1. Introdução
A utilização de técnicas inovadoras de ensino e de aprendizagem não encontra limites na comunidade educacional, onde, desde sempre, se tem procurado introduzir formas e técnicas pioneiras de aprendizagem.
Tem-se notado que o envolvimento emocional dos alunos no processo de aprendizagem é essencial para que estes entendam as coisas a um nível mais profundo (Fonseca, 2016). A introdução do kamishibai (“teatro de papel”) na educação vai nesse sentido. O seu uso é, certamente, uma tentativa para envolver as crianças, física e emocionalmente, no estudo de questões relacionadas com a sociedade, a saúde, ou o bem-estar (Casas, 2006), mas também, no caso em apreço, do multiculturalismo e da interculturalidade. A problemática em torno da diversidade linguística, cultural e étnica, agora generalizada, e da qual a presente reflexão faz eco, tem como propósito principal demonstrar a importância de trabalhar as questões levantadas pela pluralidade cultural ao nível da escola, fazendo ressaltar os problemas e a realidade a ela associados (Beacco & Byram, 2007; Menken & García, 2010).
Parece consensual que as relações étnico-raciais sublinham, inexoravelmente, o quotidiano da vida das sociedades modernas, marcando a dinâmica das relações sociais, a que a escola não será alheia. Destarte, tendo em consideração os mecanismos de transformação social que a educação acarreta e o papel a desempenhar pelos educadores no âmbito da mediação intercultural, importaria questionarmo-nos sobre as potencialidades educativas do kamishibai, designadamente naquilo que concerne a integração da diversidade e do diálogo na escola, estimulando a construção de um ambiente propício à solidariedade, fraterno e de respeito mútuo (Martins et al., 2017).
Partindo destes prolegómenos, foi elaborado um projeto de investigação no Departamento de Educação e Psicologia, da Universidade de Aveiro, com a finalidade de estudar um recurso didático recentemente introduzido em Portugal - o kamishibai plurilingue.
O trabalho aqui apresentado surge com o intuito de aquilatar sobre os benefícios em promover a compreensão e o respeito pelas diferenças culturais em contextos educativos através da utilização do kamishibai plurilingue, permitindo, dessa forma, produzir conhecimento sobre um recurso didático promotor de práticas educativas que incentivem a aquisição de competências interculturais (CI).
2. Contextualização Teórica
2.1. As Origens do Kamishibai
Kamishibai é um termo japonês que significa, literalmente, “teatro de papel”. Trata-se de uma forma milenar de arte (em pergaminhos) utilizada para contar histórias na tradição oral, que supostamente teve origem nos antigos templos budistas do século VIII e cujo objetivo principal era relatar acontecimentos com um intuito iminentemente moralista e para plateias iletradas (Nash, 2009).
Muito embora os primórdios do kamishibai possam ser desconhecidos1, o facto é que encontramos referências a esta manifestação artística em jornais por volta dos anos 30 do século passado, como uma forma de teatro de rua (gaitô2) praticado em bairros dos arredores de Tóquio - Shitamachi (Nash, 2009). Ao que tudo indica, o kamishibai encontra a sua génese no etoki (explicação pictográfica)3, ou seja, na arte de interpretar imagens, e cujas referências podem ser encontradas em manuscritos emaki (rolo pintado) do século XII, nomeadamente no célebre Chōjū-jinbutsu-giga, um conjunto de quatro pinturas expostas num templo budista em Kyoto, de autoria de um monge budista - Toba Sōjō (1053-1140).
O emaki ou emakimono é uma ilustração feita em seda ou papel, acondicionada em rolos (makimono), que datam do século VIII (período Nara), e que retratam, entre outras coisas, animais fantásticos (com formas humanas), grandes batalhas ou romances.
O kamishibai e o manga/mangaka4 tornaram-se particularmente apreciados durante a crise de 1929 e no decurso da Segunda Grande Guerra. Nesta altura, houve uma explosão dos kamishibaiya (contadores de histórias ao ar livre) em Tóquio (cerca de 2.500), que se exibiam todos os dias (várias vezes) para uma audiência de várias dezenas de crianças, e que se estima terem envolvido cerca de 1.000.000 de pessoas (McGowan, 2015).
Esta época foi das mais profícuas e empolgantes da história do kamishibai no Japão, sendo mesmo designada como a “época áurea” do kamishibai (Orbaugh, 2015, p. 58). Florescia, assim, uma forte indústria editorial à volta da banda desenhada. No entanto, à margem deste movimento, determinado pela procura de entretenimento barato, surgiam, então, os contadores de histórias ao ar livre, justamente os kamishibaiya. O gaitô kamishibaiya (contador itinerante de histórias) parava a sua bicicleta na esquina de uma rua que lhe era familiar, e batia os seus hiyogoshis (pedaços de madeira), anunciando a sua presença, e dando início ao espetáculo, um pouco à imagem das célebres pancadas de Molière.
Quando as crianças se acercavam do local, ele procedia à venda de guloseimas como contrapartida pelo ingresso no espetáculo, sendo este o seu principal rendimento. Os kamishibaiya utilizavam para o efeito um butai, um pequeno palco de madeira em miniatura onde passavam, uma a uma, as pranchas de cartão ilustradas (Moriki & Franca, 2017) à medida que iam desenvolvendo a sua história, que, invariavelmente, começava por mukashi mukashi, o que significa “era uma vez...”, dramatizando assim as histórias com grande talento, fazendo uso das pranchas coloridas pintadas à mão, ao mesmo tempo que produziam efeitos sonoros que davam vida e cor à sua narrativa sem guião- criando um verdadeiro clima de suspense à sua volta.
O kamishibai é uma técnica narrativa que “combina texto e imagem, teatralidade e criatividade” (Faneca, 2019, p. 361) e que estimulou a sociedade japonesa durante décadas, tornando-se, por isso, uma forma poderosa e cativante para ilustrar histórias5. Embora esta antiga manifestação artística se tenha desvanecido com o tempo, o facto é que o seu significado e contributo permitiram que o kamishibai perdurasse, com
sucesso, até aos nossos dias6.
2.2. O Kamishibai Como Ferramenta Educativa
As especificidades do kamishibai permitem que, ainda hoje, seja usado em apresentações multimédia modernas, prosseguindo os mais variados fins e propósitos (por exemplo, em auditorias, engenharia e gestão de produção), mas o que o torna particularmente útil é o seu formato único. Cartões grandes com ilustrações coloridas permitem ao contador de histórias apresentar claramente, ao seu público, narrativas com uma forte componente visual.
“A escola do futuro não será, talvez, uma escola como a entendemos hoje em dia -com bancos, quadros e estrados para professores - pode ser um teatro, uma biblioteca, um museu, ou uma conversa” (Tolstoi, 1850/1988, p. 140). O tom providencial desta afirmação, com mais de 1 século, tornou-se agora uma realidade. Hoje, encontramos uma recetividade crescente a estas ideias, com um envolvimento ativo de mais meios e recursos para a educação de jovens e crianças (International Kamishibai Association of Japan, 2019). Um desses processos é justamente o teatro (Eisner, 1979).
O uso do drama como ferramenta de ensino e para o ensino não é novo. Historicamente, a expressão dramática é há muito reconhecida como um meio com grandes potencialidades para a educação e ensino (Courtney, 2003). Na verdade, foi necessário chegar ao fim do século XX para se começar a vislumbrar os impactos reais dessa corrente de opinião na educação pública. Na mente de muitos, o teatro e a dança eram questionáveis como parte integrante da educação de um jovem (Spolin, 1978/2005), aliás, no que era secundado pela música, pela prática desportiva, e pelas artes visuais.
Propomo-nos mostrar, assim, que a escola tem uma função essencial na promoção de atitudes e valores que constituem a base da formação cívica dos alunos - como contraponto ao preconceito e discriminação (Martins et al., 2017).
2.3. O Kamishibai Plurilingue
O kamishibai plurilingue revela-se como uma evolução do kamishibai tradicional uma vez reconhecidas as suas potencialidades pedagógicas em termos linguísticos e culturais.
Em 1930, Imai Yone (1897-1968), uma assistente social católica, decidiu criar um kamishibai, de cariz religioso, que lhe permitisse dar catequese às crianças da sua paróquia. Ela observou o fascínio das crianças pelas histórias kamishibai de rua e, por isso, utilizando este recurso, adaptou algumas narrativas bíblicas (McGowan, 2015).
Influenciada pelos trabalhos de Imai Yone, surge Gozan Takahashi (1888-1965), um editor e redator de revistas para crianças, que introduziu o kamishibai educativo ao fundar a editora Zenkōsha. Esta empresa publicava histórias kamishibai baseadas em peças budistas e filmes da Disney, utilizando diferentes técnicas de ilustração (Moriki & Franca, 2017). O método de apresentação utilizado por Imai Yone, com fins educativos, inspirou vários autores, como Matsunaga Ken’ya (1907-1996), criando “o tipo de kamishibai interativo que permite e encoraja a participação do público” (Carreño, 2012, p. 5). Posteriormente, em 1938, Gozan Takahashi acaba por fundar a Federação Japonesa do Kamishibai Educativo como forma de promover a cultura japonesa (Lucas, 2009). Desde então, o kamishibai tem sido utilizado nas escolas e nas bibliotecas públicas como forma de fomentar o ensino-aprendizagem, e de preservar a herança cultural do seu país, passando, a partir da década de 70, a ser amplamente utilizado como um recurso didático na Europa (Jiménez, 2005).
Mais recentemente, em 2015, a associação D’une Langue à L’Autre (De uma Língua Para Outra; sediada em Montreuil, França; https://www.dulala.fr/) organizou a primeira edição de um concurso de escrita plurilingue e de ilustração de pranchas de forma colaborativa, isto é, a construção de um kamishibai plurilingue (Pedley & Stevanato, 2018).
A sua versatilidade permite, a todo o tempo, desde a sua conceção ao momento da sua apresentação, a comunicação e a cooperação entre crianças (Faneca, 2021), e, nesse sentido, possibilita, também, diversas abordagens, das quais se salienta o desenvolvimento de atividades linguísticas e culturais, designadamente, a integração da diversidade das línguas e culturas, estimulando o desenvolvimento pessoal e social das crianças, ao mesmo tempo que permite, também, trabalhar as áreas de conteúdo e as expressões. Consequentemente, o desenvolvimento destas competências, através da utilização do kamishibai plurilingue, permite aos indivíduos uma maior facilidade na comunicação e na interação intercultural.
O kamishibai plurilingue no contexto escolar, pelo seu potencial educativo e as suas características multimodais, pode permitir a valorização do outro, as línguas e as tradições, e o desenvolvimento das literacias. De entre as ferramentas que tentam ensinar línguas e aprender a ler e escrever contando histórias em escolas do pré-escolar, os kamishibai ocupam um lugar especial. (Faneca, 2020, p. 225)
As histórias, ou as ilustrações, do kamishibai plurilingue devem integrar pelo menos quatro línguas, procurando espelhar, desta forma, a realidade (diversidade) de lín guas faladas pelos alunos, procurando manter, dentro do possível, a compreensão geral.
Criar um kamishibai usando várias línguas leva a uma reflexão sobre as línguas usadas na escola. É também uma ótima maneira de permitir a aprendizagem de outras línguas utilizadas pelas crianças, famílias ou educadores, dentro da escola.
Num kamishibai plurilingue, as línguas contribuem, também, para a construção e desenvolvimento da história. O desafio é, portanto, criar uma unidade narrativa a partir de uma diversidade de línguas que se vão alternando na narrativa.
Foi neste âmbito que nasceu o kamishibai plurilingue, passando o recurso kamishibai a ter uma vertente educativa plurilingue e intercultural, com foco nas abordagens plurais (Candelier et al., 2010). É assim, desta forma, que o kamishibai plurilingue passa a contemplar características do kamishibai tradicional, sendo nele incluídas várias línguas e culturas na narrativa e na ilustração.
2.4. O Drama e o Teatro
O drama e o teatro podem unir-se com vantagens mútuas, no sentido de encontrar soluções adequadas para a resolução de conflitos. Recorrentemente, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (2000a; Comissão Nacional da UNESCO, 2006) tem apelando para o ensino e aprendizagem de artes visuais e cénicas, como parte da construção de uma cultura de paz, enfatizando também a necessidade de se equacionarem novos tipos de educação - mais equilibrados, no sentido de satisfazer os quesitos e as necessidades do século XXI, designadamente:
promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos na medida das suas potencialidades;
inculcar na criança o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; e
inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua. (Convention on the Rights of the Child, 1989, p. 9, Art. 49)
O drama criativo e, no nosso caso, o kamishibai podem ser considerados uma das ferramentas mais eficazes na melhoria das capacidades comunicativas e cognitivas das crianças (Barret, 1993). A utilização deste recurso educativo pode ajudar os alunos a desenvolver e melhorar as suas aptidões críticas, a criatividade, a comunicação, bem como a fortalecer as suas capacidades de comunicação oral e escrita.
O drama criativo enriquece a imaginação e a vontade dos alunos em aprender, a agir ou a fingir, como forma de reforçar os seus objetivos escolares, emocionais e interpessoais. De facto, o drama criativo mostra aos alunos a forma de serem apreciados e a compreenderem as necessidades dos outros, o que fará com que possam formular juízos de valor e ter uma atitude crítica.
3. A Mediação Intercultural
Numa sociedade moderna, caracterizada por mobilidades várias e pela pluralidade de identidades, aumenta a premência para nos relacionarmos de forma adequada, quer linguística quer culturalmente, com outras pessoas, sendo este um dos nossos maiores desafios. Desta forma, a educação multicultural deve ser complementada com a aquisição de aptidões interculturais (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 2006, p. 17), ou seja, com a aquisição de um leque de fatores (capacidades, conhecimentos e atitudes) que nos permitirão relacionar com pessoas de culturas diversas, mantendo um diálogo apropriado, sem ferir suscetibilidades - no absoluto respeito e consideração pelo seu “direito à cidade e à diferença” (Sandercock, 2004).
A contemporaneidade da sociedade em que vivemos, complexa e paradoxal, é marcada pela dinâmica da interseção constante entre povos, comunidades, e pessoas, o que se reflete na pluralidade cultural. Assim, é muito provável que, de alguma forma, pos samos ser confrontados com situações onde é exigido o domínio de uma ampla gama de competências7que nos permitam encarar as diferenças culturais como um desafio e como possibilidade de enriquecimento das nossas experiências pessoais.
Organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, o Conselho da Europa, e a própria União Europeia, muito têm refletido sobre esta questão e na forma como o desenvolvimento destas capacidades pode contribuir para a promoção da paz mundial ou para a prevenção e gestão da conflitualidade atual, tendo, para o efeito, lançado uma série de documentos orientadores para o sistema educativo (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2000b), procurando, com isso, relançar as bases para o entendimento pacífico entre todos, isto é, o desenvolvimento de conhecimentos, atitudes, e competências que nos permitam interpretar um evento ou documento num contexto intercultural - adquirir, de forma autónoma, novos conhecimentos sobre outras culturas-, e desenvolver uma sensibilidade cultural crítica sobre a sociedade atual e os seus valores e práticas (Council of Europe Ministers of Foreign Affairs, 2008), o que nos possibilita, decididamente, navegar em ambientes marcadamente complexos, recheados pela variedade de povos e de estilos de vida, e compreender a riqueza que a diversidade cultural aporta à nossa experiência pessoal.
4. Desenho Metodológico: Questões de Investigação, Objetivos e Metodologia
4.1. Metodologia
Esta pesquisa caracteriza-se como uma investigação exploratória de caráter qualitativo sobre as capacidades pedagógicas e didáticas do kamishibai plurilingue na consciencialização/criação de CI em crianças do 1.º ciclo do ensino básico, com idades compreendidas entre os 6 e 9 anos de idade respetivamente (Lei n.º 85/2009, 2009).
Para conseguir este desiderato, o de gizar o objeto de estudo e o plano de investigação, os seus propósitos analíticos e a correspondente estratégia metodológica, recorremos às técnicas preconizadas por Coutinho (2013).
A escolha do paradigma qualitativo de investigação teve por base as dinâmicas da sociedade atual, e o facto de proporcionar uma maior flexibilidade e reflexividade durante todo o trabalho de investigação, ou seja, por possibilitar, desta forma, destacar o seu carácter descritivo, interpretativo e compreensivo da realidade social, o que nos permite refletir sobre a questão da diversidade cultural e da interculturalidade na realidade educativa. Assim, com o intuito de melhor estruturar o esforço de pesquisa, e do tratamento e análise dos dados recolhidos, este trabalho foi articulado seguindo uma metodologia qualitativa.
Estas questões, sobre o mérito do ensino/aprendizagem de CI nas escolas, atra- vés do kamishibai plurilingue, procuram ter um fundo pragmático - simples, claro e conciso -, de modo a possibilitar uma leitura crítica da realidade, estabelecendo o nexo de causalidade entre o objeto de estudo, o conhecimento e as suas conceções teóricas, no intuito de proporcionar uma explicação objetiva e facilitadora de todo o processo, criando, assim, as limitações e bases epistemológicas para a elaboração do corpus teórico e empírico desta pesquisa.
O presente estudo procurou responder às seguintes questões:
Quais as potencialidades e limitações do kamishibai plurilingue na promoção e valorização das CI?
Como se podem desenvolver recursos educativos passíveis de contribuir para a aquisição/desenvolvimento de CI?
Como pode o kamishibai plurilingue ser um instrumento facilitador do diálogo e da inclusão na escola?
Para o efeito, no sentido da procura de conhecimento e da compreensão dos fenómenos em apreço, designadamente, o de verificar as potencialidades do kamishibai plurilingue no desenvolvimento de competências interculturais em ambiente educativo não formal, foram analisados os seguintes elementos:
quatro kamishibai plurilingues produzidos em contexto de atividades de enriquecimento curricular, por alunos do 1.º e 2.º anos respetivamente, de uma escola do 1.º ciclo do ensino básico, no âmbito do concurso 2020/2021 de kamishibai plurilingue (Faneca, 2021);
as representações dos professores expressas nos diários de bordo que acompanharam a produção dos kamishibai plurilingues concorrentes;
um inquérito efetuado a 62 crianças.
4.2. Fases do Projeto de Investigação
O projeto foi dividido em quatro fases distintas que envolveram a revisão da literatura e conceção de instrumentos de recolha de dados; a recolha e organização dos dados propriamente dita; a interpretação dos dados e análise das informações; e a redação da versão final do relatório com as respetivas recomendações.
Os resultados apresentados aqui são fruto de um estudo muito mais lato em que se pretendeu ressaltar, inequivocamente, a importância do kamishibai como potenciador da criação das estruturas mentais para a aceitação da diferença e da pluralidade, e a integrá-las no quotidiano da vida das escolas, contribuindo, dessa forma, para uma comunicação intercultural adequada e a criação de um sentido de pertença comum.
5. Apresentação e Discussão dos Resultados
Este projeto foi desenvolvido em contexto de educação não formal no âmbito das atividades de enriquecimento curricular. A escola do 1.º ciclo do ensino básico escolhida pertence a um agrupamento de escolas de uma vila do distrito de Santarém, onde é desenvolvido um projeto inovador de educação em ciências, numa parceria com a Universidade de Aveiro, sendo a escola responsável por conceptualizar, planificar e dinamizar diversas oficinas, de entre as quais uma oficina de kamishibai plurilingue.
5.1. Questionário
5.1.1. Caracterização do Perfil dos Alunos
As respostas aqui referidas são provenientes de um inquérito por questionário, efetuado a 62 alunos do 1.º ciclo do ensino básico, em contexto extracurricular. O inquérito com 27 perguntas encontrava-se dividido em três secções. Na primeira (informações gerais - “eu e o mundo à minha volta”), foram apresentadas questões que procuravam traçar o perfil dos alunos e obter alguns dados sobre a importância deste projeto relativamente às potencialidades do kamishibai na sensibilização para a diversidade linguística e cultural. Na segunda secção, questiona-se sobre a relação escola/família. Na terceira parte, foram feitas perguntas alusivas às aprendizagens dos alunos em termos interculturais, decorrentes do seu envolvimento na produção de um kamishibai.
As questões formuladas foram de natureza aberta, fechada e mista, respetivamente. Esta abordagem teve como objetivo proporcionar respostas mais diversificadas, que nos permitem salientar:
Os alunos objeto deste inquérito (62) são maioritariamente do género feminino (38), e as suas idades estão compreendidas entre os 6, 7 e 8 anos de idade, num total de 26 alunos com 6 anos de idade, 25 com 7 anos de idade, e 11 com 8 anos de idade.
Os alunos frequentam o 1.º e 2.º anos de escolaridade do 1.º ciclo, num total de 37 para o 1.º ano, e 25 para o 2.º ano.
Relativamente às habilitações literárias dos pais, é visível que a grande maioria (26) se apresenta com o ensino secundário apenas, por oposição às mães que têm mestrado (23), e 29 licenciatura.
Sobre as profissões, como o quadro das habilitações literárias denota, elas inserem-se, na sua grande maioria, numa classe média superior.
Os pais, na sua grande maioria (22), apresentam idades compreendidas entre os 40 e 45 anos de idade, e só quatro entre os 25 e 30 anos de idade. A maioria das mães (21), em linha com a idade dos pais, situam-se na faixa etária dos 35 e 40 anos de idade. Na faixa etária dos 25 aos 30 anos de idade só encontramos quatro mães
5.2. A Realidade Cultural
O grupo de perguntas subordinado à realidade cultural tinha como principal objetivo compreender o contributo e implicações que a educação intercultural pode ter no desenvolvimento pessoal e social dos alunos, verificando e identificando as idiossincrasias da comunidade escolar relativamente aos processos culturais a que as crianças se encontram submetidas, tendo a referir:
A compreensão que os alunos têm sobre outras pessoas/realidades culturais encontra-se equilibrada, isto é, 33 tem conhecimento do ambiente multicultural à sua volta, e 29 não o tem. Assim, verificamos que grande maioria dos inquiridos respondeu afirmativamente à questão relacionada com o seu conhecimento sobre pessoas de outros países/culturas. Não deixa de ser significativo, desta feita, o número daqueles que não conhecem pessoas de outras proveniências (29). Dos alunos que mostraram conhecimento de outras realidades culturais, a escolha recaiu sobre pessoas oriundas do Brasil (11), da China (oito), de França (seis), e 37 repartem a sua resposta por outros países.
Sobre a forma como devem ser tratadas as pessoas de outras culturas, a maioria (61) refere que estas devem ser tratadas com educação e respeito. Curioso o facto de apenas um aluno achar que estas devem ser tratadas com agressividade.
Verificamos que 36 pais têm amigos de outras nacionalidades.
Da amostra apenas sete crianças referem que os pais já os proibiram de conviver com pessoas de outras culturas, nomeadamente brasileiros (quatro), chineses (duas) e ciganos (uma).
No entanto, malgrado a opinião anterior, 49 alunos acham que, mesmo assim, é importante conviver com pessoas de outas culturas.
Num outro grupo de perguntas, agora subordinado às questões da cultura, a amostra reparte-se, equitativamente, sobre aspetos particulares de cultura, designadamente, hábitos, educação, alimentação, arte, escrita, religião, sendo a primazia para as questões da educação (16).
Aqui é salientada, uma vez mais, a ideia de que é importante o relacionamento com pessoas de outras culturas (45).
É variadíssima a lista de países cujas culturas os alunos gostariam de aprofundar. Destaque, no entanto, para o Brasil (20), a França (16), e a Itália (sete). As restantes escolhas (19) repartem-se pela Inglaterra, Luxemburgo, China e Angola, entre outros. O motivo desta escolha tem a ver, segundo a amostra, com a preponderância económica e a projeção internacional destes países (38).
É notável que 57 dos inquiridos tenham muitos amigos, e que estes assumem ser um facto muito importante para as suas vidas (62).
Os alunos escolhem os seus amigos em função do companheirismo (16), da simpatia (15), da diversão (13), e da proteção (12), sendo as questões de raça, religião e género relegadas para segundo plano, com apenas um só aluno a referi-las. No entanto, 54 alunos gostariam de ter amigos de outras culturas, assumindo que lhes é fácil interagir com pessoas de outras culturas (49).
Este sentimento de facilidade em interagir com pessoas de outras culturas é corroborado pela percentagem de alunos que não tem problemas em se aproximar de novos alunos de outras culturas na escola (49).
Já 19 alunos assistiram a colegas da escola a serem maltratados em função de aspetos culturais, assumindo, no entanto, que a melhor forma de reportar os incidentes seria através do professor (oito), ou com recurso aos seus pais (cinco). É, contudo, preocupante que três alunos ignorassem os casos.
Uma vez mais, é aqui reiterada a importância que o convívio com pessoas de outras culturas pode ter na compreensão do mundo à sua volta, na aprendizagem de novas línguas (19), na compreensão e aceitação da diferença (14), ou ainda no conhecimento de novas formas de ver, pensar e agir (13).
5.3. Familiarização com o Kamishibai Plurilingue
No grupo relativo ao conhecimento e experiência com o kamishibai, as respostas são inequívocas, salientando-se o gosto por este recurso e a vontade de trabalhar na montagem e construção de uma história, fruto, talvez, de experiências anteriores e da participação no concurso de kamishibai plurilingue promovido pelo Laboratório de Educação em Línguas, uma estrutura de investigação, formação e intervenção do Centro de Investigação em Didática e Formação de Formadores da Universidade de Aveiro, no âmbito do projeto Plurieduca (análise e construção da competência plurilingue - percursos didáticos para uma educação em línguas). Este concurso anual desafia crianças dos 3 aos 15 anos a criarem uma história em formato kamishibai, integrando na narrativa quatro línguas com estatutos diferentes, entre as quais a língua da escola, dando oportunidade de integrar as línguas e diferentes competências, por vezes ignoradas, em contexto educativo.
Estamos em crer que, malgrado o nível socioeconómico das famílias e do ambiente privilegiado da escola, devem ser implementadas ações no sentido de esbater alguns dos valores apresentados, designadamente aqueles que se reportam a uma melhor compreensão da diferença e da diversidade cultural, aproveitando, no caso em apreço, os meios que o kamishibai plurilingue pode proporcionar naquilo que se refere à promoção de competências interculturais dos alunos, e ao seu desenvolvimento emocional, social e cognitivo, granjeando-lhes: autoconfiança, imaginação, empatia, cooperação/ colaboração, concentração, capacidade de comunicação, entre outros.
O kamishibai revela aqui um potencial pedagógico passível de se aplicar a uma multiplicidade de situações, conseguindo mobilizar, com sucesso, os esquemas operatórios de pensamento dos alunos para o processo de aprendizagem8, ao mesmo tempo que, de acordo com vários autores (Boal, 2005; Spolin, 1978/2005; Vygotsky, 1991/2014), se promove a aquisição de outros conhecimentos e competências, à medida que as crianças e jovens são envolvidos em atividades teatrais e artísticas.
As respostas ao inquérito revelam que o envolvimento dos alunos na conceção, construção e montagem das histórias em formato kamishibai e das respetivas pranchas, os lança para um mundo divertido - de humor, ironia e entretenimento. As perguntas e as respostas sobre as histórias, as discussões, as comparações, a criação das suas próprias narrativas e personagens permitem, para além do aprofundamento da oralidade e da escrita, potenciar a criação de estruturas mentais para a aceitação da diferença e da pluralidade, e a integrá-las no quotidiano da vida das escolas, contribuindo, dessa forma, para uma mediação intercultural adequada.
6. Elaboração do Kamishibai Plurilingue
Na elaboração dos kamishibai foi tido em consideração tudo aquilo que é preconizado pela rede Kamilala, ou seja, os trabalhos foram desenvolvidos em quatro fases, que por sua vez se desdobraram em diversas subfases, de acordo com determinados objetivos, e que, de uma maneira geral, procuram desenvolver valores/atitudes/competências interculturais (Faneca, 2021). A saber:
Na primeira fase, a da descoberta (sensibilização às línguas de contexto), é feita a leitura e apresentação de trabalhos idênticos - procedendo-se à sua posterior análise e discussão. A ideia subjacente é a de sensibilizar os alunos para a diversidade linguística e cultural à sua volta, mas também para as competências e conhecimentos que os mesmos podem mobilizar para as tarefas em curso - a produção de um kamishibai. Na fase seguinte - a do uso das línguas -, pretende-se que os alunos saibam as línguas de outras crianças/pessoas que partilham o mesmo espaço, quer seja no seu bairro, rua ou escola. Já a fase de realização (conceção do kamishibai) - criação da história, do cenário, criação de ilustrações, organização das pranchas - reporta-se à criação do kamishibai propriamente dito, para o que se procede a uma repartição de tarefas a cumprir; este ciclo de produção termina com a fase de apresentação final do espetáculo (contar o kamishibai: o espetáculo plurilingue). Aqui, as crianças procedem à exposição do espetáculo produzido, para o que se desdobram, entre outras, na realização de múltiplas tarefas, quer seja como narrador, ou tocando algum instrumento musical.
6.1. O Kamishibai Plurilingue: Um Estímulo à Cooperação
Como ficou patente, as fases da criação à execução de uma história kamishibai promovem o trabalho cooperativo entre crianças, na medida em que se procede:
à escolha do tema;
à escolha das personagens, espaço, tempo;
à definição do cenário e do enredo;
à criação da história;
à redação de textos;
à decisão do ritmo da narrativa e da transição das pranchas;
ao esboço sequencial das pranchas (storyboard);
à distribuição de funções;
à realização dos desenhos;
à definição os efeitos sonoros e/ou da música;
leitura/representação
Para responder às perguntas de partida, e perceber de que forma as atividades em torno do kamishibai podem sensibilizar os alunos para a diversidade linguística, e para as questões interculturais, foram efetuadas as seguintes diligências que envolveram 62 crianças com idades compreendidas entre os 6 e 9 anos de idade, no âmbito das atividades de enriquecimento curricular:
elaboração e análise de um inquérito;
análise das representações dos animadores/educadores expressas nos diários de bordo;
análise a quatro kamishibai concorrentes ao concurso 2020/2021 do kamishibai plurilingue
Este concurso foi subordinado ao tema “o mundo está a mudar mais rapidamente do que tínhamos imaginado” e teve como objetivo principal incentivar os atores educativos a desenvolver projetos abertos à diversidade linguística e cultural, por meio da criação de pranchas de um kamishibai plurilingue, contribuindo para o desenvolvimento de uma educação intercultural (Faneca, 2020). Eles foram:
Na elaboração destes projetos - na conceção e produção destes kamishibai -, foram seguidas diversas fases, o que envolveu a elaboração da história (tema, título, desenvolvimento, escolha das personagens, etc.); ideias sobre as ilustrações; e escolha das palavras-chave da história e das línguas utilizadas (quando possível, dependendo do tema escolhido), o que nos permite considerar o kamishibai plurilingue como um recurso pedagógico passível de poder desenvolver valores/atitudes/competências interculturais, não só através dos aspetos colaborativos da sua conceção e construção, como também através da leitura e dramatização dos temas abordados. A apresentação pública do trabalho permite, também, corroborar as hipóteses de partida, isto é, salientar as vantagens da mobilização (com sucesso) das atividades dramáticas no tratamento das questões multiculturais em contextos escolares.
6.2. Representações de Educadores/Animadores
Da análise das representações dos educadores/animadores expressas nos diários de bordo (identificados, de seguida, por “DB” e por um respetivo número de modo a diferenciá-lo) anexos aos quatro kamishibai concorrentes ao concurso de kamishibai plurilingue de 2020/2021, é de ressaltar que a participação neste projeto foi motivada, inicialmente:
pela determinação de desenvolver um projeto que envolvesse a diversidade linguística e cultural, mas sobretudo, por envolver os novos falantes de outras línguas recém-chegados à escola para promover todas as línguas em uso, o respeito pelas diferenças, a partilha e a cooperação na cocriação do projeto. (DB4)
Talvez, aqui, o quesito principal tenha a ver com aquilo que este projeto pode trazer de novo e desafiante ao grupo de crianças. O facto é que “cada vez mais somos cidadãos do mundo e existe uma necessidade para expandir o nosso conhecimento pelo mesmo, abraçando as suas diferenças” (DB1). Também
para os adultos do grupo foi um desafio bastante compensatório, não só pelo facto de poder assistir à alegria das crianças em participar no mesmo e a sua evolução, mas também verificar o quão benéfico é para a criança e para o seu desenvolvimento. Este trabalho permite também um olhar diferente para a forma como as línguas poderão ser abordadas e exploradas, como também para o desenvolvimento e aquisição de estratégias e ferramentas cativantes e facilitadoras para a dinamização de atividades. (DB3)
Certamente, uma
oportunidade de envolver todas as crianças e acolher as suas propostas, despertando a sua curiosidade para as mais diversas línguas e culturas que o mundo oferece. Para além de ser uma experiência cativante e criativa, que promove o interesse pela leitura. (DB1)
Desta forma, de acordo com os resultados obtidos, podemos realçar a importância deste recurso didático no desenvolvimento de uma atitude de solidariedade, abertura, aceitação, enriquecimento e aprendizagem da diversidade, para além de fomentar um novo acolhimento, reconhecimento, cooperação e diálogo, características estas que possibilitam o desenvolvimento de competências transversais ao currículo e essenciais à aprendizagem não só a nível escolar, mas também a nível social (Pedley & Stevanato, 2018).
7. Conclusões
Os resultados revelam que as atividades de sensibilização sobre a diversidade cultural e linguística, recorrendo ao kamishibai plurilingue, potenciam o desenvolvimento de competências no domínio da comunicação intercultural; de saberes de diferentes áreas do conhecimento; e de atitudes positivas face às línguas e à alteridade, conforme ficou espelhado nas respostas ao inquérito, e do qual, por exemplo, sobressai “o facto de podermos desenvolver um projeto que vise a diversidade linguística e cultural e conceber novas estratégias e recursos de ensino-aprendizagem” (DB2), ou ainda, “envolver os novos falantes de outras línguas recém chegados à escola para promover todas as línguas em uso,
o respeito pelas diferenças, a partilha e a cooperação na cocriação do projeto” (DB3).
A utilização do kamishibai vai, pois, ao encontro dos desafios que se colocam aos agentes educativos, promovendo uma melhoria significativa da compreensão linguística e visual, mas também em todas as áreas temáticas que são abrangidas pelos currículos escolares (McGowan, 2015). Para McGowan (2015), construir um kamishibai convida o aluno a envolver-se num trabalho colaborativo - a pensar criticamente a estrutura e produção do kamishibai, com base na sua própria experiência e cultura, aportando ao processo todo um conjunto rico de novidade e diversidade. Para um aluno do ensino básico, a utilização do kamishibai torna tudo mais fácil e apelativo, “permitindo a comunicação e cooperação das crianças, quer no momento da sua criação quer da sua apresentação” (Faneca, 2019, p. 361). É mais fácil porque se revela mais intuitivo, ao permitir que o aluno possa construir a sua história de acordo com uma estrutura que contemple a introdução, a exposição, e a resolução de problemas através do uso de imagens. Por outro lado, falar de interculturalidade na escola - das suas identidades plurais - remete, desde logo, para a obrigatoriedade do multiculturalismo ser trabalhado em ambiente de sala de aula, no intuito de erradicar qualquer preconceito existente, contribuindo para que as crianças possam ter uma visão heterogénea e plural dos grupos sociais e respeitem as diferenças.
A escola é, seguramente, um dos locais onde mais se reflete a diversidade cultural - um dos lugares que mais sofre com este tipo de desafios -, o que obriga a uma maior atenção dos docentes para enfrentar estes tipos de constrangimentos, recorrendo, para o efeito, a estratégias adequadas.
Muitos estudos (Aguilar, 2001; Arroyo, 2007; Dewey, 1900/2003; Fuegel & Montoliu, 2000; Spolin, 1978/2005) confirmaram a sua eficácia como método de ensino nas diversas fases educativas. A abordagem do drama criativo leva os alunos a descobrir a sua força interior e a aplicá-la (Arroyo, 2007). Ela enfatiza a sua importância na mobilização das suas competências, inteligência e imaginação para ajudá-los a aprender através da sua própria atividade. A utilização do drama criativo também apoia o desenvolvimento das suas capacidades linguísticas (leitura e escrita), e vocabulário, ao mesmo tempo que estimula os processos cognitivos de nível superior (Fonseca, 2016).
Percebe-se que os professores/educadores possam ter alguma dificuldade em implementar estratégias criativas, inovadoras e flexíveis de suporte ao seu trabalho como profissionais de educação, levantadas pela grande diversidade cultural (Candelier et al., 2010) e por alunos que apresentam conceitos e imagens preconcebidas de natureza étnico-racial. Pretende-se, assim, providenciar aos docentes, nas suas práticas pedagógicas quotidianas, estratégias diversificadas para lidar de forma adequada com a heterogeneidade cultural - os estereótipos e os preconceitos.
Aqui sobressai o papel social da escola - como local privilegiado da promoção de uma sociedade mais justa e igualitária -, visto ser aqui que jovens e crianças têm a oportunidade inicial de começar a mostrar e a desenvolver as suas capacidades cognitivas e sociais (Pintassilgo, 1998). É, pois, por isso mesmo, imprescindível que se desenvolvam atividades que valorizem a interculturalidade na escola através de todo um trabalho colaborativo de criação, e da produção das histórias kamishibai, designadamente através da escolha do tema, a construção da história, a montagem e desenho das pranchas, e por aí adiante - ampliando e fortalecendo ações que, de alguma forma, possam combater o preconceito e a discriminação, no sentido de que não sejam permitidas quais quer formas de intolerância ou tratamento desigual, tanto dentro como fora da escola. Para enfrentar estes desafios, o sistema educativo português, no âmbito do Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular dos ensinos básico e secundário, concedeu às escolas, professores e alunos uma maior centralidade na gestão dos currículos (Despacho n.º 5908/2017, 2017). Neste particular foram ainda lançados vários documentos orientadores como o perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória (Martins et al., 2017), a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania e as Aprendizagens Essenciais (Monteiro et al., 2017), entre outros (Conselho Europeu, 2008; Convenção Sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, 2005), e que, conjuntamente com o trabalho desenvolvido9 pelos alunos nestes projetos kamishibai plurilingue, designadamente através da escrita colaborativa, nos remetem para uma área da cidadania, de valo res, aos quais acresce, ainda, a partilha de ideias e de opiniões, o que possibilita integrar todo um conjunto de princípios, áreas de conhecimento, competências e valores que capacitam os alunos para responder aos desafios complexos deste século, e fazer face às imprevisibilidades resultantes da evolução do conhecimento e da tecnologia (Martins et al., 2017; Monteiro et al., 2017; Tenreiro-Vieira & Vieira, 2000, 2013).
São por isso inúmeras as potencialidades da utilização do kamishibai plurilingue em espaços onde se possa processar o ensino/aprendizagem. Talvez mesmo uma das suas grandes virtuosidades - como forma de narrativa oral/visual - é que fornece uma oportunidade única para os alunos ampliarem qualquer pesquisa/leitura/tema em que estejam envolvidos, utilizando, para o efeito, as suas próprias palavras e ideias, para além de permitir: “o alargamento e enriquecimento das experiências visual e plástica dos alunos, contribuindo para o desenvolvimento da sensibilidade estética e artística, despertando, ao longo do processo de aprendizagem, o gosto pela apreciação e fruição das diferentes circunstâncias culturais” (Ministério da Educação, 2018, p. 1).
A consciencialização das crianças para o seu lugar no mundo e na história, utilizando o kamishibai plurilingue, pode, assim, permitir uma maior compreensão sobre a forma como este recurso pode impulsionar as aprendizagens e servir de mediador da diversidade linguística e cultural. É evidente que a escola tem aqui uma função essencial na promoção de atitudes e valores que constituem a base da formação cívica dos alunos - como contraponto ao preconceito e discriminação, já que “o kamishibai proporciona uma experiência rica e genuína, melhorando o bem-estar das crianças, trabalhando a motivação para aprender e promovendo uma entrada mais comprometida nas aprendizagens” (Faneca, 2019, p. 373) -, mas também de diversão, ao mesmo tempo que leva os alunos a tomar consciência da sua própria imaginação.
O presente trabalho procurou lançar um olhar atento sobre a eficácia da utilização do kamishibai plurilingue enquanto instrumento educativo - o seu impacto no processo de aprendizagem e ensino, no autodesenvolvimento das crianças, nas suas capacidades de comunicação e pensamento, mas, sobretudo, na aquisição de competências interculturais - como uma experiência edificante e positiva para todos (Paatela-Nieminen, 2008). Acreditamos que a exploração educativa do kamishibai plurilingue permite, seguramente, reforçar a pertinência e a visibilidade de uma educação aberta à diversidade de línguas e culturas.