nesse trecho para tocar violão e cantar. Numa dessas ocasiões, um dos rapazes senegaleses que frequenta quase diariamente aquela extensão da praça chegou da rua do Amparo e aproximou-se de outros dois rapazes espanhóis que, ao violão, tocavam e cantarolavam uma canção pop espanhola. Ao se juntar ao grupo, de modo quase imediato, ele começou a entoar uma espécie de hip hop numa língua completamente desconhecida para nós, além do que, em boa parte da sua intervenção, havia apenas a percussão produzida pela própria voz.
Na correlação entre o pop e o hip hop, produziu-se uma sonoridade muito singular que não se limita a uma simples sobreposição. O caráter modal do som emitido pelo jovem - o qual, como Wisnik (1989) aponta, visa converter o ruído do mundo em formas sonoras ordenadas, e “é também o mundo dos timbres: instrumentos que são vozes e vozes que são instrumentos” (p. 40) - configura-se como uma estrutura rítmica que, mesmo correlacionada com o sintagma da canção, não possui um significado semântico específico ou manifesto, gerando assim a emersão de uma configuração textual inusitada, “como resultado da deformação do texto habitual segundo a influência das leis dessa comunicação” (Lotman, 1998, p. 51) que, no caso em questão, emergiu do encontro dos referidos rapazes.
Tal interação, extremamente prosaica e somente passível de ser percebida quando se frequenta cotidianamente aquele espaço, oferece o indicativo de um movimento autopoiético, muitas vezes individual e localizado, que, como Ferrara (2018) indica, constrói o cotidiano da urbe. Mais que isso, desvela a possibilidade de configuração de um pro- cesso de intraduzibilidade entre diferentes esferas culturais.
Lotman (1996) define-o pela correlação estabelecida entre linguagens absolutamente díspares, em que não há um algoritmo prévio que determine um parâmetro para a tradução. Com isso, são estabelecidas equivalências tradutórias casuais e incertas, das quais resulta a emersão de formas expressivas e textos culturais caracterizados por uma síntese muito específica, capazes de gerar a irrupção de sentidos não previsíveis ou a própria indefinição de um texto, tal como ocorreu no caso em questão, que resultou numa sonoridade que não era nem mais o pop, nem mais o hip hop.
Pode-se dizer que tal situação elucida como os processos operacionalizados pela fronteira podem se configurar como práticas sociais que possuem uma função sociocultural muito mais ampla. Aliada à tradução, Mezzadra e Neilson (2013/2017) também se reportam à intraduzibilidade para explicar a especificidade de determinados processos de subjetivação que ocorrem na fronteira, pelos quais seria possível construir o “comum”. Mais particularmente, no âmbito da intraduzibilidade, isso implica a irrupção de uma determinada configuração que não pertence a nenhuma das esferas colocadas em diálogo, mas que, sem elas, tampouco existiria. Nesse sentido, o “comum” não existe como um a priori, mas é fruto de intercâmbios, a princípio, impensáveis e imprevisíveis, que continuamente acontecem na fronteira. Assim:
a relação de tradução que consideramos crucial para a composição do comum envolve uma retroalimentação constante das energias das lutas im plicadas na construção dos comuns. A constituição material do comum não pode ser assimilada à lógica do universal e do particular. Esta é a razão pela qual podemos falar de traduzir o comum, que não é apenas apontar como se produzem comuns, mas também marcar como conectam e dividem simultaneamente as singularidades que os constituem. (Mezzadra & Neilson, 2013/2017, p. 330)
A construção do “comum” pela intraduzibilidade coloca-se igualmente como condição de possibilidade para a edificação de espacialidades únicas na urbe, por mais efêmeras que elas sejam, tal como a que relatamos anteriormente. Elas são fruto de práticas sociais absolutamente banais, as quais são precondições fundamentais para a emersão de uma cidade construída em conjunto com uma ideia do “comum” que se realiza em meio a encontros, resistências e intercâmbios geradores da própria indefinição da urbe, como também das individualidades colocadas em relação, que passam a ser redefinidas em virtude das trocas tradutórias, pois “cada novo passo do desenvolvimento cultural incrementa, e não esgota, o valor informacional da cultura e, por conseguinte, incrementa, e não diminui, sua indefinição interna” (Lotman, 1996, p. 75).
Quanto a isso, Careri (2016/2017) estabelece uma importante correlação entre o pidgin, língua de contato ou comum que surge do encontro entre culturas que possuem idiomas completamente díspares, e os espaços pidgin que vêm à tona na urbe. O pidgin tende a ser criado espontânea e emergencialmente com o intuito de viabilizar a comunicação entre diferentes coletividades e nasce, sobretudo, do erro e da falta de compreensão daquilo que é dito, caracterizando-se por uma estrutura gramatical e normativa extremamente simplificada e rudimentar.
Da mesma forma, os espaços pidgin da urbe, também chamados pelo autor de “espaços públicos interculturais” (Careri, 2016/2017, p. 59), irrompem em meio a relações de intraduzibilidade edificadas entre códigos absolutamente díspares e diretamente ligadas a uma “dimensão imprevisível da realidade” (Careri, 2016/2017, p. 57), cujo devir, no momento da sua irrupção, se mostra incerto. Trata-se de um movimento da cidade dotado de uma lógica completamente avessa aos códigos normativos que caracterizam o planejamento urbano e que, não raro, ele intenta controlar.
Ainda com relação a isso, cabe enfatizar que, durante o período de realização do trabalho de campo, mais especificamente, em março de 2019, teve início o projeto de reforma da praça8. Tal reabilitação começou na metade próxima à rua Mesón de Paredes e, durante as obras ali realizadas, não houve a interdição do espaço onde os bancos estão alocados, mas, sim, da grande área aberta situada entre eles e a grade que demarca o meio da praça. Essa etapa da reforma já foi finalizada e teve como foco a requalificação de parte do piso, o que não gerou mudanças significativas no desenho e na visualidade naquele trecho.
Muito diferente é a reforma que foi iniciada em maio de 2019 na metade próxima à rua do Amparo e que, no período da escrita deste artigo, ainda não tinha sido concluída. A reforma iniciou-se com a retirada dos equipamentos infantis do fundo da praça, seguida de intervenções no piso, que, primeiramente, geraram a interdição de frações da praça e, posteriormente, seu fechamento completo por meio de cercas colocadas na abertura de acesso a esse trecho.
Conforme nos relatou Norma, do coletivo La quimera de Lavapiés, não houve nenhum contato anterior do poder público com os usuários da praça para discutir, coletivamente, as intervenções ali empreendidas, de modo que o único dado que ela obteve foi conseguido por meio de conversas informais com os trabalhadores da obra, que lhe informaram a ampliação da área de lazer destinada às crianças. Paralelamente, as únicas informações que obtivemos sobre o projeto estavam disponíveis no site vinculado à prefeitura, curiosamente intitulado Decide Madrid, e estão colocadas da seguinte maneira:
projeto de reativação da praça, com colocação de hortas e atividades lúdicas, eliminando pontos de conflito para atrair um setor da população como famílias e pessoas idosas e lhes permita o disfrute sem medo deste espaço que também lhes pertence. (Alemrac, 2012)
É difícil não causar estranheza o fato de o projeto prever uma requalificação que visa eliminar “pontos de conflito” e ser voltado a famílias e pessoas idosas que possam desfrutá-lo sem medo. Conforme relatamos, a praça já é frequentada por famílias e pessoas de mais idade, como também por jovens. Porém, ao que parece, não se trata dos grupos que o poder público acredita que devem ou podem ocupar aquele espaço, o que, a nosso ver, contribui para ratificar o processo de gentrificação que tem direcionado o planejamento urbano na região. De certo modo, esse discurso igualmente parece indicar o reconhecimento da possibilidade de irrupção, naquela localidade, de uma cidade cada vez mais difícil de ser controlada e/ou administrada, o que exige a contínua redefinição do seu espaço físico como tentativa de “apagar” os usos e as memórias que o qualificam e o constroem como tal.
Por outro lado, tal como acompanhamos, mesmo em meio a obras, os frequentadores habituais não deixaram de usar esse trecho da Nelson Mandela. Assim que os equipamentos infantis foram retirados, inúmeros grafites surgiram no muro que ficava junto a eles (Figura 6). O contraste gerado pelo colorido daquela intervenção ressaltou ainda mais o caráter austero e a cor acinzentada que distingue o desenho da praça.
Como Sennett (2018/2019) aponta, “a cor está destinada a desafiar as distintas pegadas que geralmente o tempo deixa nos materiais físicos” (p. 99), aspecto esse que se mostra premente, sobretudo, nos bancos localizados nessa parte da praça, pois muitos foram pintados de diferentes cores pelos seus próprios usuários (Figura 7). As tonalidades desgastadas, sujas ou que também já foram pichadas constroem uma visualidade que demonstra que “o meio físico foi usado; a vida marca a forma” (Sennett, 2018/2019, p. 99). Ainda que, como o autor aponta, a cor seja um indicativo do decurso do tempo e o grafite ali realizado seja um traço do presente, o segundo parece justamente dialogar com as marcas que foram construídas com o tempo e que sinalizam diferentes formas de uso da praça, constituindo, a nosso ver, a ação da memória criativa da urbe que irrompe quando em tensionamento com o planejamento urbano.
Além disso, como as obras tendem a se concentrar no período da manhã, é recorrente a derrubada da cerca de proteção no final da tarde por aqueles que já frequentavam a praça e continuam a fazê-lo (Figura 8).
Porém, isso não ocorreu com as mulheres cujos filhos utilizavam o parquinho ali existente: assim que ele foi retirado, elas passaram a se encontrar na praça Tirso de Molina, localizada a poucas quadras dali e que igualmente possui equipamentos infantis. Observamos, ainda, a derrubada das cercas aos domingos pelos responsáveis pelo coletivo La quimera de Lavapiés, que, nesse dia, vendem refeições feitas de forma “colaborativa”, em que cada um paga o quanto quiser ou puder (Figura 9).
A nosso ver, tais práticas - suscitadas por uma intervenção que se coloca autoritariamente sobre o espaço, desconsiderando a memória dos usos que ali se construíram - oferecem um indicativo da potencialidade de irrupção de um “comum” e de uma cidade pidgin que, segundo a lógica do planejamento urbano, devem ser evitados. Inclusive, não deixa de ser sintomático o fato de a reforma que está sendo feita no trecho próximo à rua do Amparo ser muito mais radical do que aquela realizada na outra metade. Dessa forma, fica a dúvida sobre os usos que serão potencializados na praça Nelson Mandela uma vez finalizada a sua requalificação, como também de que maneira a memória ali inscrita será ressignificada.
Considerações Finais
O reconhecimento de duas modalidades distintas de uso da praça Nelson Mandela torna patente a ambivalência que caracteriza os processos que são operacionalizados na fronteira, que abarcam tanto a individualização semiótica como as relações de tradução e intraduzibilidade. Por consequência, constroem-se diferentes espacialidades que, antes de tudo, elucidam as transformações informais que todo processo imigratório gera na urbe e que apontam para diferentes devires, os quais incluem a ressignificação daquilo que já estava lá. Como Careri (2016/2017) indica, “quem chega nos muda” (p. 58), de modo que não há como desconsiderar a maneira pela qual tais espacialidades constitutivas do bairro Lavapiés o redefinem no seu cotidiano mais banal.
Com isso, ocorrem formas de ocupação em que, por mais que se intente prevê-las ou direcioná-las, há sempre um dado de imprevisibilidade. O estrangeiro não se reporta a uma situação estanque e predefinida, uma vez que envolve um contexto específico cujas posições são continuamente redefinidas por diferentes encontros e tensionamentos. Atentar para esse aspecto implica considerar de que maneira os processos de sub jetivação, pelos quais os sujeitos se redefinem continuamente geram, igualmente, construções e reconstruções de espacialidades pela delimitação do eu em relação ao alheio, de modo que, como Sennett (2018/2019) aponta, “o conhecimento dos migrantes é o conhecimento que todos os urbanistas necessitam, uma vez que abandonaram a segu rança do familiar e do local” (p. 262).
Pela subjetivação que acontece na fronteira, levando em conta a especificidade de um sujeito continuamente em trânsito, se constrói uma cidade nômade que, ausente de “pontos de referência estáveis” (Careri, 2002/2013, p. 46), está igualmente em movimento. Não se trata apenas do deslocamento físico no espaço, mas do deslocamento do próprio espaço que se opera pela redefinição das espacialidades, fato que, inevitavelmente, coloca um enorme desafio para se pensarem as grandes cidades na atualidade. Nessa perspectiva, a análise aqui apresentada pode ser vista como um importante metatexto que, por sua vez, nos permite aventar a condição de inúmeras outras megalópoles, onde novos “comuns” irrompem diariamente em virtude dos processos migratórios.