1. Introdução
Quando falamos da relação entre ciência e sociedade, o crescente interesse por iniciativas orientadas para o envolvimento do público na atividade científica tem sido notório ao longo das últimas décadas, o que consubstancia uma mudança face à anterior ênfase dada, maioritariamente, às questões da compreensão da ciência pelo público. O conceito da ciência aberta, por exemplo, assume cada vez mais destaque na atualidade, principalmente no panorama europeu. Veja-se, a título de exemplo, a importância dada pela Comissão Europeia à implementação da ciência aberta no âmbito do programa-quadro comunitário de investigação e inovação, Horizonte 2020 (em ação entre 2014 e 2020; European Commission, s.d.), no qual se promove o envolvimento dos cidadãos nas decisões sobre ciência e tecnologia com o intuito de melhor alinhar os objetivos, os processos e os resultados da investigação e inovação com os valores, necessidades e expectativas da sociedade.
No contexto de ciência aberta, insere-se o movimento conhecido como “ciência cidadã”, que tem assumido grande protagonismo ao longo das últimas 2 décadas.
Neste trabalho pretende-se apresentar uma panorâmica geral sobre o que é a ciência cidadã, com um breve apanhado sobre o passado e presente em Portugal, dando particular destaque a práticas de ciência cidadã na área da biodiversidade, abordando-se ainda alguns exemplos de dinâmicas de envolvimento utilizadas ao longo do tempo. Serão igualmente apresentadas sugestões de estudos futuros que permitam perceber de que forma poderá ser melhorado o envolvimento da sociedade nesta prática de modo que a ciência se torne efetivamente mais aberta à sociedade.
2. O que é a Ciência Cidadã?
Não existe uma definição única e consistente para o conceito de ciência cidadã, por se tratar de uma prática que assume múltiplas vertentes. O termo tornou-se conhecido nos anos 90 do século XX, através de duas direções epistemológicas diferentes: a de Alan Irwin (1995) e a de Rick Bonney (1996, como citado em Bonney et al., 2009). Enquanto Irwin (1995) define a ciência cidadã como uma abordagem para apoiar uma ciência mais democrática e participativa, desenvolvendo conceitos de cidadania científica e salientando a necessidade de abrir ao público os processos de política científica, Bonney descreve-a principalmente como uma ferramenta utilizada por cientistas profissionais na qual os cidadãos voluntários contribuem para a ciência através da recolha de dados. Mais tarde, no livro branco sobre a ciência cidadã na Europa, o termo é definido como “o envolvimento do público em geral em atividades de investigação científica nas quais contribui ativamente para a ciência, com o seu esforço intelectual, com os seus conhecimentos ou com as suas ferramentas e recursos” (Serrano-Sanz et al., 2014, p. 8). Na prática, a ciência cidadã consiste essencialmente numa abordagem para responder a questões-chave da investigação através do envolvimento voluntário de cidadãos nas várias etapas do processo científico, desde o desenho de projetos de investigação (através da definição das questões de investigação) até à disseminação dos principais resultados e conclusões, passando pela recolha, interpretação e discussão de resultados.
Na prática, a ciência cidadã consiste essencialmente numa abordagem para responder a questões-chave da investigação através do envolvimento voluntário de cidadãos nas várias etapas do processo científico, desde o desenho de projetos de investigação (através da definição das questões de investigação) até à disseminação dos principais resultados e conclusões, passando pela recolha, interpretação e discussão de resultados.
Os projetos de ciência cidadã são concebidos de múltiplas formas, pelo que há um esforço para os categorizar. Por exemplo, Wiggins e Crowstone (2011) criaram uma categorização de acordo com os objetivos do projeto, o tipo de atividade e a utilização de tecnologia, no entanto, a maioria dos autores divide as tipologias de projetos de acordo com o grau de envolvimento e o tipo de tarefas científicas realizadas pelos voluntários que participam no projeto (e.g., Bonney et al., 2009; Haklay, 2013). Neste tipo de classificação com base no tipo de envolvimento voluntário, os projetos podem classificar-se de acordo com os seguintes tipos: contributivos (geralmente desenhados por cientistas e nos quais o público em geral contribui com dados), colaborativos (geralmente desenhados por cientistas e nos quais os membros do público contribuem com dados, mas também ajudam a aperfeiçoar o desenho do projeto, a analisar dados ou a disseminar resultados) e cocriados (desenhados em conjunto por cientistas e membros do público em geral e nos quais alguns elementos do público estão ativamente envolvidos na maioria ou em todos os passos do processo científico). Num trabalho de 2012 (Shirk et al., 2012), foram acrescentadas mais duas categorias de projetos, que, no entanto, não são muitas vezes mencionadas: contratuais (nos quais as comunidades pedem a cientistas para conduzir uma investigação científica específica e relatam os resultados) e colegiais (aqueles em que cidadãos realizam investigação que cria conhecimento científico de forma independente da comunidade científica).
A ciência cidadã assume, assim, diversas facetas, entre as quais o levantamento de novas questões de investigação e a cocriação de novos conhecimentos científicos. Os participantes voluntários adquirem novos saberes e competências, e uma compreensão mais profunda do trabalho científico, o que permite novas formas de cultura científica. Neste cenário colaborativo e transdisciplinar, interessa, pois, perceber como melhorar as interações entre ciência e sociedade de modo a permitir uma investigação mais aberta e participativa.
3. Envolvimento em Práticas de Ciência Cidadã
Um dos principais desafios na ciência cidadã relaciona-se com tentar perceber o que motiva o envolvimento público na ciência cidadã e de que modo esse envolvimento pode ser mantido ao longo do tempo. Não é, no entanto, uma tarefa fácil. Em estudos como os Raddick et al. (2010) ou Rotman et al. (2012), só para citar alguns exemplos, identificam-se categorias e fatores de motivação para contribuir para um projeto. Já Nov et al. (2014), por exemplo, exploram a motivação como fator de base quer para a quantidade quer para a qualidade da contribuição em projetos de ciência cidadã e West et al. (2021) apresentam uma interessante revisão de literatura sobre participação voluntária na ciência cidadã.
Verifica-se, de uma forma geral, que tanto os motivos para o próprio como os motivos mais altruístas são frequentemente importantes para os participantes (Kragh, 2016). Os motivos para o próprio podem incluir: interesse pessoal no tópico em investigação, por exemplo, interesse por estruturas químicas, biodiversidade ou ambiente; desejo de aprender mais sobre o tópico; ou desejo de descobrir algo novo como, por exemplo novas espécies ou novas galáxias. A depender do tipo de projeto e da forma de participação, outros motivos para o próprio podem ainda estar presentes. Por exemplo, a participação pode proporcionar oportunidades de entretenimento ou de passar tempo na natureza, isto no caso dos participantes em projetos de teor mais ambiental. Motivações relacionadas com a prossecução de uma carreira profissional, tais como ações de voluntariado para ganhar experiência a incluir no currículo ou a oportunidade de colaborar com uma instituição na qual se deseje trabalhar, raramente são mencionadas, e quando o são referem-se a respostas de estudantes ou jovens (Johnson et al., 2014). Como se pode verificar, muitos dos participantes em projetos de ciência cidadã têm motivos próprios para se envolverem nos projetos, no entanto, os motivos altruístas são, em muitos casos, ainda mais importantes do que os motivos próprios. Um motivo altruísta importante para os participantes em projetos de ciência cidadã é o desejo de contribuir para a ciência, um motivo que é único para a ciência cidadã e que a distingue de outras oportunidades de participação voluntária. Outros motivos altruístas, como o de estar a contribuir para uma causa ou pela sensação de que é importante ajudar, também são significativos para muitos. Os participantes em projetos de ciência cidadã em áreas relacionadas com o ambiente, como é o caso da monitorização da biodiversidade, são frequentemente motivados altruisticamente a participar pois estão preocupados com o ambiente e sentem que é importante ajudar nos esforços de conservação. Mas será que os motivos para participar num projeto de ciência cidadã foram sempre iguais ao longo da história desta prática?
4. A Importância de Estudar o Passado da Ciência Cidadã
Graças à proliferação, nos últimos anos, de projetos de ciência cidadã em vários países esta prática é muitas vezes referida como sendo recente. No entanto, o envolvimento de cidadãos sem formação especializada na ciência está longe de ser um fenómeno novo. A história da ciência revela diversos exemplos que mostram que os primeiros dados científicos modernos terão sido, em grande parte, obtidos por amadores, nomeadamente membros do clero ou aristocratas, que dispunham de tempo e meios financeiros para se dedicarem à recolha de informação sobre o mundo natural (Silvertown, 2009). Na realidade, importa não perder de vista que a própria ascensão da ciência como profissão é um fenómeno relativamente recente. O termo “cientista” é apenas cunhado na primeira metade do século XIX1 e só décadas mais tarde (ou, em muitos países, já ao longo do século XX) é que se assiste a uma efetiva profissionalização da atividade científica (Haklay, 2013; Vetter, 2011). De igual modo, o envolvimento do público não especializado em iniciativas de larga escala com o intuito de recolher dados científicos tem também uma longa história. Há centenas de anos que grupos de pessoas sem formação científica específica fazem observações e registos sobre o mundo natural, incluindo a recolha de informação sobre distribuição de espécies de animais e plantas, a recolha de dados meteorológicos e observações de fenómenos astronómicos, registos esses que são, muitas vezes, centralizados por associações ou entidades governamentais (e.g., Carolino & Simões, 2011; MacGregor, 2018; Roy et al., 2014). Assim, estudar a história da ciência cidadã não só ajuda a compreender de que forma esta prática foi tomando diferentes contornos ao longo do tempo, como também ajuda a compreender de que modo a relação entre ciência e sociedade se desenvolveu e o que foi motivando o envolvimento da sociedade na ciência.
Uma das áreas para as quais mais exemplos existem de participação pública na ciência tem que ver com o registo da biodiversidade. Durante séculos, inúmeras pessoas têm demonstrado motivação e interesse em identificar e documentar a ocorrência de animais e plantas, ou seja, em registar dados biológicos. Um registo biológico é, essencialmente, um ponto num mapa que mostra que uma determinada espécie ou organismo foi encontrado naquele local, numa determinada data. No entanto, e apesar desta simplicidade, efetuar um registo biológico é uma atividade incrivelmente diversificada que tem envolvido, durante séculos, milhares de pessoas em todo o mundo. Existe uma longa tradição de naturalistas amadores que recolhem espécimes, registando as suas observações em periódicos, e tornando-se especialistas em habitats ou taxa específicos desde o século XVII (Miller-Rushing et al., 2012). Alguns levantamentos efetuados apontam para tradições históricas relativamente à recolha sistemática de observações e informação pela sociedade, incluindo registos milenares que documentam fenómenos naturais ao longo do tempo. A contagem de aves do Natal (Christmas Bird Count) da sociedade Audubon, com início em 1900 e que hoje em dia continua a decorrer anualmente em centenas de locais nos Estados Unidos e Canadá, é normalmente apontada como uma das primeiras iniciativas deste género (Dunn et al., 2005). Existem, contudo, outros exemplos. Na China, tanto cidadãos como funcionários registam surtos de gafanhotos há, pelo menos, 3.500 anos (Tian et al., 2011), enquanto em Kyoto, no Japão, encontramos registos da entrada em flor das cerejeiras há mais de 1.000 anos (Aono & Kazui, 2008).
Embora a longa história de envolvimento voluntário no registo biológico seja amplamente reconhecida como tendo desempenhado um papel crítico na ciência e na tomada de decisões, ela é desconhecida em muitos países. Assim, interessa tentar perceber o tipo de apelos feitos à participação da sociedade e, se possível, o que a motivou a participar.
5. Alguns Exemplos do Passado da Ciência Cidadã em Portugal
Exemplos históricos de envolvimento voluntário no registo biológico, apesar de não parecerem ser muito frequentes, existem em Portugal, como é o caso de aristocratas com gosto pela observação da natureza que, no seu tempo livre, contribuíram para o registo da biodiversidade (Felismino, 2016), ou outros que, para além dos seus deveres de governação, dedicaram algum do seu tempo livre à história natural (Sousa, 1861). Contudo, nunca foi realizado um estudo aprofundado sobre a história da ciência cidadã em Portugal, não tendo sido traçada, de forma sistemática, a história das práticas amadoras de monitorização da biodiversidade. Revelar a história do registo biológico em Portugal, é, de certa forma, o mesmo que contar a história da ciência cidadã na área da monitorização da biodiversidade, revelando como as comunidades de naturalistas amadores foram formadas e evoluíram ao longo dos séculos XIX e XX, de modo a compreender quando e como o público foi chamado a envolver-se e participar nas práticas de monitorização da biodiversidade. Contar esta história é pois da maior importância para ajudar a explicar porque é que a ciência cidadã e as práticas de monitorização da biodiversidade por não-peritos são ainda residuais em Portugal quando comparadas com o que acontece noutros países. Ou seja, olhar para os exemplos do passado pode ajudar a perceber a razão para o ainda reduzido envolvimento e motivação para participar em projetos de ciência cidadã no presente e ajudar a potenciar a participação no futuro.
Para ajudar a reconstruir alguma da história da ciência cidadã em Portugal, encontra-se em desenvolvimento um estudo que pretende examinar a rede de colaboradores voluntários no registo da biodiversidade animal e a forma como a informação circulou entre colecionadores, naturalistas amadores e naturalistas especializados. Nesta fase de levantamento dos arquivos históricos, está a ser dada particular atenção aos catálogos e publicações que se encontram no Museu Nacional de História Natural e Ciência, agora parte da Universidade de Lisboa. A documentação disponível naquele museu fornece, entre outros dados importantes tais como instruções para a recolha de dados, informações sobre os coletores dos espécimes. Adicionalmente permite verificar que tipo de apelos eram feitos à participação no registo biológico e inferir que motivações estariam por detrás da participação de alguns membros da sociedade.
José Vicente Barbosa du Bocage (1823–1907), diretor, desde 1858, do Museu de Lisboa (a instituição que deu origem ao atual Museu Nacional de História Natural e Ciência), publicou, em 1862, as Instrucções Praticas Sobre o Modo de Colligir, Preparar e Remetter Productos Zoologicos Para o Museu de Lisboa (Bocage, 1862). Com esta publicação, o diretor do museu apelou à colaboração de indivíduos para ajudar a expandir as suas coleções zoológicas. Bocage (1862) menciona que:
Portugal é hoje o menos conhecido e explorado de todos os paizes da Europa; da sua Fauna apenas se conhecem mui poucos e raros fragmentos; nos museus mais ricos e completos, nas melhores collecções de particulares mal se avista um ou outro specimen colhido no nosso solo; mesmo o nosso antigo museu era n’este ponto um dos menos favorecidos. É tempo, cremos nós, de fazer cessar esta vergonha, que denuncia mais do que tudo aos estrangeiros o nosso atraso e obscurantismo é tempo de estudar por nós mesmos o que é nosso, e de coligir pela forma que a sciencia prescreve os documentos que devem servir de base á historia das producçôes naturaes do nosso paiz. (p. 8)
O diretor refere que teria acabado por abandonar o projeto de expandir as coleções do museu se não esperasse muito da ajuda que uma grande parte dos seus concidadãos poderia dar. Foi, portanto, àqueles que desejam ajudar o museu que ele dirigiu as instruções. É muito interessante a forma como este documento aborda a população em geral e apela à colaboração de todos os interessados na recolha de espécimes zoológicos, ign rando qualquer experiência anterior como naturalista amador:
para colligir os productos naturaes da localidade onde se reside; para en treter os ócios da vida do campo com occupações que fazem correr ligeiras as horas e elevam a intelligencia; para estudar a natureza, e procurar comprehender a grande obra da creação soletrando alguma das paginas da sua historia,—não é mister ser naturalista de profissão, nem sábio diplomado por universidades e academias. Para começar bastam algumas indicações sobre o modo por que se devem procurar e preparar os objectos que se pretende colligir; depois a repetição das excursões e pesquisas, a experiência de cada dia, os ensaios e observações próprias desenvolverão aptidões, diremos quasi instinctos, de verdadeiro naturalista. (Bocage, 1862, p. 9)
Esta passagem de Instrucções Praticas Sobre o Modo de Colligir, Preparar e Remetter Productos Zoologicos Para o Museu de Lisboa (Bocage, 1862) é um testemunho daquilo a que poderíamos chamar um apelo do século XIX para todos se tornarem cientistas cidadãos.
A estratégia utilizada para encorajar a população a participar inclui tanto a ideia de reconhecimento,
fora do mesmo quadro official dos empregados do estado, contámos que outras pessoas, que visitem o ultramar ou lá residam permanentemente, (... ) não se negarão também a contribuir com os donativos que poderem alcançar, e que recordarão seus nomes ao reconhecimento publico. (Bocage, 1862, p. 11)
Como a ideia de contribuir para o avanço do país,
nas galerias dos museus da Europa avultam os donativos de homens estranhos á sciencia, mas não indifferentes á prosperidade e adiantamento intellectual do seu paiz. Não acreditámos que sejam hoje apanágio exclusivo de outros povos ás qualidades e sentimentos que n’outras eras e sob a influencia de outras idéas nos fizeram grandes e nos collocaram á frente da civilisação do mundo. (Bocage, 1862, p. 11)
É interessante notar o uso do reconhecimento como uma das formas de atrair e motivar a participação, técnica que atualmente é também utilizada pelas práticas de ciência cidadã. De facto, e embora alguns dos nomes que contribuíram com espécimes permaneçam desconhecidos por não ser possível encontrar informação sobre quem são, a verdade é que o reconhecimento da sua contribuição se encontra associada, para sempre, aos registos biológicos do museu.
Os bons resultados da estratégia estabelecida por Bocage podem, de alguma forma, ser inferidos a partir de um relatório por ele publicado em 1865 (Bocage, 1865). Recebeu espécimes de cerca de 24 colaboradores de diferentes partes do país. A região com mais colaboradores foi Coimbra. Esses colaboradores estudavam ou ensinavam na universidade, sendo, em alguns casos, jovens que se esforçavam por ter uma carreira académica.
A segunda região com mais colaboradores era Setúbal, uma cidade costeira tradicionalmente ligada à pesca e com um importante porto marítimo (Gamito-Marques, 2018).
É interessante notar que, com exceção dos colaboradores de Coimbra, que prosseguiam ativamente uma carreira académica, aqueles que contribuíram com exemplares para o mu seu não possuíam uma ocupação científica principal, sendo interessante no futuro tentar aprofundar as razões e motivações que levaram à sua participação e envolvimento.
Além da análise da documentação mencionada encontram-se também a ser analisadas publicações antigas que fornecem exemplos de apelos feitos por académicos à contribuição da população para a ciência, não só através do registo biológico, mas também através de contributos mais alargados como, por exemplo, a correção de imprecisões.
No livro de 1896 sobre as aves da Península Ibérica (Paulino d’Oliveira, 1896), uma das obras clássicas da ornitologia portuguesa, Manuel Paulino d’Oliveira (1837–1899), professor da Universidade de Coimbra e diretor do respetivo museu, inclui a seguinte passagem:
se os caçadores tomarem nota de qualquer falta ou inexactidão que encontrem no presente trabalho, em vista das observações que forem fazendo e aproveitarem para as suas col. [coleções] ou mandarem para os museus as esp. [espécies] novas ou r. [raras] que encontrarem, a caça tornar-se-há para elles mais attrahente e prestarão grande auxilio aos futuros ornithologistas. (p. 126)
Hoje em dia, alguns projetos de ciência cidadã em Portugal procuram descobrir formas de envolver caçadores e pescadores na monitorização da biodiversidade, pelo que é interessante trazer à luz os resultados do envolvimento destas comunidades no passado para que as comunidades de hoje sintam um maior ímpeto para contribuir para o desenvolvimento científico.
6. O Presente da Ciência Cidadã em Portugal
Como vimos pelos exemplos anteriores, a ciência cidadã em Portugal está longe de ser uma prática nova, no entanto, tem ainda pouca projeção comparativamente com o que acontece noutros países. Começou, no entanto, a ganhar um maior ímpeto no decorrer da última década.
No caso português, como porventura em muitos outros contextos nacionais, é importante organizar e congregar esforços em torno da comunidade que promove já iniciativas de ciência cidadã, bem como, criar um plano mais alargado para divulgar o potencial da ciência cidadã, quer para um maior e mais rápido avanço na investigação científica, quer ainda para uma maior aproximação entre ciência e sociedade em geral. Um primeiro passo foi dado em 2017 com a organização do primeiro “Encontro Nacional de Ciência Cidadã”, promovido pela, então, Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Neste primeiro encontro procurou reunir-se pela primeira vez as comunidades envolvidas em iniciativas de ciência cidadã em Portugal de forma a evidenciar experiências, percursos e exemplos de ações neste âmbito, bem como iniciar o debate para a criação de uma estratégia nacional para a ciência cidadã. Em 2019 realizou-se o “2.º Encontro Nacional de Ciência Cidadã”, promovido por um conjunto de várias instituições nacionais, e que, além de pretender reunir todos os envolvidos em iniciativas de ciência cidadã e todos os interessados em saber mais sobre esta temática, de dentro e fora da academia, pretendeu também discutir a constituição de uma rede de ciência cidadã em Portugal e a criação de um portal nacional de divulgação e agregação de projetos e iniciativas nesta área. Apesar de, à data, ainda não estar formalizada foi, entretanto, criada a Rede Portuguesa de Ciência Cidadã (CC.pt) que reúne regularmente com todos os membros interessados na temática, de dentro e fora da academia, e possui grupos de trabalho em funcionamento. Em 2021, a rede CC.pt promoveu o “3.º Encontro Nacional de Ciência Cidadã” cujo mote foi “construir pontes para uma ciência participada” e encontra-se a preparar o lançamento de uma plataforma na qual será possível visualizar os projetos e iniciativas de ciência cidadã a decorrer em Portugal.
Uma das tarefas também em desenvolvimento por parte da rede é o mapeamento das iniciativas de ciência cidadã em curso em Portugal. No entanto, num levantamento não exaustivo efetuado em 2015 (ver informação mais detalhada em Conceição & Luís, 2021) e melhorado em 2019 (Piland et al., 2020), é possível perceber que em Portugal os projetos de ciência cidadã obedecem a um padrão global, ou seja, são maioritariamente contributivos e nas áreas do ambiente e biodiversidade (e.g., BioDiversity4All, Invasoras. pt, GelAvista, Lixo Marinho), com alguns exemplos na área da saúde (e.g., Gripenet, MosquitoWeb) e da astronomia (e.g., Sun4All, Caçadores de Asteroides; ver Tabela 1). Nas áreas das humanidades e ciências sociais também surgem alguns projetos (e.g., Memória para Todos, Histórias de Vida, Novos Decisores Ciências), no entanto, em número menor do que nas restantes áreas. É de realçar que uma parte dos projetos decorrem da colaboração com plataformas internacionais (e.g., Biodiversity4All, Portugal Aves, Gripenet), sendo ainda de referir o facto de alguns projetos se dirigirem particularmente ao público escolar (e.g., Caçadores de Asteroides, MEDEA, EduMar). Ao permitir o envolvimento dos alunos em atividades de investigação científica, este tipo de experiências familiariza-os com os procedimentos típicos da produção de ciência, contribuindo, ao mesmo tempo, com dados para o avanço do conhecimento científico. De destacar também o surgimento em Portugal, ainda que muito residual, de iniciativas de ciência cidadã com origem na sociedade civil ou em instituições públicas à margem da ciência em sentido estrito. Exemplo disso é o projeto Histórias de Vida, lançado pelas bibliotecas municipais de Oeiras com o objetivo de recolher e registar histórias de pessoas da comunidade nasci- das antes de 1955 e cruzá-las com a história local.
Os projetos de ciência cidadã a decorrer em Portugal (dos quais aqui se deram somente alguns exemplos) têm aumentado a cada ano, à medida que esta prática se vai tornando cada vez mais conhecida. Muito haverá, contudo, ainda a fazer no que respeita ao estudo sobre a implementação e evolução da ciência cidadã em Portugal.
Num inquérito efetuado no final de 2016 junto da comunidade científica portuguesa, do qual alguns resultados foram já preliminarmente reportados em Luís et al. (2018), confirmou-se algum desconhecimento por parte dos investigadores quanto ao que é a ciência cidadã ou quais as suas potencialidades. Embora o termo já não seja totalmente desconhecido de muitos investigadores, a maioria entende-o mais em linha com o movimento de compreensão pública da ciência, do que propriamente como uma efetiva participação pública na investigação científica. Numa fase em que a ciência cidadã começa a ganhar maior destaque a nível internacional, mas também a nível nacional, e em que se tenta cada vez mais perspetivar o futuro da ciência cidadã, interessa, pois, perceber, quais as perspetivas da comunidade científica sobre esta prática e quais as motivações subjacentes à criação deste tipo de projetos por parte daqueles que têm, em desenvolvimento, projetos que contam com a participação da sociedade civil. Igualmente, e dado o potencial deste envolvimento dos cidadãos na investigação científica, interessa também perceber qual o verdadeiro potencial de envolvimento público que estes projetos possibilitam e o que motiva a sociedade a envolver-se.
7. O Futuro da Ciência Cidadã em Portugal
Falando no caso português, não existem muitos trabalhos sobre as motivações para a participação em projetos de ciência cidadã, no entanto, refira-se, a título de exemplo, o estudo realizado por Tiago et al. (2017), sobre a influência de fatores motivacionais na frequência da participação em atividades de ciência cidadã. Este estudo foi efetuado com base na análise de um questionário online aos participantes na maior plataforma de registo da biodiversidade existente em Portugal, a plataforma BioDiversity4All. Os resultados indicam que trabalhar nas questões de envolvimento dos participantes em iniciativas de ciência cidadã é fundamental para aumentar e manter a sua participação. Se, para o recrutamento inicial, principalmente em países com baixa cultura de participação como é o caso de Portugal, podem ser necessários mecanismos de motivação externa, para garantir níveis mais elevados de participação, a longo prazo, os projetos de ciência cidadã devem fomentar motivações intrínsecas que podem ser feitas através da incorporação nos projetos de experiências de relacionamento, reforço de capacidades, feedback positivo e modelos adaptados de participação.
Compreender o que motiva a participação voluntária da sociedade em projetos ciência cidadã é, assim, fundamental para encorajar o seu maior envolvimento e manter a sustentabilidade destes projetos a longo prazo. Os participantes têm diversas motivações, e pessoas de diferentes grupos demográficos terão, certamente, diferentes motivações. Uma compreensão de como as motivações diferem entre grupos é, pois, importante para que a implementação de ações de ciência cidadã possa melhor envolver as comunidades com quem trabalham. Para tal é necessária mais investigação de modo a melhor compreender as diferentes motivações dos participantes, acompanhar o modo como as motivações mudam ao longo do processo de participação e melhorar o envolvimento da sociedade no processo científico.
8. Considerações Finais
Muito tem mudado ao longo tempo no que toca à aproximação entre ciência e sociedade, e Portugal não é exceção. Os projetos de ciência cidadã, não constituindo necessariamente uma novidade como se viu pelos exemplos apresentados, são um dos mais interessantes desenvolvimentos neste movimento de aproximação, nomeadamente por configurarem uma abordagem assente numa mais ativa participação dos cidadãos na prática científica e, em última análise, na exploração de novas formas de cocriação de conhecimento científico, num processo partilhado entre cientistas e não-cientistas.
Em Portugal, as experiências de ciência cidadã estão em crescendo e apesar de ainda adotarem um modelo essencialmente contributivo espera-se que dado o seu enorme potencial de envolvimento da sociedade passem a adotar um caráter mais colaborativo. Adicionalmente, para que no futuro esta prática possa, efetivamente, tomar características mais colaborativas e envolver cada vez mais membros da sociedade, interessa desenvolver estudos para melhor perceber o que motiva a participação de não cientistas na ciência, abrindo portas a uma ciência que se quer cada vez mais aberta e partilhada.