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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.10 no.1 Braga jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.4257 

Artigos Temáticos

Mediação Artística e Cultural: Que Perfil Profissional?

Cristina Barroso Cruzi  ii  iii  , Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0002-3544-0298

Laurence Vohlgemuthiii  , Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-8374-9356

i Centro Interdisciplinar de Estudos Educacionais, Escola Superior de Educação de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, Portugal

ii Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano, Universidade do Algarve, Faro, Portugal

iii Centro de Humanidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo

A emergência de um novo grupo profissional para responder aos desafios colocados pela mudança do papel e do lugar dos artistas e das artes nas sociedades atuais, bem como da relação entre o(s) público(s) e as diversas manifestações artísticas e culturais, levou-nos a tentar (a) compreender como alguns potenciais empregadores, formadores e graduados veem o papel do mediador artístico e cultural; (b) identificar a(s) definição(ões) que propõe(m) de mediação artística e cultural; e (c) identificar os conhecimentos e competências que consideram necessários para este exercício profissional. Uma breve revisão da literatura (Arnaud, 2018; Henry, 2014; Lussier, 2015; Mörsch & Holland, 2012) traz contribuições para uma melhor definição do conceito de mediação artística e cultural que concilia as lógicas da democratização da cultura e da democracia cultural, destacando, entre outras coisas, as finalidades que podem ser prosseguidas. Ancorado num contexto específico da licenciatura em mediação artística e cultural da Escola Superior de Educação de Lisboa, foram realizados grupos de discussão com diplomados, docentes e profissionais cooperantes que enquadram os estagiários desta licenciatura. Os inquiridos apresentam definições da mediação artística e cultural com dimensões educativa, social, cultural, investigativa, política e económica e um largo conjunto de conhecimentos e competências necessários para uma intervenção nessa área assim como uma multiplicidade de funções exercidas. Concluímos com a importância de continuar a investigação no sentido de melhor circunscrever um domínio de conhecimento específico e o campo de intervenção como conceptual para a mediação artística e cultural.

Palavras-chave: mediação artística e cultural; perfil profissional; cidadania; democracia cultural; democratização da cultura

Abstract

The emergence of a new professional group to meet the challenges posed by the changing role and place of artists and arts in current societies, as well as the relationship between the public(s) and the various artistic and cultural manifestations, has prompted us to try to (a) understand how some potential employers, trainers and graduates see the role of the artistic and cultural mediator; (b) identify the definition(s) they propose of artistic and cultural mediation; and (c) identify the knowledge and skills they consider necessary for this professional exercise. A brief literature review (Arnaud, 2018; Henry, 2014; Lussier, 2015; Mörsch & Holland, 2012) contributes to a better definition of the concept of artistic and cultural mediation that reconciles the rationales of the democratisation of culture and cultural democracy, highlighting, among other things, the purposes that can be pursued. Drawing on a specific context of the degree in artistic and cultural mediation of the Lisbon School of Education, graduates, teachers and cooperating professionals who supervise the trainees of this degree were engaged in focus groups. The respondents provide definitions of artistic and cultural mediation with educational, social, cultural, investigative, political and economic dimensions, a wide range of knowledge and skills necessary for an intervention in this area, and various roles played. We conclude with the importance of pursuing research to better circumscribe a domain of specific knowledge and the field of intervention as conceptual for artistic and cultural mediation.

Keywords: artistic and cultural mediation; professional profile; citizenship; cultural democracy; democratisation of culture

1. Introdução

Perante a mudança do papel e do lugar dos artistas e das artes nas sociedades atuais, bem como da relação entre o(s) público(s) e as diversas manifestações artísticas e culturais, para responder à necessidade de novos profissionais capazes de desenvolver uma nova função de mediação artística e cultural, em 2016, na intersecção dos campos das artes e das ciências sociais, iniciou-se a licenciatura em mediação artística e cultural (LMAC) na Escola Superior de Educação de Lisboa.

Esta licenciatura é essencialmente inspirada no conceito francês de “mediação cultural” que combina a democratização da cultura e a democracia cultural. Visa formar profissionais capazes de estabelecer uma relação entre os produtores culturais, todos os profissionais da área das artes, os artistas e os cidadãos que formam o que são denominados “públicos”, desenvolvendo estratégias de trabalho em territórios híbridos, que combinam características distintas, mas complementares, como educação, programação, processos criativos e artísticos.

Uma vez que alguns diplomados estão inseridos no mercado de trabalho e que a categoria profissional de mediador cultural ainda não existe em Portugal, importa (a) compreender como alguns potenciais empregadores, formadores e graduados veem o papel do mediador artístico e cultural; (b) identificar a(s) definição(ões) que dão da mediação artística e cultural; e (c) identificar os conhecimentos e competências que consideram necessários para este exercício profissional.

Para alcançar os objetivos anteriormente mencionados, na primeira parte deste artigo, uma breve revisão da literatura traz contribuições para uma melhor definição do conceito de mediação artística e cultural, destacando, entre outras coisas, as condições da sua emergência e as finalidades que podem ser visadas. De forma a contextualizar o estudo realizado, apresentamos a LMAC com o enfoque no modo como concretizou os princípios teóricos que a sustenta.

Na parte empírica, apresentam-se os métodos seguidos e os resultados de um estudo exploratório visando a recolha de representações de docentes, parceiros institucionais e de alguns licenciados que investiram na criação da Associação Portuguesa de Mediação Artística e Cultural.

Nesta fase da investigação, trata-se de um trabalho descritivo sem veleidade prescritiva nem normativa.

2. Emergência da Mediação Artística e Cultural

Para melhor entendermos a emergência do conceito e das práticas de mediação artística e cultural, temos de recordar os de democratização da cultura e de democracia cultural. O primeiro, no nosso texto, mas também na ordem histórica, corresponde a políticas culturais que tentavam responder a um desígnio que ganhou muita relevância nos discursos na primeira metade do século XX e que se encontra consignado na própria Constituição da República Portuguesa (1976), concretamente no Artigo 43.º: “o Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural”. A democratização da cultura parte do pressuposto de que existem “obras” de valor universal às quais todos devem ter acesso. Portanto, as estratégias implementadas para alcançar este desígnio passam sobretudo pela descentralização geográfica e pela redução dos custos suportados pelas pessoas nos acessos aos equipamentos culturais. Estas políticas são consideradas paternalistas, já que selecionam para os sujeitos as obras que merecem ser conhecidas, reconhecidas e apreciadas, e elitistas, pois nem todas as manifestações culturais são reconhecidas como relevantes, só algumas são legitimadas para fazer parte do património. Partem do pressuposto de que “a fruição é universal e não traz nenhum conhecimento acerca do objeto da fruição nem sobre o sujeito que frui“ (Caune, 2005, para. 47). Negando a subjetividade e a singularidade de quem olha para as obras, as barreiras sociais e cognitivas subsistem. E, se olharmos a tipologia dos espetáculos e eventos frequentados, deparamo-nos com uma constante: as manifestações artísticas e culturais ditas eruditas, legitimadas pelos “empresários culturais” (Arnaud, 2018) são frequentadas por um número muito reduzido de pessoas e, além disso, esses frequentadores pertencem às classes socioeconómicas privilegiadas (Pais et al., 2022).

Outro conceito que deu lugar, posteriormente, a algumas outras políticas culturais é o de “democracia cultural”, que reconhece e valoriza a diversidade da cultura e das manifestações artísticas, colocando todos os sujeitos simultaneamente como consumidor e produtor cultural. Abandonar a definição universalista da cultura em favor de uma definição ampla, antropológica, pluralista, relativista, incluindo práticas amadoras, culturas comunitárias, meios audiovisuais (Martin, 2013), e baseada na pluralidade cultural (Lahire, 2006; Lopes, 2009), deu base para alguns textos fundamentais de alcance internacional como a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2002). Com essas políticas, corre-se o risco de cristalização das identidades culturais, de reprodução social acentuada, sem mobilidade e, portanto, de guetização da cultura (Baracca, 2010; De Certeau, 1974/1993).

É numa perspetiva de conciliação das duas lógicas que o conceito de mediação artística e cultural emerge. É dada uma atenção especial à especificidade do(s) público(s) tendo as suas necessidades e gostos em consideração e reconfigura-se a relação entre público(s) e artistas, entre público(s) e arte(s) (Lafortune, 2013; Maurel, 2010; Rathier & Innocenti, 2010). Nesse paradigma, não se trata de tentar converter o não-público de uma atividade sensível ou de uma certa instituição num espetador envolvido, desígnio da democratização cultural que não deve ser desprezado, mas de permitir que cada cidadão se construa melhor a si próprio através de práticas culturais nas quais a arte traz a sua eficiência em termos de expressividade, enunciação e de relação num ambiente de vida quotidiana e num certo contexto sociopolítico (Henry, 2014). Nessa linha, o trabalho do mediador artístico e cultural será modulado e redefinido de acordo com a especificidade dos indivíduos e de acordo com o contexto artístico, cultural, social, político e económico da intervenção (Lussier, 2015). Compreendemos, então, que o agir cultural está no centro de tensões sociais, políticas e económicas, nas fronteiras do cultural, contribuindo também para a definição de grupos reconhecidos como cultos, esclarecidos e dominantes (Arnaud, 2018). Nessa perspetiva, o trabalho do mediador artístico e cultural extravasa os limites dos equipamentos culturais consagrados, como museus ou centros culturais, e toca em processos criativos expressivos, recorrendo a linguagens nem sempre reconhecidas e valorizadas pela academia. Os objetos artísticos podem ser bastante distantes das “obras” outrora consideradas nas políticas de democratização da cultura. Nesses processos de “artificação” (Shapiro, 2007), as forças e as implicações não são restringidas ao domínio artístico ou cultural. Para um grupo social afirmar a sua cultura como património valioso deve ter não só uma cultura para afirmar, mas igualmente os meios para o fazer. Esses meios passam por um jogo de poder ao nível social, político e económico. Desde Bourdieu (1979), sabemos que algumas práticas culturais são marcas de distinção de grupos socialmente privilegiados e que certas manifestações culturais são tidas como populares, de massas ou eruditas. Por exemplo, Juliano (como citado em Trilla, 2004) apresenta uma classificação da cultura em três categorias, em função do grupo social que a produz e/ou a desfruta: (a) a cultura oficial ou dominante que é normativa, estabelece os padrões e goza de prestígio; (b) a cultura de massas baseada na produção e no consumo estandardizados, gerada pela “cultura oficial”, destinada a setores da população que não têm acesso aos produtos da “cultura dominante”; e (c) a cultura popular baseada em relações frente a frente, que responde a especificações locais, desvalorizada e própria das classes subalternas. Por sua vez, quando Pereira (2016) tenta definir o valor da arte volta sempre ao reconhecimento pelos pares, pelo mercado, pelos curadores… Ou seja, são jogos de força política, social e económica que vão permitir algum reconhecimento de certas manifestações culturais. O mediador artístico e cultural não pode ignorar essas questões e trabalhar na mediação de certas obras pertencentes a um determinado espólio sem se interrogar sobre a forma como as obras ganharam esse lugar, nem sobre a perspetiva que os diversos públicos possam ter deste reconhecimento. A violência simbólica exercida pelas obras legitimadas pode provocar reações muito contrárias em pessoas excluídas dos grupos dominantes.

O cidadão que se constrói através da(s) arte(s) em interação com os outros e o seu contexto sociopolítico pode assim deixar de ser visto como público-alvo de uma intervenção, passando a ser considerado como participante. A sua participação pode ser categorizada em níveis diferentes: (a) a receção das obras e dos discursos dos mediadores; (b) a interatividade, quando os mediadores colocam perguntas ou propõem atividades; (c) a participação, quando os mediadores deixam oportunidade para as pessoas do público introduzirem alterações no seu projeto; (d) a colaboração, quando o projeto é co-construído por mediadores e pessoas do público; e (e) a reivindicação, quando a iniciativa do projeto parte das pessoas para responder ao anseio específico de uma determinada comunidade (Mörsch & Holland, 2012). Importa, portanto, que o profissional de mediação artística e cultural seja capaz de desenvolver uma reflexão acerca destes níveis de participação colocando em confronto algumas das finalidades que declara prosseguir com as estratégias que implementa no exercício da sua profissão. O tipo de intervenção ou de atividades desenvolvidas atribuem papéis a cada um dos intervenientes, deixando mais ou menos espaço para as pessoas tomarem decisões. Os mediadores artísticos e culturais devem estar cientes de que a participação não se esgota com atividades dirigidas pelos profissionais pedindo interação com o público, estando num nível ainda muito baixo de participação.

As próprias nomenclaturas para designar as intervenções em mediação artística e cultural são reveladoras desta transformação do papel e do lugar assignados aos participantes e deste aumento da sua participação. Deixamos de ter “visitas guiadas” nas quais os visitantes devem seguir o seu guia, para ter “visitas orientadas”, nas quais os visitantes seguem o seu próprio percurso, considerando as orientações dadas; passa-se de “formação do público” que assenta na ação do formador para “desenvolvimento de públicos”, que implica um crescimento vindo do interior; os “serviços educativos” são substituídos por “departamentos da participação”; vimos florescer “grupos de programadores”, “grupos de curadores”, “grupos de arte participativa”, compostos por pessoas oriundas de comunidades territoriais ou outras e não profissionais das artes nem da cultura. Estas são, aliás, práticas que conseguimos identificar em equipamentos (como a Culturgest, Fundação Calouste Gulbenkian), em organizações culturais (como o Teatro Meia Volta, Comédias do Minho, Acesso Cultura, entre outros) e projetos culturais (como os projetos 23 Milhas e Bons Sons) em que há uma partilha nos processos de produção cultural entre artistas e públicos na lógica do espectador emancipado proposta por Rancière (2008/2010).

É assumida a importância das artes e da cultura não só para o desenvolvimento da pessoa e do cidadão, mas igualmente como pilar do desenvolvimento sustentável dos territórios nas suas dimensões não só cultural, mas também social, educativa e económica (Carta do Porto Santo, 2021; Comissão da Cultura da Cidades e Governos Locais Unidos, 2004; Costa, 2018).

A partir deste enquadramento teórico, compreende-se que uma licenciatura em mediação artística e cultural deve ser de natureza multi e interdisciplinar, desenvolvendo competências e conhecimentos nos domínios das ciências sociais e da educação, mas também das artes, a par com competências técnicas necessárias à intervenção e práticas em articulação com os contextos profissionais.

3. Criação da Licenciatura em Mediação Artística e Cultural

É nos pressupostos enunciados na secção anterior que foi construída, na Escola Superior de Educação de Lisboa, a LMAC que entrou em funcionamento no ano 2016 (Cruz et al., 2021). O plano de estudos dessa licenciatura comporta unidades curriculares que pertencem a áreas científicas de ciências sociais e da educação, artes, línguas e tecnologias de comunicação e visam o desenvolvimento das seguintes competências específicas:

  • Conhecer e compreender os públicos, os contextos e os equipamentos de produção e divulgação artísticas (organizações culturais e intervenção territorial, antropologia da cultura, sociologia da cultura, diversidade, culturas e intervenção social);

  • Identificar redes de intervenientes e políticas na divulgação artística e cultural (organizações culturais e intervenção territorial e políticas culturais);

  • Conhecer e compreender as diversas formas de intervenção e expressão artística (teoria das artes, estética e as unidades curriculares eletivas que são lecionadas em escolas ou licenciaturas artísticas ao abrigo de protocolos de permuta de oferta de unidades curriculares);

  • Comunicar de forma eficaz com os diferentes intervenientes do processo de mediação artística e cultural (língua estrangeira, técnica de expressão oral e escrita e comunicação multimédia).

Além dessas unidades curriculares, existem dois conjuntos estruturantes e mais transversais, por um lado, as unidades curriculares de metodologia de projeto I, II e III (Bell, 2010; Rangel & Gonçalves, 2010) em cada um dos primeiros semestres do curso e, por outro, de projeto de intervenção em mediação artística e cultural (PIMAC) I, II e III nos segundos semestres do curso que, além de mobilizar as competências desenvolvidas nas unidades curriculares anteriormente referidas, concorrem especificamente para os estudantes serem capazes de conceber, implementar, gerir e avaliar um projeto. Os três PIMAC consistem em estágios em contextos diversificados, acompanhados por profissionais de referência, os supervisores cooperantes, enquadrados por seminários nos quais particular ênfase é colocada na articulação entre a unidade curricular teórico-prática e a intervenção profissional.

A fundamentação apresentada aquando da criação do curso afirma que a formação se baseia no modelo do profissional reflexivo (Schön, 1994); essa competência de reflexividade, embora trabalhada de forma transversal nas unidades de formação de metodologia de projeto e de PIMAC, merece uma atenção específica numa unidade curricular de terceiro ano: profissionalidade em mediação artística e cultural.

4. Método

Os resultados que aqui se apresentam vêm no seguimento de um trabalho exploratório (Cruz et al., 2021) e foram objeto de uma comunicação oral no colóquio “Prendre part à l’art et à la culture. Pratiques, théories et politiques de la médiation culturelle aujourd’hui” (Participar na arte e na cultura. Práticas, teorias e políticas da mediação cultural nos nossos dias) nos dias 7, 8 e 9 de outubro de 2021 em Aix Marseille Université, França. Resultam de um estudo realizado no âmbito de um projeto de investigação intitulado Entre: Investigação em Mediação Artística e Cultural, financiado pelo Centro de Investigação em Educação , que visa os seguintes objetivos: (a) afirmar a mediação artística e cultural como uma área de investigação e produção científica contribuindo para o desenvolvimento dos seus quadros conceptuais e metodológicos; (b) contribuir para a definição do perfil profissional do mediador artístico e cultural; (c) identificar e analisar o papel da mediação artística e cultural para os vários agentes socioculturais (artistas, instituições culturais, mediadores, estudantes, públicos).

Perante a complexidade do fenómeno em análise, optamos por uma abordagem qualitativa (Crahay, 2006; Vandenberghe, 2006), concretizando a nossa preocupação com o respeito da singularidade dos intervenientes. A nossa opção por uma abordagem essencialmente qualitativa justifica-se pela complexidade das situações (Vandenberghe, 2006) que pretendemos analisar e porque só poderemos trazer contributos para as nossas interrogações se considerarmos igualmente as interpretações dos atores envolvidos, “o termo ação substitui o de comportamento: uma ação inclui o comportamento físico mais os significados atribuídos pelo ator e por aqueles que interagem com ele” (Crahay, 2006, p. 36).

Como Verhoeven (2006), consideramos que, a partir de uma investigação semi-indutiva, baseada numa lógica de construção intersubjetiva e pragmática do conhecimento, uma generalização é possível, não por representatividade estatística, mas por uma generalização analítica. Por isso, o nosso propósito, aqui, não é constituir grupos representativos, mas recolher diversidade de entendimentos sobre o papel do mediador artístico e cultural, a(s) definição(ões) da mediação artística e cultural e os conhecimentos e competências considerados necessários para este exercício profissional.

No final do ano letivo 2020-2021, foram realizados três grupos de discussão. O primeiro, com diplomados, contou com a presença de estudantes de mestrado, empregados no setor cultural e membros fundadores da Associação Portuguesa de Mediação Artística e Cultural. O segundo reuniu professores que intervêm na LMAC das áreas de antropologia, artes visuais, comunicação, psicologia e sociologia. O terceiro juntou profissionais com atividades diferentes: ator, cineasta, funcionário de um serviço educativo de museu ou responsável de estrutura autárquica, tendo todos acolhido e acompanhado estagiários em anos letivos diferentes e de anos curriculares também diferentes. O guião centrava a discussão sobre três grandes dimensões: a definição da mediação artística e cultural, as funções desempenhadas pelos mediadores artísticos e culturais nas organizações empregadoras e o perfil destes profissionais.

Os dados assim recolhidos foram objeto de análise de conteúdo com as categorias coincidentes com as três dimensões presentes no guião, a saber (a) o conceito de mediação artística e cultural, com três subcategorias: a definição, as áreas científicas e as metodologias que lhe são próprias; (b) o papel do mediador na sociedade, com quatro subcategorias: as dimensões da intervenção, as finalidades da mediação artística e cultural, a relação com as comunidades e as funções desenvolvidas nas organizações; e (c) o perfil do mediador, distinguindo as competências dos conhecimentos necessários para o exercício profissional.

Com a nossa abordagem qualitativa e compreensiva, e com o número de pessoas envolvidas nos grupos de discussão, a quantificação de respostas torna-se pouco relevante. No planeamento dos procedimentos para recolha de dados, procurou-se diversificar as fontes de informação e recolher visões particulares, complementares e/ou divergentes (Alves & Azevedo, 2010). No momento de análise, tentámos considerar todas as conceções expressas e explanar as representações na sua riqueza e multiplicidade, e, às vezes, nas suas contradições.

5. Representações dos Diplomados

Quando perguntamos aos diplomados da LMAC para definir a mediação artística e cultural, a primeira reação é pedirem tempo para refletir, depois afirmam que essa definição é controversa, variável e, finalmente, é dada com o enunciar das finalidades que pode prosseguir. Para eles, as dimensões da mediação artística e cultural vão além da vertente educativa, na medida em que também abrangem as dimensões social e investigativa. Na sua perspetiva, durante a sua intervenção profissional, o mediador artístico e profissional estabelece relações com empregadores que desconhecem a profissão, com os meios de comunicação social e com representantes do poder local para dar a conhecer o trabalho que desenvolvem e tentar valorizá-lo e também com os públicos, as pessoas. Em todas as situações, o relacionamento deve ser pensado no longo prazo e no caso do contacto com as comunidades com as quais intervêm é imprescindível uma grande abertura para a diversidade, uma proximidade efetiva e empatia. Quanto às funções que desempenham os recém-licenciados em mediação artística e cultural, os próprios constatam que são muito variadas, desde a comunicação, a gestão, passando pela organização de eventos e a organização ou inventariação de espólio, e que nem sempre correspondem ao que tinham idealizado durante a sua formação:

eu acho que ao longo do curso desenvolvi uma ideia muito bonita, até, sobre o que é que era mediação, muito própria e pessoal e agora que estou a trabalhar não a consigo meter em prática e isso deixa-me um bocadinho chateada até, ou seja, eu acho que aprendi bastante e que estou a querer pô-lo em prática, mas que não está a funcionar assim tão bem. (Grupo focal 1, 16 de março de 2021)

No entanto, consideram que as suas intervenções são transformadoras das pessoas, mas também do próprio espaço de trabalho.

Para os recém-diplomados, as finalidades da mediação artística e cultural e o papel do mediador na sociedade inscrevem-se num contínuo entre um polo económico e um polo político. No polo económico, trata-se de um mediador/vendedor que trabalha para a mercantilização da cultura, usando a comunicação, o marketing, a publicidade, para aumentar o número de frequentadores de eventos culturais: “como levar mais público às nossas atividades” (Grupo focal 1, 16 de março de 2021). Nos dados recolhidos, é o menos presente nos discursos dos diplomados da LMAC. Encontramos igualmente um mediador/pedagogo que zela para a democratização da cultura tentando derrubar as barreiras cognitivas, explicando as obras a pessoas que sozinhas não tinham competências para fazer uma leitura adequada. Nessa perspetiva, muito coincidente com algumas recolhidas por Martinho (2013), o mediador definiu conteúdos que devem ser adquiridos pelas pessoas, uma parte do seu trabalho incide na procura de estratégias, mais ou menos ativas ou diretivas, para a aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de atitudes: “o mediador pode fazer uma visita guiada, o mediador pode simplesmente traduzir as obras por escrito ou fazer um pequeno contexto e já está a mediar, pode fazer atividades com grupos” (Grupo focal 1, 16 de março de 2021).

Acho que valeu mais a pena foi mesmo o impacto que tive nos miúdos da escola e na diferença que fez só ter estado aqueles diazinhos com eles, que não ligavam nenhuma a teatro e que de repente “Espera aí, isto se calhar até é interessante, se calhar até vou ver”. (Grupo focal 1, 16 de março de 2021)

No estudo referido (Martinho, 2013), alguns dos profissionais que desenvolvem atividade de mediação artística e cultural apresentam-se como “professores” e valorizam a pedagogia como área de formação necessária.

No polo político, encontramos um mediador/mediador criando espaço para democracia cultural, para a reflexão e os encontros positivos entre pessoas e entre pessoas e obras. Como diz Arnaud (2018), o agir cultural vai permitir uma melhor compreensão de si próprio, do outro e do meio envolvente, daí uma possível tomada de posição para a transformação social. Os diplomados inquiridos declaram:

a figura do mediador tem de dar espaço às pessoas refletirem ( … ) acho que as pessoas, no geral, gostam de participar, e gostam de dar as suas ideias sobre o que estão a ver, ou refletir sobre o que estão a ver. O mediador acaba por ser só uma mosca na parede ou só para instigar a conversa e acho que é aí que se obtêm os melhores resultados. (Grupo focal 1, 16 de março de 2021)

“Acho que o mediador tem que ter a capacidade de criar este espaço de reflexão” (Grupo focal 1, 16 de março de 2021).

“Os espaços sejam um bocadinho mais democráticos, que incluam todas as pessoas, porque o objetivo não é excluir” (Grupo focal 1, 16 de março de 2021).

“Acho que o mediador tem que ter a capacidade de criar este espaço de reflexão ( …. ), mas também um espaço de encontros entre realidades completamente opostas ou realidades que até são muito parecidas, ou diferentes realidades, sejam elas quais forem” (Grupo focal 1, 16 de março de 2021).

Relativamente às competências necessárias ao exercício profissional de mediação artística e cultural, encontramos uma coincidência grande entre o que são as decisões da coordenação de curso da LMAC e as representações dos diplomados. As competências centrais: (a) conhecer e compreender os públicos, os contextos e os equipamentos de produção e divulgação artísticas; (b) identificar redes de intervenientes e políticas na divulgação artística e cultural; (c) conhecer e compreender as diversas formas de intervenção artística; e (d) comunicar de forma eficaz com os diferentes intervenientes do processo de mediação artística e cultural também são consideradas centrais pelos diplomados que, no entanto, não mencionaram a ideia de trabalho em rede. Da mesma forma, são valorizadas as competências transversais enunciadas na apresentação do ciclo de estudo como conceber, implementar, gerir e avaliar um projeto e ser um profissional reflexivo, mas o grupo inquirido reconhece como importantes algumas competências não tidas em conta pelo grupo proponente da licenciatura como as que advêm de conhecimento em marketing e gestão e que visam a rentabilidade dos projetos. Também dão mais enfoque nas competências relacionadas com a psicologia, numa dimensão mais prática: “falei de empatia, de ouvir as pessoas e tentar perceber” (Grupo focal 1, 16 de março de 2021).

6. Representações dos Professores

Os docentes são unânimes em considerar que a definição de mediação artística e cultural é muito abrangente e não consensual, e alguns veem esta não-consensualidade como estratégica, pois seria uma forma de poder incluir neste termo uma grande diversidade de práticas:

a mediação às vezes pode ser utilizada assim, pode ser um conceito tão abstrato que tão lato e então se calhar vale a pena fechar, ou não fechar, quando é que é útil e operacional para nos ajudar a pensar no que é que isto de fazer mediação artística e cultural. (Grupo focal 2, 15 de julho de 2021)

Para alguns, a mediação artística e cultural é uma forma de tradução que visa tornar as obras acessíveis para o público:

portanto esta ideia de que eles estão a mediar qualquer coisa, entre qualquer coisa, estão no meio de qualquer coisa... E que têm que ter essa capacidade de tradução no sentido de tornar uma coisa que é estranha em familiar para um lado e para o outro, não é? Portanto tornar familiar, tornar próxima, tornar... descodificar, tornar envolvente, tornar apelativo, tornar qualquer coisa que à partida é estranha ou é desconhecida, e passar a ser a familiar ou reconhecível, não é? (Grupo focal 2, 15 de julho de 2021)

Os docentes referem igualmente que a mediação artística e cultural pode ser um motor de transformação das próprias organizações ou instituições do setor cultural.

A mediação artística e cultural pode ser olhada numa perspetiva mais individual com enfâse no desenvolvimento pessoal e, nesse caso, enquanto facilitadora de experiência e de construção para o outro. Mas pode igualmente ser vista numa dimensão mais social, seja como o uso das culturas e das artes, ou das expressões artísticas, como um elo entre pessoas, entre comunidades, entre públicos e mesmo entre os próprios e mesmo o próprio indivíduo numa perspetiva horizontal: “tem essa função de, a partir de uma expressão artística ou cultural, nos aproximar todos uns aos outros ( … ) pode também ser uma forma de nós nos aproximarmos a nós mesmos” (Grupo focal 2, 15 de julho de 2021).

Quanto à área científica à qual associam a mediação artística e cultural, não parece haver dúvidas entre os participantes do grupo focal: afirmam que se trata das ciências sociais e humanidades. Mas quando é pedido para afinar a resposta em subáreas ou domínios mais específicos, a resposta não é tão unívoca, mencionam-se as artes, a psicologia, a sociologia, a antropologia, a comunicação e é sublinhado o seu carácter híbrido. Para definição do seu quadro conceptual, os docentes mobilizam conceitos diversos, como espaço público, esfera pública e cultural, democracia cultural, tradução cultural, direitos culturais, mecanismos de contacto cultural, coletivo, alteridade e citam como autores de referência Jürgen Habermas, Bruno Latour, Clifford Geertz ou Emmanuel Levinas.

Há consensualidade entre os membros do grupo focal quanto a uma parte do papel do mediador na sociedade que é ser interface entre organizações e públicos, alguns reforçam que este papel só pode ser desenvolvido a partir da integração nas instituições, outros, em redes ou nas próprias comunidades com as quais intervêm. A finalidade da sua intervenção na sociedade seria o reforço da importância da arte e da cultura na sociedade ou ainda a inclusão de pessoas ou grupos fragilizados como doentes mentais, migrantes, desempregados… Para desenvolver este papel, os formadores definem um perfil profissional muito exigente com competências comunicacionais, analíticas e reflexivas, com conhecimentos em áreas científicas muito diversificadas, com vontade de aprender sempre mais, com competências transversais tais como a empatia e a capacidade de adaptação aos diversos contextos:

eles sejam capazes de levar competências transversais, ou seja, para além do saber técnico, para além do saber científico, que eles possam levar acerca dos conceitos essenciais, não é, uma vez que eles vão ser mediadores e a dimensão de mediador tem uma dimensão comunicacional subjacente, não é, há um conjunto de competências transversais. (Grupo focal 2, 15 de julho de 2021)

Essas representações dos docentes colocam desafios para a formação em mediação artística e cultural. A primeira constatação que podemos fazer é que o domínio de formação do próprio docente contamina a sua leitura do que pode ser a mediação artística e cultural. Para proteção desta contaminação talvez seja necessário reivindicar um domínio de conhecimento específico assente numa melhor definição da mediação artística e cultural, do seu quadro conceptual e do referencial de competências deste profissional. Quer seja por conhecimento incompleto dos contextos de intervenção ou ontologicamente, fruto de contradições inerentes ou estrategicamente, esta hibridação da mediação artística e cultural parece consolidar a ideia de uma formação inicial de banda larga que poderá ser seguida de uma especialização num nível de pós-graduação ou mestrado, por exemplo. Perante a complexidade da própria mediação artística e cultural e dos seus contextos de intervenção, a formação deve privilegiar a capacidade de análise e reflexão e a capacidade de adaptação a situações profissionais diversas. Considera-se primordial dotar os estudantes de:

competências do ponto de vista da análise e uma análise que seja, não no sentido de serem, como disse anteriormente, investigadores das ciências sociais, não é nesse sentido, mas competências analíticas robustas porque, precisamente, há uma leitura de uma complexidade que julgo que é importante que eles consigam fazer. (Grupo focal 2, 15 de julho de 2021)

A centralidade da dimensão prática, nomeadamente dos estágios em contextos diversificados surge então como uma resposta adequada, quando associada a um modelo de formação baseado no profissional reflexivo (Schön, 1994).

7. Representações dos Profissionais Cooperantes

Os profissionais presentes consideram que uma parte do seu trabalho se inscreve na intervenção em mediação artística e cultural, por isso não hesitaram na altura de apresentar alguma definição deste conceito e fizeram-no tomando como ponto de partida a sua própria atividade profissional. Consensualmente definem a mediação artística e cultural como o que está entre, no meio de, e as várias partes podem ser criadores, públicos, instituições, programadores, pessoas… No entanto, as definições dadas não são todas completamente coincidentes e um aspeto que sofre variações prende-se com a atividade versus passividade dos públicos. Para alguns, a mediação é a passagem de informações e de conhecimentos, para outros, é escuta tanto do que recebe como do que criou; outros ainda consideram que é ato de criar tensões, inquietações e possibilidades de discussões; ou até um motor de transformação. Reconhecem quatro dimensões na intervenção em mediação artística e cultural: cultural, social, educativa e, também, política. Nas organizações nas quais trabalham, consideram que as funções desempenhadas pelos mediadores são: aproximar as pessoas das instituições, dar a conhecer o trabalho dos artistas, contribuir para o aumento do número de pessoas que frequentam os equipamentos culturais e promover o diálogo e a partilha de conhecimentos. Os profissionais têm um discurso prescritivo sobre as qualidades que deve ter a mediação artística e cultural: empática e afetiva, educativa, participativa e promotora de cidadania ativa. Indicam igualmente a importância da necessidade da presença da mediação artística e cultural nas escolas de todos os níveis de ensino, incluindo a universidade. Quando abordamos a questão do perfil do mediador artístico e cultural, a lista de conhecimentos e competências é extremamente extensa, o que se compreende quando analisarmos igualmente as finalidades que devem ser alcançadas com a intervenção desses profissionais. Os conhecimentos que o mediador artístico e cultural deve dominar abrangem inúmeros domínios: artes (artes visuais, cinema, teatro, música, etc.), sociologia, história, história da arte, estética, filosofia, direito, línguas estrangeiras, metodologias participativas. Além dos saberes, estes profissionais devem ter saberes-ser como a humildade, a disponibilidade para escutar, a abertura ao outro, a ausência de preconceitos, a empatia; devem nortear-se por valores sociais, cívicos e humanistas e devem ser capazes de não impor a sua estética ao outro. No domínio dos saberes-fazer, os profissionais consideram importante os mediadores artísticos e culturais saberem fazer o diagnóstico de um território, compreender o trabalho de um criador e os processos criativos, envolver as pessoas num processo criativo, construir um capital de confiança com as pessoas, comunicar e criar espaços de diálogos. Este vasto leque de conhecimentos e competências requeridos para o exercício profissional de mediação artística e cultural é coincidente com a diversidade das finalidades que são atribuídas a esta intervenção. Para alguns, estas têm uma dimensão essencialmente educativa, o mediador sendo a pessoa que explica o que deve ser visto numa obra, daí a importância dos conhecimentos em artes, dos processos criativos: “nós eramos na verdade cineastas, portanto já tínhamos um conhecimento da parte artística, e estávamos a tentar passar esse conhecimento a crianças, a jovens, a outros. Mas isto é uma mediação através de pessoas que conhecem arte” (Grupo focal 3, 7 de maio de 2021).

Esta dimensão educativa nem sempre corresponde a um modelo transmissivo e os profissionais valorizam os contributos que podem ser dados pelos elementos que formam o público:

não temos de ser só nós a passar esta informação, acho que é importante haver esta colaboração, quando falamos de mediador, nós não temos de ser quem passa o diálogo, se tivermos de chamar pessoas, se tivermos e chamar para o nosso lado, conversar com elas, são processos um bocadinho longos inicialmente, mas que depois acabam por fluir e acho que quando se pensa em mediador, é importante perceber que nós não temos que ser o centro, mas se calhar o meio. Ou seja, nós temos de chamar as pessoas e promover o diálogo, mas não temos de ser nós a transmitir tudo. (Grupo focal 3, 7 de maio de 2021)

A dimensão educativa mitiga-se com uma dimensão mais social que coloca o mediador não numa posição de transmissor, mas efetivamente de mediador que vai proporcionar encontros, criação de laços e integração social. Falar de arte e de cultura é também uma maneira de falar de si e do seu meio envolvente:

eu acho que o trabalho de mediação também é um trabalho de sensibilização para as realidades que estas pessoas que estão na envolvência da realidade em que cada um de nós trabalha têm oportunidade de se pronunciar, de lhes dar voz, de poderem queixar-se das suas dificuldades, dos seus problemas e de alguma forma tentarmos encontrar soluções que permitam uma melhor forma de vida, ou de melhorar as condições de vida da pessoa. (Grupo focal 3, 7 de maio de 2021)

A mediação artística e cultural ganha uma dimensão política já que as pessoas deixam de ser um público passivo e tornam-se atores que tomam decisões para transformar o seu meio envolvente. Para alguns dos profissionais presentes no grupo de discussão, a intervenção do mediador visa mesmo esta transformação:

mas quando eu estou ao contrário, ao serviço do espetador, ao serviço do cidadão, sendo profissional deste setor, poderemos transformar as pessoas em espetadores, a minha preocupação é mais transformar as pessoas em cidadãos mais ativos, mais conscientes, mais participados, mais disponíveis para que a sua sensibilidade se desenvolva através de provocações artísticas (Grupo focal 3, 7 de maio de 2021)

8. Pistas Para Reflexão

Os dados recolhidos apontam para grandes zonas de interseção entre as representações de cada um dos grupos inquiridos, tanto no que diz respeito à definição da mediação artística e cultural como no que concerne o perfil profissional e as finalidades da intervenção. No entanto, temos de reconhecer algumas divergências. Por exemplo, os diplomados pedem emprestados à área da economia os saberes e técnicas de publicidade e marketing que os formadores não integraram de todo no plano curricular da LMAC. Os profissionais cooperantes apresentam um leque de saberes e competências necessários para os mediadores artísticos e culturais muito mais alargado do que os professores, nomeadamente incluem o direito, que não figura nas áreas de formação do plano de estudo. No entanto, existe um ponto de partilha entre todos os elementos que constituíram este estudo exploratório: a ideia de que a mediação artística e cultural se faz de um espaço de interseção de saberes e competências. Podemos perguntar-nos quais são os riscos desta indefinição tanto do campo de intervenção como conceptual. Podemos pensar que a ausência de uma definição clara do campo de intervenção da mediação artística e cultural permite alargar este campo e, portanto, incluir mais tipologias de práticas e, consequentemente, reforçar um grupo profissional pelo aumento em número. Mas essa mesma ausência comporta o risco de absorção e dissolução noutros campos mais consolidados, tanto na intervenção como na afirmação científica.

Outra pista que nos parece importante aprofundar é a compreensão das contradições entre os perfis e competências que foram definidos pelos professores e pelos profissionais cooperantes, ambos formadores dos mesmos grupos de estudantes. Como vimos, o leque de conhecimentos elencados como necessários para os três grupos inquiridos é extremamente vasto e incompatível com um plano de formação de licenciatura em três anos. As tensões verificadas nas representações dos inquiridos entre dimensões mais económicas, mais educativas ou mais políticas e sociais são reflexos das tensões existentes na definição de políticas culturais. As fontes disponíveis em Portugal que refletem sobre a mediação artística e cultural tal como é proposta por Mörsch e Holland (2012) ou Lafortune (2012) são escassas; ainda assim, é possível identificar um par de contribuições relevantes (Martinho, 2013; Fradique, 2019), sendo A Cultura e a Promoção da Democracia: Para uma Cidadania Cultural Europeia (Carta do Porto Santo, 2021), o documento que mais se aproxima dos pressupostos subjacentes à licenciatura que se propõe a formar os profissionais em mediação artística e cultural. Constata-se que há ainda um entendimento muito operativo, formalizado e escolarizado sobre o que é a mediação em contextos culturais, contudo, este é um percurso semelhante a outros ocorridos em países como o Canadá, França, Alemanha e Áustria, nas últimas décadas. Estes contextos têm contribuído, por via deste amadurecimento no que respeita às práticas de mediação artística e cultural, para uma melhor definição conceptual e metodológica deste campo de saber e ação. É, portanto, pertinente continuar a investigação no sentido de melhor circunscrever um domínio de conhecimento específico para a mediação artística e cultural, desenhando de forma mais clara fronteiras com educação artística, programação cultural, gestão cultural ou outras atividades profissionais afins.

Agradecimentos

Esta publicação foi realizada no âmbito dos projetos PI&CA financiado pelo Centro Interdisciplinar em Estudos Educacionais da Escola Superior de Educação de Lisboa - Politécnico de Lisboa (“Entre: investigação em Mediação Artística e Cultural” - #12458675).

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Recebido: 03 de Novembro de 2022; Aceito: 10 de Janeiro de 2023

Cristina Barroso Cruz é doutorada em Antropologia Biológica (2012) pela Universidade de Coimbra, onde realizou a restante formação académica: licenciatura em Antropologia (1999) e mestrado em Evolução Humana (2004) e, uma formação em património cultural imaterial ministrado em parceria pela Direcção Geral do Património Cultural/Museu Nacional de Etnologia/Universidade Aberta (2015). Participou até 2011 em diversos projetos de salvaguarda do património histórico e arqueológico enquanto antropóloga física. Docente desde 2010 na Escola Superior de Educação de Lisboa, tem vindo a desenvolver trabalho em questões patrimoniais e da museologia, quer no âmbito dos cursos em que leciona, quer nos centros de investigação a que pertence (Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano - Universidade do Algarve e Centro de Humanidades - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa). Mais recentemente, tem desenvolvido investigação no âmbito da mediação artística e cultural enquanto cocoordenadora da licenciatura com o mesmo nome e coordenadora do projeto Entre: Investigação em Mediação Artística e Cultural, financiado pelo Centro Interdisciplinar em Estudos Educacionais da Escola Superior de Educação de Lisboa. Faz também parte da equipa de coordenação deste centro e é editora da revista Da Investigação às Práticas: Estudos de Natureza Educacional. Email: cristinac@eselx.ipl.pt Morada: Escola Superior de Educação de Lisboa - Politécnico de Lisboa, Campus de Benfica do IPL, 1549-003 Lisboa, Portugal

Laurence Vohlgemuth teve um percurso profissional sempre ligado à educação, no sentido mais lato, e à cultura. Após formação e anos de exercício profissional como institutrice, seja educadora e professora de 1.º ciclo, mudou-se para Portugal onde trabalhou em vários contextos. Licenciou-se (1993) em Ciências da Educação na Université Toulouse Le Mirail, França, onde obteve igualmente o mestrado em Ciências de Educação (1996) e o diploma de estudos avançados, com especialização em Educação, Formação, Integração (1998). Atualmente, é professora adjunta na Escola Superior de Educação de Lisboa, onde liderou o grupo de trabalho que criou a licenciatura em Mediação Artística e Cultural, curso que coordena. As suas comunicações e publicações incidem sempre sobre problemáticas ligadas à formação e educação nas suas diversas formas. Tem em curso uma investigação sobre a articulação entre escolas e organizações culturais e artísticas, no âmbito do programa doutoral Equidade e Inovação em Educação, na Faculdade de Ciências da Educação, na Universidade de Santiago de Compostela. É membro da equipa de investigação do projeto Entre: Investigação em Mediação Artística e Cultural, financiado pelo Centro Interdisciplinar em Estudos Educacionais da Escola Superior de Educação de Lisboa. Email: laurence@eselx.ipl.pt Morada: Escola Superior de Educação de Lisboa - Politécnico de Lisboa, Campus de Benfica do IPL, 1549-003 Lisboa, Portugal

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