A ciência impacta várias dimensões da vida humana. O desenvolvimento social e económico está intimamente interligado com a capacidade de incorporar avanços científicos. Em alguns casos, a afirmação de um processo de decisão política baseado na evidência científica, como se viu, por exemplo, durante a pandemia nas democracias europeias, mostrou a relevância crescente dos peritos na condução dos destinos da sociedade. Mesmo os momentos de lazer são crescentemente gozados em contextos tecnológicos facilitados pela ciência. As sociedades são hoje lugares mais ricos, mais confortáveis, mais seguros e mais diversos devido à ciência.
Sendo então inquestionável o papel que a ciência hoje tem no dia a dia dos cidadãos e na organização social, a sua imagem e posicionamento na sociedade enfrentam desafios contínuos que podem minar a confiança pública no sistema científico. Em alguns casos, o questionamento resulta de posições legítimas e preocupações reais sobre a questão dos riscos e da possível má utilização da ciência motivada por interesses. No entanto, há também a profícua proliferação de notícias falsas, de pseudociência e de estratégias de desinformação que tem vindo a colocar os investigadores, organizações científicas, decisores políticos e outros atores sociais em contínuo alerta. Este aparente paradoxo, o da crescente desconfiança face à ciência numa altura em que ela está presente em quase todos os domínios da vida humana, interpela todos mas, sobretudo, investigadores que trabalham as questões da comunicação de ciência e da relação desta com a sociedade.
O desenvolvimento de iniciativas promotoras de uma cultura científica entre os cidadãos e de um maior diálogo entre cientistas e instituições de ciência com a sociedade tem sido apresentado como o caminho para fortalecer o reconhecimento e a confiança pública na ciência. Neste domínio, e desde os primórdios do paradigma da “compreensão pública da ciência” e do modelo de “défice” (em que os cidadãos são vistos como meros receptores de informação científica) até ao paradigma do “envolvimento do público com a ciência” e “diálogo” (em que os cidadãos são vistos para parte integrante do processo de construção científica) percorreu-se um já longo caminho. Contudo, há que continuar a aprofundar a reflexão sobre o pensamento, as evidências e as experiências que têm vindo a propor um enriquecimento desta relação bilateral. É o caso da ciência cidadã e da ciência aberta, e das novas práticas que têm vindo a emergir nestes contextos, como importantes iniciativas que permitem este diálogo com os cidadãos.
É neste contexto que deve ser lido este número da Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC), que pretende motivar a reflexão e o enriquecimento do conhecimento sobre as novas práticas que permitem aprofundar a relação entre a ciência e a sociedade, abrindo o campo vasto do conhecimento à participação mais alargada dos cidadãos. A resposta dos autores a este convite traduziu-se, sobretudo, em contribuições que dizem respeito aos tópicos da ciência cidadã e, em menor grau, relacionados com a ciência aberta. A proposta de abordagens históricas e conceituais, assim como de experiências, nestes dois domínios é ainda acompanhada de trabalhos que abordam a questão da perceção pública sobre a ciência e as possibilidades de diálogos entre a sociedade e o empreendimento científico.
Nesta edição, destaca-se assim a consolidação do movimento da “ciência cidadã”, que resulta de diferentes formas de participação direta de cidadãos em projetos científicos. O conceito de “ciência cidadã”, cunhado nos anos 1990 por Alan Irwin (1995), evoluiu de forma a melhor incorporar as perspetivas participatórias que têm vindo a ganhar terreno nas últimas décadas. Se, inicialmente, o conceito remetia sobretudo para a ideia de uma cidadania científica, que se consubstanciava na necessidade de abrir a ciência e as políticas científicas ao público, houve desenvolvimentos já previstos mas pouco explorados na definição do sociólogo inglês. Assim, para além de defender que a ciência deveria responder às preocupações e às necessidades dos cidadãos, Irwin (1995) antecipava ainda a possibilidade de os cidadãos produzirem conhecimento científico fiável.
O conceito de “ciência cidadã” tem vindo a incorporar novas dimensões, nomeadamente a possibilidade de os cidadãos participarem não só da recolha de dados científicos, mas também na co-criação das próprias agendas de investigação e na discussão dos resultados e das suas implicações sociais. A democratização da ciência, neste contexto, passa por abrir a ciência a um maior envolvimento do público no próprio processo da investiga ção e não conhecê-lo somente após a sua conclusão. É, no fundo, convidar os cidadãos a entrar no empreendimento científico e não apenas deixá-lo observar por uma janela.
É claro que este não é um processo válido para todos os contextos e nem traz sempre e apenas benefícios inequívocos. A ciência cidadã é um movimento em construção, que procura ainda afirmação e reconhecimento nos mais diversos domínios da produção do conhecimento científico. Os projetos desenvolvidos sob esse enquadramento são, na grande maioria das vezes, de natureza local e os seus resultados não são de fácil aplicação a outros contextos. Ainda que haja maior aceitação desta prática, persistem por vezes dúvidas sobre a validação do conhecimento produzido nestas circunstâncias, nomeada- mente da parte dos editores e revisores das publicações científicas (Bonney et al., 2014). As contribuições para o debate trazidas por este número da RLEC dão pistas sobre as condições de efetiva participação dos cidadãos na produção de conhecimento científico.
Haverá muito ainda para explorar no que diz respeito à ciência cidadã - às suas potencialidades, mas também limitações - mas este número mostra que este conceito caminha para a sua consolidação.
São também trazidas neste número contribuições para o debate sobre o movimento “ciência aberta”. Este movimento designa os vários esforços que visam colocar a investigação científica (incluindo publicações, dados e amostras físicas) e o seu acesso ao alcance de todos os grupos da sociedade, leigos ou peritos. Numa das primeiras reflexões sobre o tópico, Chubin (1985) descreve o processo de participação, neste contexto, como sendo uma oportunidade de apropriação e avaliação de novos conhecimentos por parte das partes interessadas, aqui incluindo os cientistas da área em causa, mas também outros investigadores e não-cientistas.
O movimento tem vindo a ganhar apoio em várias partes do mundo e a vários níveis, científico e político, traduzido, por exemplo, no aumento de revistas científicas de acesso livre, na disponibilização de bases de dados e no crescimento de repositórios institucionais com conhecimento aberto à sociedade. O reforço das políticas de ciência aberta a nível internacional veio recentemente pela mão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura que, em novembro de 2021, aprovou uma recomendação sobre ciência aberta (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 2020), apelando aos estados-membros que desenvolvam políticas e incentivos nesta matéria.
Ambos estes movimentos procuram aprofundar, a vários níveis, a relação de públicos não-especializados com ciência, enquanto empreendimento social de produção de conhecimento com as suas oportunidades, mas também limitações. Importa refletir sobre estes novos contextos de envolvimento do público e sobre as suas potencialidades no desenvolvimento da cultura científica, ao mesmo tempo que temáticas mais consolidadas como a perceção pública da ciência e os contextos que promovem o diálogo entre a sociedade e os cientistas continuam a merecer a nossa atenção. Os artigos nesta edição da RLEC aprofundam estas questões refletindo sobre a comunicação de proximidade e o seu papel no envolvimento público.
Assim, este número da RLEC apresenta um artigo de Toss Gascoigne, Jenni Metcalfe e Michelle Riedlinger, no qual os autores propõem um modelo de análise para o exercício de poder dos cidadãos em contexto de ciência cidadã, baseado no modelo da escada da participação proposto por Arnstein (1969). Ao analisar as diferentes formas possíveis de participação dos cidadãos em projetos de ciência cidadã, os autores assinalam que existe espaço para diferentes tipos de comunicação de ciência em função da sua adequação aos diferentes contextos sociais.
Também a contribuição de Cristina Luís se debruça sobre as diferentes expressões da ciência cidadã, propondo uma viagem pelo tempo e pelos diferentes projetos que a implementaram em Portugal. Esta revisitação histórica permite um melhor conhecimento do espaço e do papel da ciência cidadã nos últimos séculos, ao mesmo tempo que o mapeamento das experiências identifica as áreas científicas onde o movimento já está mais consolidado.
O trabalho de Elaine Santana, Rosa Silva, Ana Filipa Cardoso, Filipa Ventura, Joana Bernardo e João Apóstolo procura investigar práticas concretas de ciência aberta, propondo-se analisar de que forma as principais instituições científicas internacionais no campo da saúde envolvem os cidadãos nas suas plataformas digitais de comunicação de ciência. Identificando as várias estratégias desenvolvidas, este artigo evidencia alguma inovação no campo.
Focando o seu olhar na cidade do Rio de Janeiro e nos públicos, o artigo de Ione Maria Mendes, Luisa Massarani e Yurij Castelfranchi aborda as problemáticas da apropriação social e uso do conhecimento tecnocientífico por parte dos jovens adultos. Evidenciando que estes apresentaram uma visão positiva da ciência e tecnologia, reconhecendo seus benefícios e riscos, o estudo aponta para as possibilidades existentes para o estabelecimento de diálogos e de processos comunicacionais entre a ciência e esta comunidade que cresceu com a internet.
Também procurando compreender o campo do diálogo entre a ciência a sociedade, a partir da identificação dos públicos, Claudia Irene Quadros, Regiane Regina Ribeiro, Chirlei Diana Kohls e Patricia Goedert Melo apresentam a experiência de uma agência da Universidade Federal do Paraná. No âmbito do projeto Pergunte aos Cientistas, os cidadãos foram convidados a colocar dúvidas à comunidade científica, mediados pelo serviço da agência, o que permitiu aprofundar a aproximação entre a sociedade e os cientistas.
Voltando ao domínio da ciência cidadã, Rafael Vitame Kauano e Alessandra Fernandes Bizerra propõem uma ponte entre a concetualização da ciência cidadã e as teorias da aprendizagem situada, propostas por Lave e Wenger (1991), baseada na experiência concreta de uma comunidade local. Olhando para as questões da biodiversidade a partir do problema das invasões biológicas, os autores avaliam a atuação dos catadores como uma prática sociocientífica que amplifica os processos de aprendizagem sobre questões relacionadas com as invasões biológicas, deste modo aproximando a comunidade da ciência.
Este número termina com o artigo de Evelin Gabriella Hargitai, Attila Sik, Alexandra Samoczi e Milan Hathazi, onde se apresenta uma nova experiência no âmbito da ciência cidadã, que assenta no pressuposto de que é possível estabelecer relações mais recíprocas entre cidadãos e instituições científicas. O estudo expõe os desafios metodológicos presentes na mentoria de projetos de ciência cidadã, ao mesmo que evidencia as possíveis vantagens que este processo traz para a comunidade científica.