Introdução
Consta que a forma abaulada do chão do quarto de D. Afonso VI, no Palácio da Vila, em Sintra, se deve ao modo louco como o rei deposto caminhava em cativeiro. O chão teria guardado, assim, a marca do seu caminhar no confinamento1.
Apesar da história e dos factos confirmáveis, não saberemos nunca o que se terá passado naquele quarto durante os nove anos de cativeiro do rei, mas poderemos usá-la para ilustrar um ponto de partida e daqui avançar para a ideia de “caminhar em confinamento”. A história de D. Afonso VI recorda-nos da também clausura de Xavier de Maistre que, na sua prisão domiciliária de 42 dias, depois de se ter batido em duelo, advogava o potencial criativo do confinamento (Maistre, 1794/2015):
é assim que o flâneur passeia no seu quarto: “Quando Johannes, por vezes, pedia autorização para sair, geralmente isso era-lhe recusado; em contrapartida, o pai propunha-lhe de vez em quando um passeio pela sua mão sobre o soalho do quarto. À primeira vista, era um fraco substituto, e no entanto… algo de muito diferente se escondia naquele gesto. A sugestão era aceite, e Johannes podia decidir à vontade qual o rumo do passeio. Depois, saíam pela entrada e iam até um palacete próximo, ou mais longe, até à praia, ou passeavam pelas ruas, exactamente como Johannes queria - porque para o pai não havia limites. Enquanto andavam assim pelo soalho, para cá e para lá, o pai ia narrando tudo o que viam: cumprimentavam os transeuntes, os carros passavam por eles com ruído, sobrepondo-se à voz do pai; as frutas caramelizadas da confeitaria eram mais convidativas que nunca…” Um texto do jovem Kierkegaard (...). Esta é a chave para o esquema de Voyage autour de ma chambre (Viagem à Volta do Meu Quarto de Xavier de Maistre). (Benjamin, 1999/2019, p. 549)
Começámos a escrita deste artigo como quem inicia um passeio sem rumo certo. Trata-se de um artigo exploratório em que, falando a partir da experiência somática e empírica de caminhar na cidade durante os dois confinamentos decretados, fomos levantando questões que quisemos partilhar. No contraste entre poder escolher ou não poder escolher sair de um espaço e andar, encontrámos um intervalo no qual nos propusemos, então, deambular. A experiência leva-nos à escrita, e a escrita leva-nos à reflexão. De que falamos quando falamos da relação entre caminhar e confinamento?
A partilha desta reflexão parece impor-se como urgência, antes que a experiência se torne datada. No entanto, a experiência de que falamos é, à partida, datada. A experiência do confinamento feito na cidade de Lisboa, no início do “ainda não percebermos nada sobre o novo coronavírus” tem, em si, a marca de um acidente coletivo2, o confinamento decretado nacionalmente por um governo. Com a particularidade de esse decreto seguir linhas de comportamento globais, uma vez que, sendo a pandemia um fenómeno global, a recomendação da Organização Mundial de Saúde é idêntica para todo o globo. A escala global-local obriga-nos a pensar:
o salto do eu para nós - o salto do eu e do nós locais ou nacionais para um eu e um nós globais - não se fará apenas com convicções, mas com experiências de estudo, arte, viagem, amor e comunidade. (...) Hoje, essa consciência e essa sensibilidade globais dependem também da tecnologia. (Cachopo, 2020, p. 109)
Não estávamos à espera, ninguém está de facto à espera de ficar “detido” - pensámos também nos detidos, nos presos. Ninguém está à espera de caminhar indefinida- mente para sempre - pensámos também nos refugiados, nos deslocados. O que é que nos marca, o que é que aprendemos, o que é que é relevante registar dessa experiência? Voltando à cidade em que nos focamos, pensámos constantemente nas pessoas sem abrigo, nos novos sem-abrigo produzidos pelo confinamento, e no modo como caminham, sem grande rumo, para comer, para se aquecerem, para verem alguém, um cigarro, uns trocos, um lugar para dormir. O dia todo, todos os dias e todas as noites. Foi o lado mais aflitivo do confinamento. Evidentemente, só se confina quem pode. Quem não pode confinar-se, “afina-se”, aflige-se, frequenta quotidianamente a escala da cidade que corresponde à affordance3 dos corpos humanos produtores de microespaços arquitetónicos. A escolha é escassa, entre os “ninhos” de cartão, as tendas, os pontos de apoio, as cantinas populares que tiveram que ser ativadas4 para colmatar lacunas do “cuidado comum”, e alguns lugares aonde ainda se via gente na rua a caminhar. Sentia-se a solidão na rua, via-se a rua vazia. A cidade estava calma, mas de um modo estranhamente inquietante.
Lisboa, março, abril, maio de 2020, uma cidade confinada. O bulício da máquina, da atividade económica, dos encontros anónimos e extemporâneos, e o ritmo dos corpos em movimento abrandou radicalmente a partir de março de 2020. Do ponto de vista do estudo da cidade, este período de contexto pandémico ofereceu-nos um momento raro, uma oportunidade que permitiu um olhar privilegiado sobre a geografia humana da urbe. O confinamento na cidade despertou em nós, confinados, um enorme desejo de caminhar. As restrições ao movimento impostas pelo consenso e pelo medo, pelo estado e pela coreopolícia5 - ali, a cirandar -, criaram a tensão que se revelou também como um potencial de ação, um quase impulso de sair à rua porque “não pode ser” e porque “tem que ser”. Uma rua sem turistas em alegre alvoroço e com umas poucas pessoas de ar abananado. Foi na primavera, será diferente no inverno? Talvez sim, o segundo confinamento chegou em janeiro de 2021 e a situação de caos já não parecia espelhar o medo inicial. As pessoas continuavam a viver e a morrer (em grande número!), o som das ambulâncias estava muito mais presente. Ficou tudo pior, mas o medo inicial parece ter-se atenuado, desta segunda vez. Alguns especialistas convidados a falar em meios de comunicação social referiram-se à “exaustão pandémica”, assunto que não iremos desenvolver.
Como falar da experiência da cidade, em 2020/2021, sem falar do “aprisionamento” dos corpos? Nalguns casos, criou-se um impulso de sinal contrário: se, por um lado, o receio de caminhar na rua, de sair, de partilhar um espaço com outros, talvez tenha acentuado o medo do outro, daquele que nos é desconhecido, por outro lado, em reuniões com família e amigos próximos, víamo-nos a achar que o perigo não estava presente, ou que era menor porque conhecíamos quem ali estava.
Finalmente, a suspensão dos trabalhos, da rotina dos empregos regulares e das aulas de sempre, proporcionou-nos uma cidade crua, pacificada de turistas, com menos informação, de reduzida antropofonia e com ritmos muito mais subtis. A pandemia ofereceu-nos um ambiente que contrasta com aquela cidade que conhecíamos do quotidiano pré-confinamento, acentuando e realçando algumas das características obviadas pela presença humana. E, por exemplo, ir ao supermercado ganhou uma relevância inesperada.
Ao refletirmos sobre caminhada e confinamento observamos, também, o auto-coreopoliciamento6 que este momento extraordinário e as medidas drásticas de contenção e de distanciamento social fizeram surgir. Se antes do confinamento saíamos de casa para ir a algum sítio, fazer alguma coisa, ou ver alguém sem grande reflexão; durante o confinamento saímos de casa para sair de casa, para caminhar, com um pretexto desenhado na nossa autovigilância, com o saco das compras, com o cão, por exemplo. A saída de casa passou a denominar-se “higiénica”. Levando no rosto a máscara como proteção real das vias respiratórias - controlando as passagens dentro/fora -, a máscara funciona também, simbolicamente e sensorialmente, como a perpetuação do confinamento fora de casa. Confinar o rosto, altera completamente a identidade expressiva. Tira alguma visibilidade, inibe um pouco a capacidade de sentir os movimentos e atrasa a cabeça. Jogar com a prisão da máscara pode passar por cantar por debaixo dela. Assobiar não funciona tão bem em máscaras de pano, pois o ar detém-se a milímetros da saída dos lábios esborratando o som.
Na primeira parte do artigo, “Caminhar”, damos conta da experiência de caminhar na prática artística, nomeadamente, com exemplos paradigmáticos que são perspetivados simultaneamente como pensamento coreográfico, no caso de Steve Paxton (2018), e como objetos visuais/escultura, no caso de Bruce Nauman. Em “Confinamento”, regressamos a exemplos de clausura contrapondo-os ao dever cívico de confinamento. Finalmente, “Caminhar em Confinamento” irá permitir refletir sobre as relações de movimento na cidade, confinadas, coreopoliciadas, algo receosas, mas eventualmente com vontade de dançar - de propor relações de corpo-espaço-movimento.
Caminhar
Penso em caminhar. Ao caminhar cada movimento humano começa com um toque sobre a superfície da terra. A superfície é uma acumulação de todos os pedaços inertes que se amontoam em direção ao núcleo. Sobre esta superfície caminhamos. Também andamos a vaguear, a tropeçar, a coxear. Sobre a terra, chão, caminho, pântano, negociando o próximo passo. (…) Eu passava muitas horas por dia em aulas de dança, tentando compreender os movimentos do meu corpo. Mas quando saía do estúdio, esquecia-me de prestar atenção a isso. (…) Tentei apanhar-me a comportar-me inconscientemente, mas, mais uma vez, a perceção foi arruinada ao direcionar a minha consciência para ela. Ocasionalmente, lembrava-me de caminhar, enquanto caminhava, e tentava continuar tal como estava antes de me lembrar de observar. Espiava-me a mim próprio. Auto-espionagem. (Paxton, 2018, pp. 15-19)
A partir da pergunta “o que faz o meu corpo quando não estou consciente dele?”, o coreógrafo e bailarino Steve Paxton (2018) introduz, em Gravity (Gravidade), uma reflexão a propósito de movimento, dentro e fora dos estúdios, que nos ajuda a falar sobre a tensão entre caminhar e confinamento. “Os bailarinos têm que piratear os seus programas de movimento básicos a fim de se adaptarem a novos movimentos” (Paxton, 2018, p. 21). A acreditar no que, aqui, nos diz Paxton - e há matéria para tal, baseada na nossa perceção pessoal e profissional de práticas de dança -, os bailarinos tendem a ser especialistas em auto-coreopoliciamento para poderem reinventar o movimento. Isto é, estão habilitados, por treino de perceção, a dar atenção ao movimento e ao gesto em relação, a pressentir os outros e o entorno, a dar conta de uma infinidade de acontecimentos sensíveis na miríade de relações que percorrem a vida, e a auto-sabotarem-se para poderem sair de padrões reconhecíveis de movimento e de perceção. Ou seja, a fazerem propostas coreopolíticas que não tomem por certo, ou dado adquirido, todos os comportamentos já conhecidos e reconhecidos, mas que sejam também agentes de desterritorialização e de reterritorialização (Coelho, 2018).
Como adaptar a especialização da perceção atenta ao movimento, a uma potência política, pensando coreopoliticamente, em vez de frequentar um lugar que muito facilmente se pode tornar numa obsessão de auto-corepoliciamento? Se estamos especializados noutras ocupações, podemos, por vezes, apenas parar, para nos permitirmos um outro tipo de atenção. Para, talvez, reconhecer a agência daquilo que nos “toca”.
Em “Choreopolice and Choreopolitics: Or, the Task of the Dancer” (Coreopolícia e Coreopolítica: Ou a Tarefa do Bailarino), Lepecki (2013) convida os leitores a procurar em cada dia, modos de nos movermos politicamente (ou em liberdade). Começa o seu artigo apresentando-nos uma frase de Hannah Arendt (1993, como citada em Lepecki 2013): “chegámos a uma situação em que não sabemos - pelo menos ainda não - como nos mover politicamente” (p. 13). Tendo em conta que Arendt associa a ideia de política à ideia de liberdade, Lepecki (2013) sugere que esta frase possa ser traduzida por “chegámos a uma situação em que não sabemos - pelo menos ainda não - como nos mover livremente” (p. 14). É com esta formulação inicial que o autor desenvolve, com exemplos, a possibilidade de contrapor às tentativas de policiamento, de coreopoliciamento, da vigilância e do controlo dos movimentos humanos, a potência de propostas coreopolíticas. No final, o artigo sugere que essa pode ser uma tarefa do bailarino: criar modos de nos movermos politicamente, isto é, livremente.
O coreopoliciamento está vinculado à obediência cega, ou distraída, a sistemas de comportamento que pretendem homogeneizar a norma (mais fácil de gerir). A tarefa da coreopolítica pode ser encontrar as bolsas de liberdade em comportamentos, que vão desde os movimentos nas cidades até ao modo de utilização de ecrãs de videoconferência. Observar o nosso próprio movimento é já dar conta de uma potência. Em cada passo dado, uma possibilidade de reatualizar os modos, tendo em conta a situação singular, situadamente e no momento concreto. Outras hipóteses de relação com a inclinação do terreno aparecem como possibilidades de reproposição de posturas e de movimentos. Dentro de uma determinada liberdade de escolha podemos vislumbrar as danças produzidas para cumprir, por exemplo, uma distância de segurança. Sendo a regra, a distância de cerca de 2 metros, clara para todos, podemos brincar, sem impor uma imagem de evitação ao nosso comportamento e ao dos outros. Lisa Nelson, em 2012, ensinou-nos esse jogo no estúdio. Se nos mantivermos fiéis a uma só regra - por exemplo, manter dois metros de distância de uma pessoa que esteja a caminhar no estúdio - e se formos acrescentando outras - por exemplo, manter dois metros de distância em relação a duas pessoas que caminham simultaneamente no estúdio -, em lugar de desencadear evitação, em lugar de cumprirmos um coreopoliciamento, podemos fazer evidenciar a dança da nossa atenção, da nossa escolha. Uma atenção simultânea a nós e aos outros, em movimento. Uma atenção que cuida do que está em jogo, pode ser uma “atenção atenciosa”. Como produzir liberdade em lugar de vigilância e de con trolo? Não tentando vigiar ou controlar. Isto é, não julgar, jogar. Apenas observar, cuidar e repropor de acordo com as relações já existentes em jogo. Explicitar que se joga para que mais alguém entre no jogo.
As práticas de caminhar influenciam os padrões de perceção e a relação que temos com a cidade. Podemos pensar o ato de caminhar como sendo proposicional (a caminhada do quotidiano, com uma origem, um destino e uma duração otimizada do percurso), discursivo (no sentido do flâneur - caminhando sem direção), ou ainda conceptual (deriva psicogeográfica, ações de caminhada performativa; Wunderlich, 2008). No entanto, estas categorias não capturam o espectro ou timbre do ato, uma vez que vemos a caminhada como parte integrante de pretextos e propósitos distintos (com maior ou menor performatividade): como protestos, procissões, desfiles, paradas, passeios, stalking, ou mesmo, engates. Na sua análise do simbólico inconsciente da caminhada, Michel de Certeau (1990/2000) argumenta que “caminhar é ter falta de lugar, estar au- sente e à procura de um próprio” (p. 183). Sê-lo-á certamente nos casos do peregrino que procura transcendência, que se distingue da caminhada de sobrevivência dos refugiados que atravessam fronteiras e países para escapar a situações políticas. Sê-lo-á também na caminhada de recuperação da intimidade dos imigrantes que habitam em quartos sobrelotados, e é na rua que vão encontrar o seu espaço pessoal. A caminhada pode ser transgressiva, ultrapassando fronteiras, na intenção de aceder a territórios pri vados, proibidos. Pode ser ainda uma ferramenta bastante útil contra o aborrecimento. Mas que dizer também das diferenças de qualia que existem no ato, o modo de atenção envolvido, a coincidência entre nós e a cidade? Se caminhamos pensativos e absortos, se vamos atentos ao entorno, se dedicamos atenção ao corpo. Um estudo de 2019, sugere-nos que o caminhante consegue mover-se na cidade sem prestar atenção consciente aos sinais urbanos, embora integre esses signos na sua locomoção (Harms et al., 2019). No entanto, apesar de conseguir deslocar-se, a perceção espacial do caminhan te distraído altera-se. Ao telemóvel, ziguezagueia. Produz um espaço virtual individual. Para a produção da sensação de distância, contribuem o conhecimento da velocidade da caminhada e do número de passos dados, a aparência do ambiente e os detalhes, o esforço e estados emocionais envolvidos (Popp et al., 2004). Os estudos de Bhalla e Proffit (1999) indicam-nos que a sensação de inclinação do terreno possa ser também ela subjetiva, variando consoante a carga e roupa transportadas pelo caminhante, e que a perceção da distância é maior em colina do que em terreno plano.
Caminhar é também comunicar com pessoas, corpos moventes, animais, automóveis, relacionando-nos com outros em pleno “devir cidade”. Para além das trajetórias, a forma de andar transmite um estilo. Brandon La Belle mostrou-nos que bastava vermos a caminhada de John Travolta, ao som de Bee Gees no filme Saturday Night Fever para percebermos que era redundante o desenvolvimento da personagem no resto do filme. Todos temos uma forma distinta de caminhar (La Belle, 2010). Werner Wolff (1943) argumentou que a maioria de nós faz uma avaliação inconsciente da personalidade do outro baseada na forma de ele andar. Um entendimento há muito compreendido pelos animadores de desenhos animados desde Walt Disney a Hayao Miyazaki. Também a simulação de humanos em realidade virtual tenta incorporar a emoção e a personalidade na forma de andar das personagens (Antunes et al., 2017). A comunicação da nossa condição parece ainda acontecer noutros graus. Quando caminhamos partilhamos e somos capazes de identificar sinais de doença nos outros, sugerem-nos Sundelin et al. (2015). Se caminhar é também comunicar, que mais estamos a ativar enquanto nos movemos, durante um confinamento, em casa, no quarto, ou saindo à rua, no supermercado, ou mesmo andando fora da cidade?
Antecedentes da Caminhada Performativa
Se os discípulos de Aristóteles eram conhecidos como os que passeiam, os peripatéticos, foi sobretudo nos séculos XIX e XX que o ato de caminhar na cidade começou a ser considerado um ato cultural per se. A figura do flanêur está associada à observação e entendimento da modernidade urbana. Em O Pintor da Vida Moderna, Baudelaire (1863/2006) descreve o artista flanêur como um espectador apaixonado, um amante da multidão e das transformações urbanas. A cidade e o espetáculo urbano são um texto que o flanêur vai lendo numa perspetiva ocular absorvente e ambulante. Este habita um espaço que lhe é simultaneamente familiar e fantasmagórico, circula observando, com um olhar estético e distante, os detalhes da vida citadina e os espetáculos proporcionados pela incitação ao consumo. Simultaneamente dentro e fora da multidão, como nos diz Benjamim (1999/2019), “de um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, o autêntico suspeito; do outro, aquele que ninguém consegue encontrar, o Escondido” (p. 548).
Nos anos 1920, a caminhada foi integrada como processo estético pelas escolas dadaísta e surrealista (Careri, 2002/2013, pp. 71-80). No dadaísmo surge como prática de uma estética vanguardista antiarte. A deambulação surrealista procura afastar-se da representação da experiência urbana, introduzindo elementos de psicologia na experiência da flanerie em lugares mundanos e banais. Aos surrealistas interessava-lhes o acaso e o inconsciente (Breton, 1924). André Breton e Louis Aragon procuravam ativamente a experiência inesperada e do não-cartografado. Em Nadja, romance de 1928, Breton (1928/1972) conta-nos uma deambulação por Paris em busca de si mesmo, através dos olhos de uma mulher misteriosa. Já Brassaï fotografava Paris à noite como estratégia para chegar a um estado de desorientadora perda de controlo para “entrar em contacto com a parte inconsciente do território” (Careri, 2002/2013, p. 80).
A passividade e voyeurismo do flanêur e o caráter sonhador das deambulações surrealistas foram criticados abertamente pelos situacionistas. Estes apontavam para a for- ma como a geografia e o ambiente urbano nos afetam. A cidade condiciona a experiência do caminhante através de “contornos psicogeográficos com correntes constantes, pontos fixos e vórtices que desencorajam fortemente a entrada ou saída de certas zonas” (Debord, 1958, p. 19). A vivência pessoal do urbano cria zonas distintas das zonas administrativas. Os situacionistas, através do ato radical da Deriva, propunham uma atenção aos aspetos emocionais da cidade sugerindo que a caminhada fosse implicada numa in- tenção política através da escolha e não só sustentada na arbitrariedade (Debord, 1958).
Com abordagens de cariz performativo, também mais sensorial e poético, a caminhada artística tornou-se mais experimental nas décadas de 1960 e 1970. Entre a landart e o movimento “Fluxus”, artistas como Dennis Oppenheim, Vito Acconci, Richard Long e Hamish Fulton, extraíram novas dimensões das suas caminhadas performativas, questionando o corpo, o espaço, o território e as fronteiras formais do trabalho artístico. Nestas décadas, assistiu-se a um movimento de mudança da atenção na caminhada que partiu de um olhar sobre a cidade, passou pela leitura dos ritmos e das emoções cau- sadas pelo encontro com a urbe, para colocar o seu foco no corpo do caminhante e no próprio ato de caminhar. Por exemplo, em A Line Made by Walking (Uma Linha Feita Caminhando, 1967), Richard Long caminhou para trás e para diante, repetidamente, num campo coberto de malmequeres, inscrevendo uma linha reta, efémera, criada através do esmagamento da vegetação, uma intervenção espácio-temporal registada fotografica mente (Tate, s.d.). Em Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square (Andar de um Modo Exagerado no Perímetro de um Quadrado; 1967-1968) - filme em 16 mm - Bruce Nauman (1967-68) caminha obstinadamente sobre um quadrado feito com fita crepe no chão do seu estúdio. Este presta-se a ser, aqui, um exemplo, quase literal, do que pode ser caminhar em confinamento. Contemporâneos de Bruce Nauman, neste período de filmes-coreografias experimentais, são os protagonistas do movimento “Judson Dance Theatre” e, posteriormente, do grupo experimental Grand Union Group, entre imensos artistas e grupos que emergiram nesta década. Citámos, em cima, Steve Paxton, coreógrafo conhecido, sobretudo, pela “invenção” do contacto improvisação. Mas muitos coreógrafos se dedicaram a pensar movimentos do quotidiano, como caminhar, enquanto matéria de pensamento coreográfico, de estética e de espetáculo. Para além de Paxton e de uma série de outros elementos do Grand Union Group, as propostas coreográficas de Yvonne Rainer, Simone Forti, ou Trisha Brown trazem para o universo da cena artística um pensamento integrado do movimento humano, nas mais variadas situações. Por exemplo a performance Walking on the Wall, “Caminhando na Parede” (1971) de Trisha Brown, onde os performers questionam a gravidade e a verticalidade caminhando nas fachadas de um prédio nova-iorquino e nas paredes de uma galeria de arte, é uma demonstração dessa ética-estética investigativa que mais visibi lidade ganhou no mundo das artes. Não por acaso, a qualidade pedestre era uma das características definidoras da dança destes protagonistas.
Trazemos Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square (Nauman, 1967-68), para sugerir que esta imagem quase caricatural de uma caminhada em confinamento, pode ser encarada como um acumulador de potência. Como seria se a potência de pensar caminhando, mesmo que sem grande deslocação, se expandisse no espaço da cidade? Ele mede, calca e esgota o ato de caminhar, usando uma maneira exagerada - que contrapõe uma extremidade lateral da cintura pélvica ao joelho da perna oposta, que é obrigado a dobrar para progredir e colocar esse pé exatamente à frente do outro pé - andando, passo sobre passo, em cima do quadrado que marcou com fita crepe no centro do estúdio. “As experiências coreográficas de Nauman revelam a linguagem a agir no corpo e através do corpo; elas mostram o modo como a linguagem mobiliza” (Lepecki, 2006, p. 24), já que cumpre rigorosamente aquilo que enuncia no seu título. O título ganha uma “autoridade autoral” que se evidencia como performativo coreográfico:
Um amigo, que era filósofo, e que ele imaginava passaria a maior parte do seu tempo numa secretária escrevendo, na verdade, fazia as suas reflexões em longas caminhadas, durante o dia. Por isso, Nauman deu-se conta de que ele próprio passava a maior parte do tempo caminhando às voltas no estúdio a beber café. Então, decidiu filmar isso - apenas o caminhar. (Bruggen, 2002, como citado em Lepecki, 2006, p. 29)
Ao escolher para as suas experiências um espaço confinado para a coreografia, que ele pensou como o equivalente ao espaço de filosofar. Nauman reconfigura o seu estúdio como espaço craniano. (...)
Portanto, para Nauman, a mente é a sala, assim como a sala é a mente: ambas intimamente ligadas à linguagem através de um acto de fala mobilizador, que comanda. Este é o espaço-pensamento solipsista que Nauman constrói, quando começa, não só a ‘caminhar no estúdio’, mas também a executar modos de andar extremamente precisos. (...) O coreográfico acontece num espaço explicitamente definido como solipsista, coreográfico e filosófico: o espaço do pensamento em movimento. (...)
Se a câmara é um acumulador de subjectividade, que tipo de subjectividade acumula? (Lepecki, 2006, p. 30)
Um passo em frente para regressar ao mesmo local. Uma repetição que leva inevitavelmente à diferença por cansaço, erro humano, ou exaustão. Neste loop estão contidas também as ideias de “pensamento em movimento” e de “acumulador de subjetividade”. Será que a partitura de movimento escolhida por Nauman (1967-68) é também um acumulador de potência coreográfica, ou de movimento de pensamento, propenso a ser posteriormente expandido “em liberdade”, na cidade?
Confinamento
Uma criança no escuro, transida de medo, tenta acalmar-se cantando. Anda, pára ao ritmo da cantiga. Perdida, abriga-se como pode ou orienta-se como consegue com a cançãozinha. Este é o esboço de um centro estável e calmo, estabilizante e calmante, no âmago do caos. É provável que a criança salte ao mesmo tempo que canta, acelera ou retarda o andamento; mas já é a canção que é ela própria um salto: salta do caos para um início de ordem no caos, também arrisca deslocar-se a cada instante. (...) Agora estamos, pelo contrário, em casa. Mas a nossa casa não preexiste: foi necessário traçar um círculo à volta do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. (...) Uma criança cantarola para recolher em si forças do trabalho escolar a apresentar. Uma dona de casa cantarola, ou liga a rádio, ao mesmo tempo que cuida das forças anti-caos da sua tarefa. Os aparelhos de rádio ou de televisão são como uma parede sonora para cada lar, e marcam territórios (...). Para obras sublimes como a fundação de uma cidade (...) traça-se um círculo, mas, sobretudo, marcha-se à volta do cír culo como numa roda infantil e combinam-se as consoantes e as vogais ritmadas que correspondem às forças interiores da criação como às partes diferenciadas de um organismo. (...) Por fim, agora entreabre-se o círculo (...). Saltamos, arrisca-se uma improvisação. Mas improvisar é alcançar o Mundo, ou confundir-se com ele. Sai-se de casa ao longo de uma cançãozinha. Sobre linhas motrizes, gestuais, sonoras que marcam o percurso habitual de uma criança, plasmam-se ou põem-se a brotar “linhas de errância”, com curvas, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes. (Deleuze & Guattari, 1972/2004, pp. 395-396)
No confinamento há supressão dos espaços físicos de copresença, de empatia e de sedução. Podemos seduzir apenas com o som e a imagem, mas a estética começa no olfacto-tacto, basta observar como um recém-nascido “escolhe” viver: procura a ligação tecno-estética da sua boca ao peito da mãe. Gibson (1979/1986) poderia dizer que há uma affordance antes da escolha. Antes mesmo de qualquer faculdade de julgar, aparece a preferência pelo cheiro-sabor a leite daquela mama. Não é uma escolha refletida. O gosto escolhe-nos. Este tipo de affordance “sedutora” dificilmente se produz online, mas pode apanhar-nos na adolescência de uma dança em discoteca, num salão de jogos, num beijo embriagado entre um jogo de flippers a dois e uma mesa de snooker, em aulas de dança, ou em concertos sobrelotados de bandas em êxtase. Online produz-se outra coisa, talvez mais da ordem do voyeurismo. A visão domina o presente.
A pandemia foi pródiga na adaptação de técnicas de corpo a que chamámos, por graça, “técnicas de redoma”. As que trabalham o corpo sem sair do lugar, sem sair da “redoma”. São elas grande parte das técnicas de meditação, das várias versões de pilates e de ioga, e ainda todas as adaptações de aulas online das mais diversas técnicas de corpo e de dança. Podemos falar da técnica Klein, que sendo desenhada para compreender o corpo em movimento, por exemplo, a caminhar, a sua precisão é tão grande que comporta perfeitamente, 2 horas quase sem sair do lugar, apenas mudando o peso de um pé para o outro, ou focando a atenção e a respiração numa parte do nosso corpo. Susan Klein, especialista no modo de caminhar do corpo humano e proponente desta técnica com o seu nome, foi uma das nossas companhias em confinamento, diretamente da sua casa-estúdio, em Nova Iorque, para a nossa marquise adaptada em Lisboa. As “técnicas de redoma” foram as que melhor se adequaram às práticas somáticas em confinamento, em solidão e em frente a um ecrã.
Segundo Franco Berardi (2020), nas suas Crónicas da Psicodeflacção,
no últimos trinta anos, a atividade humana alterou profundamente a sua natureza relacional, proxémica, cognitiva: um número crescente de interações deslocou-se da dimensão física, conjuntiva - onde as trocas linguísticas são imprecisas e ambíguas (...), onde toda a ação produtiva envolve energias físicas e os corpos se roçam e se tocam num fluxo de conjunções - para a dimensão conectiva, onde as operações linguísticas são mediadas por máquinas informáticas e logo, respondem a formatos digitais, onde a atividade produtiva se encontra parcialmente mediada por automatismos e a interação entre as pessoas é cada vez mais densa sem que os corpos nunca se encontrem. A existência quotidiana das populações viu-se progressivamente concatenada por dispositivos eletrónicos, que cruzam quantidades massivas de dados. A persuasão cedeu o lugar à impregnação, a psicoesfera foi inervada pelos fluxos da infoesfera. A conexão pressupõe uma exatidão, que desconhece a ambiguidade dos corpos físicos e não contempla a possibilidade da imprecisão.
Eis senão quando... um agente biológico se introduz no continuum social, fazendo-o implodir e forçando-o à inatividade. (...) fiquem em casa, não visitem os amigos, mantenham a distância de dois metros, não toquem em ninguém na rua... (pp. 38-39)
É assim que identificamos nos cadernos diários de Berardi (2020) uma série de experiências comuns com a nossa, como o testemunhar de uma enorme expansão do tempo passado online. Um duplicar das tarefas de adaptação do trabalho e da sociabilização online. “E a partir daqui, o que é que acontece? E se a sobrecarga conectiva acabar por quebrar o feitiço?” - continuamos com Berardi (2020), e podemos, como ele, ima ginar ou desejar uma “explosão de um movimento espontâneo de carícias, que induza parte substancial da população jovem a desligar os seus ecrãs conectados, como uma reminiscência desse período infeliz de solidão” (p. 39).
Deleuze e Guattari (1972/2004) começam um capítulo de Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2 com o ritornello de uma criança, eles mostram-nos um caminho para a construção da nossa cidade, da “nossa casa”. Não de uma cidade qualquer, mas daquela que reconhecemos e à qual damos sentidos. Ao nos confinarmos, ou ao redu zirmos o nosso espaço de territorialização, podemos imaginar que no espaço confinado de reconhecimento, o nosso território é desdobrado em sentidos dentro da casa, reconhecendo e produzindo mais espaços, mais cantos e avenidas do quarto ao banho, da sala à cozinha, como fazem algumas crianças. É uma prática desse tipo que parece indiciar o passeio de Viagem à Volta do Meu Quarto de Maistre, já mencionado (Benjamin, 1999/2019, p. 549). Maistre propõe-nos uma viagem em forma de exercício mental, pa- recendo sugerir que uma expedição à volta do quarto ou uma exploração a continentes longínquos se equivalem no prazer da aventura. O jovem Kierkgaard apela ao poder da imaginação sugerindo uma “caminhada virtual”. Iniciámos este artigo com a clausura de D. Afonso VI e pensámos um pouco na sua “loucura”, no entanto, as caraterísticas voluntárias, ou involuntárias de um confinamento fazem toda a diferença em questões como a condição de liberdade, ou no modo como podemos mover-nos livremente, isto é, politicamente como sugere Lepecki (2013, p.14) citando Arendt.
Entretanto, não só, nas viagens confinadas ao quarto, o universo de estímulos ambiente poderá ser menor, como as ”viagens” de hoje podem ser feitas online. Por exemplo, em visitas virtuais a museus fechados. Talvez os estímulos sejam minimizados em virtude da familiaridade com o ambiente caseiro, ou talvez os sentidos até possam ser estimulados com exercícios ligados às mais variadas práticas de atenção. Mas com a remediação digital, a “torção dos sentidos” evidenciou-se (Cachopo, 2020). Confinámos, dentro de portas, a potencial caminhada de corpo inteiro, ao ar livre, na cidade. Eventualmente, talvez nos tenhamos aproximado voluntariamente da potência de produção de subjetividade de Bruce Nauman deambulando no estúdio, mas agora para viajar virtualmente, talvez pelo mundo afora, e sentados em frente a um ecrã.
Evidentemente, uma coisa não substitui a outra, nem é prioritária ou melhor. É apenas outra coisa na coleção, no reportório e na caixa de ferramentas das relações. Se considerarmos o ato de caminhar dentro de um estúdio de dança como simulacro de um passeio, sem um sentido de trajeto, uma vez que se cingem ao estúdio, e que não vão de um lugar para o outro, mas sim de um ponto ao outro num curto espaço. Será que, ao nos deslocarmos caminhando no estúdio, como prática regular, também afinamos a potência preceptiva para quando a deambulação realmente sai do estúdio? Será que o ensaio da poética do movimento abre espaço para a concretização de novos modos de relação com a cidade?
A hipótese que pomos é que alguns exercícios de caminhadas sensoriais nos preparam para a permanente territorialização que produzimos naturalmente enquanto crianças para aprender a andar, mas que fica toldada pelo excesso de informação, de expetativas, e de projeções várias, quando encarreiramos numa “profissionalização” das tarefas de vida. De que modo poderemos renovar o reportório sensível na cidade quando o confinamento terminar? “O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as imagens sedimentadas pela experiência e que delimitam e circunscrevem o imaginável. A imaginação é a energia renovável da psicoesfera: não a utopia, mas uma recombinação dos possíveis” (Berardi, 2020, p. 33).
As imagens de vários tipos são um modo comum para ativar experiências sinestésicas em aulas de dança (e de práticas somáticas). Caminhar requer o uso ativo da perceção em mobilização, ao mesmo tempo que o chão constrói os corpos e as pessoas. As paisagens regulam-nos o paladar, abrem-se fissuras palpáveis, desvios na calçada, o frio reduz o espaço na cintura escapular, o calor dilata as células, expande o corpo. A linha do horizonte vista ao longe será como projetar, imaginar.
Caminhar em Confinamento
Tenho pensado na consciência como fluído - capaz de preencher qualquer forma que encontre, se lhe for dada paciência. Quanto mais sobre isso descobrirmos, mais poderemos preencher essa forma completamente. (...) Aprender ou criar ações mais lentas do que a relação do nosso pensamento/ação normais, dá à mente tempo para sair das suas relações habituais e práticas com os acontecimentos, e experienciar o que foram, antes disso, instantes de transição. (Paxton, 2018, p. 28)
Praça, calçada, boqueirão, regueirão, travessa, terreiro, beco, escadinhas, rua, calçadão, avenida. Num espaço marcado pelo urbanismo e pela arquitetura, pensamos em modos de criar lugares através da caminhada. Poderemos auto-coreografarmo-nos com a cidade? Os caminhantes percorrem meandros, ruas à deriva, seguindo pulsões e afinando o seu lugar. A rua é ocupada por mobiliário urbano, corpos inertes e outros vivos, em movimento, trajetórias, fluíres, desvios, velocidades, circulação. O espaço da cidade não traz livro de instruções. É o nosso auto-corepoliciamento automatizado e naturalizado que induz, em cada um de nós, quais as regras que vamos integrar para podermos passar despercebidos num quotidiano de uma certa normalidade. Essas regras são de uma enorme subjetividade, variam com culturas de todos os tipos - por exemplo, com culturas familiares, ou individuais, culturas de treino do corpo, também -, variam com a fisionomia, com a condição física, com a psicologia, com o estado de atenção de cada indivíduo. Uma intenção, um passo, um desequilíbrio, outro passo, os automatismos permitem-nos relaxar a vigilância, mas ela regressa quando há uma alteração, como coxear com muletas, por exemplo. Olhamos para o ato de caminhar como um gesto de significado aberto. A caminhada enquanto processo de relação entre o próprio e o mundo é uma sucessão de situações, de experiências rítmicas moduladas e afinadas com variação de intensidades, ritmos e pausas.
Caminhar implica relações de diálogo com o poder e com a comunidade. A cidade é composta por estruturas que condicionam a agência de quem a vive, marcos arquitetónicos preponderantes, ordens impostas de formas e de modelos idealizados por políticos, por arquitetos, urbanistas, engenheiros, designers, ou simplesmente por “habilidosos”, que são depois aceites, ou subvertidas pelos usos que pessoas e instituições lhes dão. Uma cidade sem movimento humano será ainda uma cidade? Michel de Certeau (1990/2000) fala-nos do confronto entre espaço e lugar. A distinção entre espaço e lugar ajuda-nos a perceber: o espaço entendido enquanto estrutura construída; e o lugar enquanto espaço que é habitado e reconfigurado pelos seus usos. Caminhar é então produzir cidade, encontros, relações, segundo Sofia Neuparth. “Caminhar é sempre ‘com-caminhar’, ‘entre-corpos’”, diz-nos ela. (Jara et al. 2020, 00:02:43). Caminhar na cidade constitui uma enunciação do espaço, uma negociação de presença num lugar de vivências (Certeau, 1990/2000).
A cidade também nos constrói. A dureza da calçada enforma o nosso corpo num jogo de retroalimentação constante. Em cada passo, uma inclinação. Um percurso são milhares de trajetórias calculadas, choques evitados por uma comunicação silenciosa de intenções, uma coreografia formulada em tempo real, dança de corpos comunicantes e improvisadores na rua. As decisões rápidas, quase instantâneas, a corrida em relação com o trânsito, numa miríade de feedbacks de movimento. Desvios a rasar obstáculos - evito, hesito, aproximo, cumprimento, falo, posiciono-me. A matriz embrionária já comporta toda esta potência de modulação de corpos-sem-órgãos recíprocos, afetivos e afetáveis. Parar pode ser mortal, como atesta a degradação do estado de saúde gerada por alguns confinamentos involuntários mais longos, como o de Julian Assange.
Quando fechados em casa afastámo-nos da cidade, ansiámos por reclamar o passeio, por reterritorializar o espaço. Quando, finalmente, nos permitimos (re)encontrar a rua, alterámos as trajetórias, as linhas que unem dois pontos transformaram-se em cur vas parabólicas para nos distanciarmos dos outros em trânsito. Afastámo-nos dos aglomerados de gente. Procurámos ruas laterais. O corpo sussurrou desconfiança, andou de lado, o olhar ecoou receio com a falta de uso de máscara no outro. Sustendo a respiração até, viu-se uma interação espelhada em alguém à nossa frente. Também somos ameaça, um outro possível agente contagiante. O passeio, local de disputa de sombras no verão e de sol no inverno, passou a pedir muito mais espaço para a distância. Ao nos repelirmos mutuamente somos como magnetos igualmente polarizados.
Caminhar em Lisboa durante o confinamento permitiu-nos imaginar os ritmos urbanos anteriores ao boom turístico da cidade cosmopolita do século XXI. Fez-nos lembrar como era calmo caminhar em certas zonas da cidade ao domingo, as mesmas que, nos últimos anos, se tornaram sinónimo de agitação, de movimento e de ruído. Caminhando por bairros quase fantasma, despidos tanto dos turistas, como dos seus antigos habitantes, por causa da gentrificação, pudemos escutar de corpo inteiro, como muda a cidade sem o excesso de som, e como este altera a experiência estética do quotidiano. Foi possível pensar em movimento, a sensibilidade corpórea e ambulatória da cidade “sentiente”, mas confinada.
Uma das partes importantes de pensar, por exemplo, durante o “confinamento” da escrita de um doutoramento, será caminhar. Reativar os circuitos sensoriais que nos permitem estar em relação, encontrar as ligações relevantes para poder partilhar um pensamento “oxigenado” pela deambulação e reinventar uma linguagem que faça sentido para “mais do que um”. A experiência da pandemia convida-nos a repensar a importância do pensamento crítico “em movimento”, como complemento do pensamento crítico sobre “a paragem” feito, por exemplo, por Lepecki (2006) em Exaurir a Dança, Performance e a Política do Movimento.
A pandemia parou-nos só aparentemente, pois estamos online e continuam a circular os trabalhadores essenciais. Como produzir novo discurso, como produzir liberdade criando novos espaços com e para fora do confinamento? Como ser cidadão dentro e fora da cidade, e online? Como fazer agir a cidade, agora? Ou, por outro lado, como se ocupa o espaço virtual, por exemplo? Berardi (2020) sustenta que “a crise em curso não é verdadeiramente uma crise”,
é um RESET. É uma questão de desligar a máquina e tornar a ligá-la, passado um bocado. Mas quando a voltamos a ligar, podemos decidir fazê-la trabalhar como antes, correndo o risco de darmos por nós a reviver o pesadelo todo outra vez, do início - ou podemos decidir reprogramá-la, de acordo com a ciência, com consciência e sensibilidade. (p. 58)
Em confinamento propomos diminuir muito a nossa pressa, abrandar a velocidade fisiológica que nos pressiona, pois quase todos os lugares para onde vamos estão online, sem sair do mesmo espaço. Poder dizer que se saiu de uma reunião a correr para outra é imaginar que em alguns cliques, mudando apenas as caras no ecrã, se passou de facto de uma mesa-redonda em Coimbra para uma conferência em Faro. O corpo, que também somos, talvez tenha disparado essa velocidade de corrida, mas não pôde experimentar o percurso entre espaços. Pensar com o caminho pode passar por caminhar, concretamente, incorporar um movimento de pensamento deslocando-se, tomando espaços, e constituindo lugares. Mas podemos também passar a produzir alternativas a tal. Por exemplo, podemos finalmente, procrastinar como prevenção do esgotamento, como forma de resistência aos modos de produção vigentes e relaxando a “culpa” inculcada pelo constante atraso, ou pelo desmazelo na obrigação do trabalho em dívida. Talvez, ao serenar, possamos recuperar modos sinestésicos que sejam, ao mesmo tempo, contemplativos e críticos, lentamente. Abrindo, finalmente, espaço para formular novas propostas coreopolíticas, modos de ver, de pensar e de caminhar lado a lado com a cidade, ou mesmo com a cidadania.
A água que nos pesa - “somos 70 por cento água” (Paxton, 2018, p. 65) - orienta o corpo para o chão, de modo sempre experimental. Mesmo que a principal aprendizagem tenha sido feita na primeira infância, podemos sempre tentar sentir o peso que nos orienta. O peso da concretude física, que também somos, poderá ajudar a enraizar e a radicalizar (no sentido de encontrar a raiz das questões) a nossa corepolítica - uma partitura singular preparada para a liberdade de todos os dias. Será essa uma tarefa do bailarino como sugere Lepecki (2013)? Poderá ser esse um dos caminhos para nos movermos politicamente (Arendt, 1993, como citada em Lepecki, 2013, p. 13)?