1. Introdução
A forma como entendemos a deficiência resulta das dinâmicas sociais e culturais estabelecidas em cada contexto histórico e geográfico. As diferentes vivências da deficiência e da condição de ser identificado/a como uma pessoa com deficiência em cada momento histórico-geográfico apresentam, no entanto, um traço comum: a opressão de que as pessoas assim perspetivadas são alvo por parte das sociedades em que estão inseridas (Fontes, 2019). Esta opressão estende-se às diferentes esferas das suas vidas e manifesta-se de múltiplas, variadas e consteladas formas onde se imbricam fatores de ordem social, cultural, económica e ambiental. Um dos exemplos desta opressão é a exclusão das pessoas com deficiência da experiência e da prática artística. Alicerçado em conceções menorizadoras das capacidades e dos direitos das pessoas com deficiência, o “mundo” das artes e da cultura tem-lhes sido vedado, quer através da reprodução de barreiras culturais, quer através da manutenção de barreiras físicas que impedem a sua participação efetiva (Vlachou & Acesso Cultura, 2020). Até muito recentemente, a experiência e a prática artística e cultural das pessoas com deficiência têm sido permeadas por um entendimento médico da deficiência que a configura, não como um direito cultural, mas como terapia. A experiência e prática da dança, da música, do teatro, da pintura, entre outras formas de arte emerge como uma atividade reabilitacional das mentes e dos corpos das pessoas assim perspetivadas.
Tal como defende Howard Becker (1982), no contexto da necessidade de abertura dos “mundos da arte”, assumem particular relevância os princípios da acessibilidade, da participação, da colaboração e da educação artística, a que acrescentaríamos a sua abertura a diferentes tipos de grupos e comunidades, incluindo as pessoas com deficiência. A aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), ratificada por Portugal em 2009, marca, precisamente, uma viragem, não só na forma de entendimento da deficiência e dos direitos das pessoas com deficiência, mas também, no papel atribuído às pessoas com deficiência no mundo das artes e da cultura. Assim, o Artigo 30.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) vem consagrar o direito das pessoas com deficiência à participação na vida cultural, recreação, lazer e desporto. Fazendo respaldo do disposto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Estratégia Europeia para os Direitos das Pessoas com Deficiência 2021-2030 vem reafirmar a necessidade dos diferentes Estados-membros garantirem a efetiva participação das pessoas com deficiência nas atividades culturais, exortando-os a definirem políticas nacionais integradoras e inclusivas nas diferentes áreas, incluindo na área da cultura, e a desenvolverem serviços inclusivos e promotores do acesso à cultura. Em Portugal, este desiderato surge plasmado na Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência 2021-2025 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 119/2021, 2021) que define a cultura, desporto, turismo e lazer como um dos seus oito eixos estratégicos, bem como na Estratégia de Promoção da Acessibilidade e da Inclusão dos Museus, Monumentos e Palácios na dependência da Direção-Geral do Património Cultural e das Direções Regionais de Cultura 2021-2025 (República Portuguesa, 2022). Em resultado destes documentos norteadores, as instituições e serviços começam a repensar os seus espaços, as suas condições de acessibilidade e meios de inclusão, as suas práticas, as suas coleções e programações de forma a incluírem todas as pessoas independentemente da sua situação ou necessidades específicas.
O presente artigo1 tem por base a experiência concreta de implementação de um projeto de inclusão pela atividade artística e de promoção de uma arte inclusiva - A Meu Ver - de uma estrutura artística profissional da área do teatro da cidade de Coimbra - O Teatrão. Trata-se de um projeto de formação e prática teatral de pessoas cegas ou com baixa visão, com uma duração de três anos, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação La Caixa, no âmbito do programa Partis & Art for Change. Este projeto agrega uma vertente de formação artística a uma vertente de intervenção no espaço cultural da cidade e da região de Coimbra. Uma outra componente do A Meu Ver está relacionada com um acompanhamento científico do projeto, que inclui uma avaliação dos seus impactos nos participantes, suas famílias e comunidades mais alargadas. Por outro lado, pretende-se também ter impacto ao nível das políticas das acessibilidades culturais dos espaços no Município de Coimbra. A articulação entre as componentes da formação e criação artísticas e a componente das ciências sociais e humanas reforça a vertente multidisciplinar do projeto. Os dados aqui apresentados resultam de um trabalho de acompanhamento e avaliação de impacto do primeiro ano de implementação do projeto A Meu Ver que objetivou analisar e reequacionar os possíveis papéis da formação artística na mediação entre a entidade O Teatrão e um grupo de pessoas com deficiência, tradicionalmente mais afastados dos circuitos culturais. Tornase importante apresentar aqui uma possível definição de mediação cultural como uma ação que consiste em fazer aceder segmentos de públicos a obras e saberes, procurando originar uma apropriação do universo artístico e cultural pelas pessoas que com ele contactam (Davallon, 2010).
Com base nesta experiência, procurar-se-á avançar com uma resposta às seguintes questões:
Que lugar, para a arte, na mediação entre entidades artísticas e diferentes tipos de comunidades?
Como intermediar novos entendimentos, perceções e interpretações que possam interligar a criação artística com comunidades à margem dos circuitos artísticos?
Usando o caso específico da formação e prática teatral de pessoas com cegueira ou baixa visão, este artigo pretende refletir sobre o papel mediador da atividade artística na criação de espaços de comunicação entre artistas, instituições artísticas e culturais, investigadores e comunidades que se encontram normalmente mais afastadas dos contextos das ofertas e experiências culturais. Divide-se em cinco partes. Na primeira parte será feito um enquadramento teórico do artigo que pretende problematizar a ligação entre a atividade artística e as pessoas com deficiência no contexto do movimento da “Arte da Deficiência”; na segunda parte apresentamos o contexto do estudo de caso e a sua especificidade empírica; na terceira parte, partilhamos a abordagem metodológica do projeto; na quarta parte, trabalhamos a relação entre arte, mediação e o projeto A Meu Ver; por fim, as reflexões finais pretendem apontar caminhos futuros tendo por base o atual desenvolvimento do projeto para uma segunda fase.
2. Cultura, Arte e Deficiência
Como vimos, não obstante a difusão de novas perspetivas da deficiência, emanadas do movimento social de pessoas com deficiência e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), que a apresentam como uma forma de opressão social ou como uma questão de direitos humanos, a hegemonia de perspetivas opressoras, fatalistas e individualizadoras continua inabalável em muitas sociedades. Esta realidade faz com que a vida da grande maioria das pessoas com deficiência continue cerceada por fenómenos de pobreza e de exclusão social, e os seus direitos e oportunidades continuem, muitas vezes, a ser uma miragem. A preponderância na cultura dominante de conceções menorizadoras e opressoras das pessoas com deficiência apresenta-as como seres inferiores, passivos, sem utilidade e quase não humanos (Barnes & Mercer, 2010). Por outro lado, a sua exclusão na produção e consumo dessa mesma cultura, opressora da sua identidade e necessidades, impulsionou as pessoas com deficiência, em contextos geográficos como a Inglaterra e os Estados Unidos da América (Barnes & Mercer, 2010; S. Brown, 1997; Davis, 1995), a desenvolverem uma cultura alternativa, capaz de exprimir, de uma forma positiva, as suas identidades e experiências.
O desenvolvimento, afirmação e celebração desta identidade positiva das pessoas com deficiência e do orgulho em ser quem e como são, o que Swain e French (2000) denominam de “modelo de afirmação”, traduziu-se também ao nível das artes com o desenvolvimento daquilo que podemos genericamente designar por “arte da deficiência”. A “arte da deficiência” (ou disability arts na sua formulação original), é assim um movimento artístico e político desenvolvido por pessoas com deficiência nos diferentes campos e expressões culturais - teatro, cinema, música, dança, escultura, pintura, performance, comédia, poesia, novela, fotografia… - e as respetivas criações artísticas, que explora e apresenta a história, a cultura e as experiências da deficiência e da incapacidade do ponto de vista individual e político, bem como as visões, perspetivas e experiências do mundo das pessoas com deficiência. Barnes e Mercer (2010) acentuam, precisamente, esta dimensão política ao definirem a “arte da deficiência” como o
desenvolvimento de significados culturais partilhados e a expressão coletiva da experiência da deficiência e da luta. Isto implica utilizar a atividade artística para mostrar a discriminação e o preconceito que as pessoas com deficiência enfrentam e gerar solidariedade e consciência de grupo. (p. 207)
Estes autores defendem que a “arte da deficiência” apresenta, assim, pelo menos três dimensões inter-relacionadas: a reivindicação/defesa do acesso das pessoas com deficiência à produção e consumo artístico convencional; a exploração da experiência de viver com uma incapacidade; e, mais importante, a apresentação de uma resposta crítica à experiência de marginalização e exclusão social (Barnes & Mercer, 2010, pp. 207-208). A existência de uma ou várias culturas alternativas da deficiência está, no entanto, longe de ser algo consensual dentro do movimento de pessoas com deficiência ou mesmo no campo dos estudos da deficiência (Wendell, 1996). Todavia, a existência deste movimento da “arte da deficiência” é inegável com o surgimento de diferentes vozes, iniciativas e formas de expressão das pessoas com deficiência que, em muitos casos, produzem, efetivamente, uma cultura de resistência e de celebração (Oliver & Barnes, 1998). A noção de cultura emerge, assim, aqui na sua dupla aceção, isto é, enquanto conjunto de valores, crenças e normas partilhadas por um determinado grupo social (Giddens, 1989) e enquanto criação artística produzida, neste caso, por pessoas com deficiência.
Como a história da deficiência e das pessoas com deficiência bem demonstra, a sua participação no mundo das artes e da cultura está longe de poder ser sempre enquadrada neste movimento artístico de produção de uma cultura política alternativa e celebrativa para as pessoas com deficiência. Importa pois distinguir este movimento daquilo que podemos apenas designar por “artistas com deficiência”, isto é, artistas que apesar de terem uma qualquer incapacidade não são, unicamente, influenciados por essa circunstância (Austin & Brophy, 2015). Alguns dos nomes de pessoas com deficiência que no passado se destacaram no mundo das artes, como Van Gogh ou Beethoven, são disso um bom exemplo. Na atualidade, uma nova geração de artistas na área da “arte da deficiência” vem delineando novos caminhos e novas leituras, onde a deficiência deixa de ser o foco da mensagem política que pretendem veicular, mas onde emerge entre outros que constituem a diversidade das pessoas com deficiência. Um projeto recente desenvolvido pela organização australiana de pessoas com deficiência vocacionada para a promoção da acessibilidade das artes e da cultura - Arts Access Victoria - identifica alguns dos nomes mais proeminentes na atualidade, ao mesmo tempo que enfatiza esse aspeto das suas criações. Esta organização salienta, assim, o trabalho de artistas como: Yinka Shonibare do Reino Unido, Chuck Close dos Estados Unidos da América ou Jane Trengove da Austrália (Austin & Brophy, 2015). Os nomes identificados constituem para esta organização um exemplo de artistas profissionais com deficiência a trabalharem nas artes visuais contemporâneas. Não obstante a leitura marcadamente ocidental do campo apresentada por esta organização, se nos centrarmos no trabalho destes/ as artistas, uma das características unificadoras da sua produção é precisamente esse ampliar de leituras e mensagens, explorando questões como a representação cultural, o género, a sexualidade e o poder político, não se centrando unicamente na questão da deficiência. Como é enfatizado, embora o seu trabalho não esteja unicamente comprometido com e/ou focado na deficiência, este pode, no entanto, ser diretamente influenciado por essa experiência vivida pelo/a artista e que esclarece o processo criativo e o conteúdo das suas obras. O trabalho destes/as novos/as artistas deve, assim, ser analisado num contexto artístico contemporâneo mais amplo e não apenas no âmbito da “arte da deficiência”. Esta necessidade deve-se ao facto de o seu trabalho não refletir uma relação direta com a deficiência, sendo esta apenas vislumbrável nas nuances de ligação entre a experiência vivida pelos/as artistas e as suas observações críticas sobre o lugar cultural e social que ocupam (Reeves, 1999, como citado em Austin & Brophy, 2015). A preservação da essência da “arte da deficiência” parece agora ter-se deslocado para a liberdade de criação cultural dos/as artistas com deficiência em ambientes controlados por si e independentes de modelos de avaliação dominantes (Barnes & Mercer, 2010).
Em Portugal este movimento de “arte da deficiência” tem vindo também a despontar, sendo visível na emergência de artistas e de grupos de artistas com deficiência nos mais variados campos e expressões, que vão desde o teatro, à dança, às artes plásticas, passando pela música e pela representação. Um exemplo são os 5.ª Punkada, uma banda musical de utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, criada em 1994, que conta já com um disco gravado - Somos Punks ou Não? - e com dezenas de espetáculos por todo o país. Na área da dança, têm vindo a firmar-se nomes individuais, como é o caso da Diana Niepce, e coletivos, como é o caso do grupo Dançando com a Diferença. A primeira é uma bailarina e coreógrafa portuguesa que em resultado da sua tetraplegia tem vindo a experimentar e a desenvolver uma nova linguagem na dança com base no seu corpo, explorado enquanto elemento político. O segundo, todavia, é uma companhia profissional de dança que resulta de um grupo com o mesmo nome criado na região autónoma da Madeira em 2001 e que explora o conceito de dança inclusiva, juntando bailarinos/as com e sem deficiência. Na área do teatro, são inúmeros os exemplos de iniciativas por todo o país. De entre estas sobressai, pela sua longevidade e dinâmica, o Grupo Crinabel Teatro. Este grupo, criado em 1986, conta já com várias dezenas de produções artísticas e de artistas formados/as ao longo dos anos, e que tem dinamizado diversos encontros de teatro especial e promovido a difusão do uso da prática e linguagem teatral a outras instituições congéneres nacionais e estrangeiras.
É, assim, inegável o avanço operado ao nível da participação das pessoas com deficiência no mundo das artes em Portugal. A sua participação enquanto artistas profissionais e enquanto agentes de produção e programação cultural continua, no entanto, a ser diminuta face ao conjunto de pessoas sem deficiência. Acresce que a arte na deficiência e da deficiência entre nós emerge quase sempre na sua vertente educativa, terapêutica e, em casos específicos, recreativa, sendo muito raramente entendida e apreciada na sua vertente cultural e artística. A afirmação de um movimento de “arte da deficiência” continua, assim, embrionário, e a consolidação de uma cultura alternativa, de resistência e de celebração da diferença, tal como defendido por Oliver e Barnes (1998), continua a ser uma promessa.
3. Contexto e Metodologia
3.1. O A Meu Ver e o Projeto Pedagógico do Teatrão
Em Portugal, para além das barreiras no acesso às artes e à cultura, no seu sentido restrito, as pessoas com deficiência deparam-se, também, com uma falta de oportunidades de participação no mundo artístico profissional (Vlachou & Acesso Cultura, 2020). Tendo por base a nova visão das pessoas com deficiência e dos seus direitos, emanada da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), temos vindo a assistir à emergência de um crescente número de projetos e programas de apoio à criação e desenvolvimento de contextos e oportunidades inclusivas no mundo da cultura e das artes. Um exemplo deste tipo de iniciativas é, precisamente, o programa PARTIS & Art for Change, financiado pelas Fundações Calouste Gulbenkian e La Caixa, que tem por objetivo financiar projetos artísticos de inclusão social em Portugal. Este programa, criado em 2020, apoia, através de ações de capacitação e financiamento, organizações que desenvolvam e implementem práticas artísticas que promovam a inclusão social. O projeto A Meu Ver, em análise no presente artigo, desenvolvido pelo Teatrão, é um dos projetos financiados pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação La Caixa, no âmbito do programa PARTIS & Art for Change. Com uma duração de três anos, o A Meu Ver (2021- 2024)2 prevê a formação teatral de um grupo de pessoas cegas e com baixa visão, bem como a criação e apresentação de três espetáculos teatrais. Para o seu desenvolvimento, o projeto conta com uma parceria entre a companhia profissional de teatro Teatrão e a Delegação de Coimbra da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), com o objetivo de criar um núcleo de trabalho dedicado à prática teatral. Para o efeito, foi criada uma oficina regular de teatro, a Sala de Ensaios, que, recorrendo a uma equipa artística profissional e multidisciplinar, é responsável pelo desenvolvimento do projeto e da qual resultou já uma primeira peça, intitulada O Que É Invisível, apresentada ao público em março de 2022. O presente artigo baseia-se no trabalho de acompanhamento do primeiro ano de implementação do A Meu Ver, que procurou compreender de que forma a prática teatral contribui para a construção identitária das pessoas com deficiência visual, participantes no projeto.
O projeto A Meu Ver assume particular relevo na missão do Teatrão, dado o amplo trabalho que esta companhia profissional de teatro tem vindo a realizar, em particular a partir de 2010, na implementação de projetos de mediação com a comunidade, que envolvem uma vertente de inclusão social através das práticas artísticas. Tal como é afirmado pela própria companhia, o Teatrão (s.d.) assume
a missão de aproximar a arte teatral das comunidades e territórios, promovendo a igualdade de acesso às suas atividades por todos os públicos, através de práticas inclusivas, fruto da sua posição política sobre o papel da arte e cultura no desenvolvimento dos indivíduos e das comunidades. (para. 1)
A companhia procura, assim, intervir no dia-a-dia das comunidades onde atua e contribuir para que a arte seja reconhecida como prática essencial da sociedade. O Teatrão oferece uma grande diversidade de atividades, onde se incluem as peças de teatro para vários tipos de público (oferecendo serviços de audiodescrição e de tradução para língua gestual portuguesa), programação de espetáculos de outros criadores, formação para todas as idades e intervenção comunitária. Desde a sua criação, o Teatrão tem trabalhado para que a atividade artística seja mais acessível para todos, aproximando-a às comunidades e ao território. Após assumir os espaços da Oficina Municipal de Teatro, em 2008, a companhia tem trabalhado para que este espaço seja de proximidade, mas também investindo num trabalho de circulação das produções artísticas em circuitos nacionais e internacionais e não deixando de apostar na dimensão pedagógica e artística (Baltazar, 2021). De modo a concretizar os objetivos da companhia, foram criados diversos projetos, entre eles o projeto pedagógico e os projetos de intervenção, que procuram fazer do acesso à cultura um direito dos cidadãos.
O projeto pedagógico é o elo de ligação entre as diferentes dimensões das atividades da companhia, concretizando a crença de que o acesso à cultura é um direito, construído através de uma prática regular de hábitos culturais (Baltazar, 2021). O projeto pedagógico funciona através de seis programas: “Links”, “Turmas”, “Pastas”, “Explorações”, “Prós Grandes” e “Prós Stôres”. O programa “Links” é um espaço onde o público participa diretamente no processo de criação, interagindo com os/as artistas, através de rodas de conversa, oficinas e visitas guiadas. O programa “Turmas” funciona ao longo do ano e oferece formação contínua em práticas teatrais, orientadas por artistas convidados/as, educadores/as ou residentes, oferecendo um espaço de formação para futuros/as atores/atrizes da companhia. O programa “Pastas” inclui um conjunto de compilações de materiais de apoio produzidos pelo serviço educativo e pela investigação conduzida nos projetos da companhia. O programa “Explorações” funciona através de workshops, percursos ou visitas guiadas, faz o público contemplar e experienciar outras formas de ocupar e conviver na vida quotidiana urbana e cruzar estas experiências com a exploração da linguagem do teatro e da performance. O programa “Prós Grandes” é realizado em parceria com redes locais de apoio (centros de dia e lares), e é um projeto teatral destinado à população sénior. Por fim, o programa “Prós Stôres” é dirigido a professores/as e educadores/as e oferece cursos de curta e média duração com a possibilidade de coprodução.
O projeto A Meu Ver integra-se no programa “Turmas” do projeto pedagógico do Teatrão, e dá sequência a outros programas de formação e criação artística com diferentes tipos de comunidades (jovens de bairros sociais - 2010/2011; jovens filhos de emigrantes - 2011/2012; jovens em situação ou risco de abandono escolar - 2012/2013), que a companhia tem vindo a desenvolver ao longo da última década. É nesta vertente de mediação que se enquadra a experiência partilhada neste artigo, abrindo assim novos canais para pensar a atividade artística na relação com as suas possibilidades de mediação entre diferentes tipos de públicos, explorando ao mesmo tempo os diferentes níveis que podem assumir os seus formatos de participação cultural. No caso em particular do A Meu Ver, o desenvolvimento deste espaço de criação, formação e expressão artística abre novas possibilidades para pensar a inclusão social de comunidades muitas vezes invisibilizadas pela sociedade em geral, repensando e reformulando os formatos da participação cultural. Este projeto envolveu um conjunto de 11 pessoas com deficiência visual, cinco homens e seis mulheres, com idades compreendidas entre os 32 e os 72 anos, residentes em diferentes freguesias do distrito de Coimbra e com um nível de escolaridade bastante heterogéneo (duas pessoas com o 1.º ciclo do ensino básico; duas pessoas com o 3.º ciclo do ensino básico; quatro pessoas com o ensino secundário e três pessoas com o ensino superior). Este grupo é, também, bastante diverso no que concerne às circunstâncias de vida. Das 11 pessoas participantes, seis são casadas ou vivem em união de facto, três são solteiras e duas são divorciadas. No que concerne à condição face ao emprego: cinco pessoas estavam reformadas por invalidez devido a incapacidade permanente para o trabalho, quatro pessoas estavam desempregadas e à procura de emprego, uma pessoa estava empregada por conta de outrem e uma pessoa estava a realizar trabalho socialmente necessário no âmbito da medida “Contrato Emprego - Inserção+”.
3.2. Metodologia
A presente investigação privilegiou uma abordagem qualitativa, realizando um estudo de caso, de carácter exploratório, que decorreu entre outubro de 2021 e agosto de 2022. Os dados aqui reportados foram coletados através de quatro técnicas de recolha de dados: observação participante, inquérito por questionário, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Foi realizada observação participante em 24 ensaios, que decorreram na Sala de Ensaios da Oficina Municipal de Teatro, do grupo de participantes do projeto A Meu Ver. Foram realizadas 22 entrevistas em dois momentos temporais distintos. Num primeiro momento, que decorreu entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, foram realizadas 11 entrevistas semiestruturadas a todas as pessoas participantes no projeto. Tendo em conta o contexto de pandemia de COVID-19, as entrevistas foram realizadas presencial ou telefonicamente, conforme preferência do/a entrevistado/a. Estas entrevistas tiveram por objetivo conhecer os/as participantes; fazer um levantamento das suas expectativas; identificar as alterações produzidas pela prática teatral no seu dia-a-dia; e descrever a sua relação com as práticas culturais e artísticas. Neste primeiro momento e no início da entrevista foi aplicado um inquérito por questionário, visando a recolha de dados sociodemográficos dos participantes. Num segundo momento, foram realizadas 11 entrevistas ao mesmo grupo alvo em formato presencial ou telefónico, tal como anteriormente. Este segundo momento de entrevistas dinamizadas em abril de 2022, imediatamente após a apresentação da peça teatral produzida pelo projeto - O Que É Invisível - teve por objetivo recolher as preocupações, dificuldades e desafios enfrentados pelos participantes do projeto, identificar e recolher as estratégias de superação mobilizadas, avaliar o seu grau de satisfação com o projeto e identificar possíveis impactos da sua participação. No final do primeiro ano foram dinamizados dois grupos focais: um com os profissionais da ACAPO envolvidos no projeto e um com os profissionais do Teatrão, no primeiro caso com o objetivo de analisar a participação da ACAPO na implementação do projeto e no processo de criação artística, e, no segundo caso, de analisar o impacto do projeto no Teatrão e nos seus profissionais. No grupo focal com a ACAPO estiveram presentes três técnicas da instituição (duas técnicas de orientação e mobilidade e uma assistente social). No grupo focal com o Teatrão estiveram presentes quatro pessoas (dois elementos da estrutura de gestão e direção da companhia, assim como os dois formadores do grupo e, também, encenadores da apresentação anual). As entrevistas foram gravadas em formato áudio e, posteriormente, transcritas, tendo sido exploradas através de uma análise temática (Attride-Stirling, 2001; Braun & Clarke, 2006) que nos permitiu proceder à identificação e análise dos temas dominantes.
Todas as pessoas entrevistadas foram previamente informadas dos objetivos das entrevistas. O agendamento e realização das entrevistas teve lugar após a aceitação do protocolo de consentimento informado por parte do/a entrevistado/a, sendo que o/a entrevistador/a deu conhecimento e transmitiu a informação escrita que consta no mesmo, verbalmente e, posteriormente, questionou acerca da aceitação dos/as envolvidos/as no estudo.
4. Apresentação e Discussão de Resultados
As artes constituem uma importante ferramenta de desconstrução, questionamento e crítica social, bem como de reconstrução e apresentação de novas narrativas da realidade. No caso das pessoas com deficiência, o acesso e participação na prática artística e cultural, bem como a construção de uma linguagem própria que possa expressar as suas experiências, tem vindo a assumir um lugar de destaque e a apresentar-se como uma reivindicação e como um direito. Entre as diferentes artes, o teatro tem-se afirmado como uma prática cultural significativa dentro dos processos de resistência, na medida em que evidencia as capacidades e potencialidades dos indivíduos (Muñoz-Bellerín & Cordero-Ramos, 2020). Como espaço que permite interações e interpretações, bem como a utilização do imaginário, o teatro apresenta um elevado potencial de expressão de novos mundos e de novas experiências, bem como de afirmação de novas linguagens e de novas conceções da realidade (Muñoz-Bellerín & Cordero-Ramos, 2021). Neste sentido, podemos dizer que a atividade artística pode ser encarada como um espaço de mediação, isto é, como um espaço de fronteira que permite a comunicação e a articulação entre diferentes conceções e experiências da realidade, neste caso entre uma cultura dominante e uma nova cultura alternativa, mas também como um espaço de afirmação de direitos. Estes direitos concretizam-se, não só no acesso e na participação na atividade e na prática cultural, mas, também, na possibilidade de reconfiguração e apresentação de novos direitos de cidadania: através da formação artística; através do acesso à cultura como consumidores e, através do desenvolvimento de uma visão mais crítica e reflexiva sobre a sociedade.
No caso do projeto A Meu Ver, como pudemos verificar, a formação, prática e consumo teatral possibilitados, criou espaços de mediação que permitiram, não só, chegar a públicos tradicionalmente afastados desta arte, como são o caso das pessoas com deficiência, mas também criar um espaço para a “agência” desses mesmos públicos, tornando-os mais ativos na construção e reconstrução desta prática e, consequentemente, dos seus direitos como cidadãos e cidadãs. Como foi possível observar ao longo da implementação do projeto e, posteriormente, verificar aquando da realização das entrevistas, a prática e a experiência artística permitiu, também, uma incorporação, ou maior evidência, do teatro e das artes na autoidentificação das pessoas com deficiência participantes no projeto. Por outro lado, facilitou a coletivização da experiência da deficiência e uma maior consciência de que a maioria dos problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência não derivam diretamente das suas incapacidades, mas sim das barreiras existentes na comunidade em que estão inseridos/as.
4.1. Experiência Artística e Participação Cultural
Estes impactos do projeto A Meu Ver apresentam-se alinhados com os objetivos definidos pelo próprio Teatrão, em sede de candidatura, de tornar visível que os problemas decorrentes da deficiência estão relacionados com as formas de organização social e não com as funcionalidades do corpo. A coletivização da experiência da deficiência através da prática artística e da incorporação identitária permitiu ao projeto contribuir para a desconstrução de uma conceção médica da deficiência e para a disseminação de um entendimento social da deficiência. Como pudemos testemunhar através dos diferentes momentos de observação, a construção ficcional de outras realidades proporcionada pela prática da experiência artística criou, nesta primeira fase do projeto, uma consciência de grupo nas pessoas participantes e nas suas redes de apoio primárias. Por outro lado, a apresentação pública de um espetáculo, que resultou de um esforço conjunto entre todos/as os/as participantes, colocou na esfera pública uma tomada de posição sobre o lugar que a atividade artística pode ocupar na mediação entre a entidade o Teatrão e um grupo de pessoas com deficiência, tradicionalmente mais afastados dos circuitos culturais, entendidas como potenciais públicos ativos e participativos da atividade cultural. Os dados da observação participante e das entrevistas realizadas evidenciaram, precisamente, a preocupação da equipa de coordenação do trabalho em preservar os diferentes tipos de participação e contributos das pessoas envolvidas, quer no processo de escrita, quer de construção do espetáculo O Que É Invisível. Durante o processo de escrita e construção da peça, os/as participantes contribuíram ativamente para este processo através da formulação de opiniões, de sugestões e da apresentação de ideias específicas da expressão dos seus interesses individuais e das suas disponibilidades para assumirem determinadas funções no espetáculo, e, numa fase mais avançada de preparação do espetáculo, através da apresentação de sugestões de alteração de partes do texto e de adaptação do dispositivo cénico às necessidades específicas individuais de movimentação e de orientação espacial. Esta participação ativa das pessoas com deficiência na construção do guião, na definição, disposição e, até mesmo, construção dos elementos cénicos é bem evidente nos testemunhos, retirados das entrevistas realizadas, que transcrevemos de seguida: “sim, sim. Aquele primeiro textito inicial, aquele que estava gravado, o primeiro esboço foi eu que o fiz” (Entrevistado/a 6, entrevista, 14 de abril de 2022).
Tive, tive. Para já, antes da primeira cena, antes dessa cena ser escrita propriamente, foi conversada, foi falada, na altura, com o X [encenador], e ele escreveu essa primeira cena em conformidade com aquilo que nós já tínhamos falado anteriormente. Depois do texto, houve uma ou outra coisa que também falei com o X [encenador] - via telefone até - que fizemos essas pequenas alterações no texto. Isto em relação à primeira cena. A segunda cena, ( ... ) na questão do palco e indumentária, sim. A sugestão de vestirmos, por exemplo, de branco ou de termos vestido, pronto, estar vestidas de branco ou uma cor muito clara, foi sugestão que eu dei. A sugestão das coisas no palco, à exceção de uma coisa, também foi dada por mim: a questão da banheira, coisas que fossem já antigas, que à partida fizessem lembrar ... coisas colocadas de parte que já não se usam porque estão estragadas. ( ... ) Então, essas sugestões foram dadas, foram feitas e foi a participação que tive. Depois a ligação, toda, aquela narração, também foi apresentada, foi conversada - falei sempre com o X [encenador], que foi ele que escreveu, no sentido de obter dali a minha perceção e perceber também qual era a perceção do X [encenador], e a perceção era idêntica, sem dúvida, e depois foi construir toda essa narração: permitir que fosse aquele elo, aquela ligação entre as várias cenas. As pessoas não estarem, eventualmente, totalmente desapoiadas ou desenquadradas nesse sentido. Tive a participação. E a máscara, inclusivamente aquela máscara de gesso que estava na primeira cena, essa máscara foi feita mesmo - tive lá no Teatrão para aí uma hora e meia com gesso na cara, para fazer o molde daquela máscara. Depois foi trabalhada e foi colocada. Portanto, tive a participação em várias coisas. (Entrevistado/a 10, entrevista, 21 de abril de 2022)
Como foi possível verificar, aquando da realização do segundo momento de entrevistas, que teve lugar após a apresentação pública da peça, a participação no projeto possibilitou aos participantes acederem à prática artística teatral também como espectadores. Esta experiência significou, para algumas destas pessoas, um abrir de portas para uma nova realidade e dinâmica cultural à qual tinham pouco ou nenhum acesso. Para tal, não é despiciendo notar o investimento desta companhia de teatro na aquisição de uma cabina de audiodescrição, bem como a disponibilização de serviços de audiodescrição e de tradução para língua gestual portuguesa em todos os espetáculos levados à cena desde o início deste projeto. Esta maior participação em espetáculos é revelada por vários dos nossos entrevistados: “sim, se calhar já fui ver mais espetáculos lá no Teatrão que eu fui numa porrada de anos. Antigamente era solteiro e ia ao cinema. Acho que nunca tinha ido ao teatro” (Entrevistado/a 4, entrevista, 19 de abril de 2022)”, “mudou um bocadinho porque nos foi proporcionado outros eventos também” (Entrevistado/a 7, entrevista, 14 de abril de 2022) e “a questão do teatro permitiu-me, por exemplo, aceder mais vezes a peças de teatro. Já o fazia anteriormente, mas era só uma coisa muito esporádica. Agora, passou a ser um pouco mais consistente” (Entrevistado/a 10, entrevista, 21 de abril de 2022).
Interessante foi, ainda, verificar como a ativação deste processo de participação cultural das pessoas com deficiência visual, encetado pelo projeto, potenciou a sua maior participação na comunidade e, consequentemente, contribuiu para o seu processo de inclusão social. Este processo parece ter resultado de uma confluência de fatores entre os quais destacamos: a articulação da coordenação do projeto com a autarquia de Coimbra na efetivação e facilitação de opções de mobilidade e transporte de e para o local dos ensaios do projeto, a Oficina Municipal de Teatro; o investimento, anteriormente descrito, do Teatrão na eliminação de barreiras no acesso e experiência da prática teatral; e, de grande importância nos relatos das pessoas entrevistadas, o reconhecimento e valorização das suas vozes, opiniões, experiências e leituras. A importância dada pelas pessoas participantes ao acesso a práticas culturais e à participação nestas práticas foi bem frisada por uma das técnicas da ACAPO, responsável pelo acompanhamento deste grupo, por nós entrevistada num grupo focal:
se trata sobretudo da possibilidade de usufruir um direito como qualquer outro cidadão, o acesso à cultura tem de ser um direito, não só das pessoas com deficiência visual, mas de qualquer outra pessoa. E o facto de poder aceder à cultura com facilidade da mesma forma do que outra pessoa sem deficiência, acho que isso acaba por ser uma mais-valia e estas pessoas sentem isso mesmo ( ... ). Ou quero fazer parte ( ... ). Neste caso, é o fazer parte. (Técnica da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal - Grupo Focal 1, 18 de julho de 2022)
Os nossos dados revelam, assim, que o próprio processo de mediação cultural, neste caso específico, possibilitado pelo A Meu Ver, opera uma transformação das pessoas participantes a nível individual e social, a que acresce a componente artística já incluída na vertente de formação do projeto. Entre as mudanças a nível individual, visíveis nalgumas das vozes que reproduzimos abaixo, são de destacar: o aumento da concentração e da motivação no dia-a-dia, a maior autoestima e sensação de realização pessoal, a maior capacidade de tomada de decisão, para além das questões de posicionamento de voz e de postura corporal.
A mudança que eu sinto é, mais mesmo, eu sentir-me mais motivada. Não mudou assim mais nada de significativo, mas, pelo menos, eu sinto-me mais motivada, mais realizada. Continua a ser enquanto estou ocupada, quando cai no vazio as coisas não são assim tão simples. Pelo menos, nessa parte, tenho momentos de me sentir muito bem. Mais prolongados. ( ... ) Sim, trouxe-me vantagens. Para tornar mais fácil a minha decisão, nas participações que possam acontecer, decido-me com mais determinação. (Entrevistado/a 3, entrevista, 13 de abril de 2022)
[Entrevistador] Quer dizer que isto lhe trouxe algumas mudanças, embora poucas, mas que foram vantajosas para a sua vida? [Entrevistado] E também noto, neste momento, mais concentrada no trabalho e no meu dia-a-dia (Entrevistado/a 5, entrevista, 27 de abril de 2022).
“Mudou! Além de eu ser já positiva na minha vida, nos meus problemas, na minha situação, mudou porque eu tenho a certeza (e tenho mesmo) que a minha energia, a minha autoestima ficou muito mais, muito maior” (Entrevistado/a 9, entrevista, 18 de abril de 2022).
Sim, mais à vontade. Mais à vontade com as pessoas, mais brincalhona talvez. Mais à vontade em determinadas situações; noutras, o teatro e não só - mas é agora do teatro que estamos a falar -, veio trabalhar a parte da concentração, a parte da memória, a parte da correção postural. Veio trabalhar vários aspetos. Isso são aspetos que são integrados depois na vida quotidiana, do dia-a-dia, em vários momentos vão sendo integrados de uma forma muito normal e muito dinâmica, como as coisas é suposto serem. Portanto, não houve assim uma mudança radical, assim uma coisa... eu era assim até este ponto e, a partir dali, passei a ser de forma totalmente diferente - não, não houve essa mudança; mas houve pequenas mudanças que foram sendo integradas ao longo do tempo e continuam a ser integradas. (Entrevistado/a 10, entrevista, 21 de abril de 2022)
Este processo de transformação individual e social potenciado pela prática artística e cultural carece, no entanto, de sustentação por parte das entidades artísticas e culturais. Não obstante não ser possível afirmar que o projeto A Meu Ver produziu um impacto profundo e duradouro na estrutura e nos/as profissionais desta companhia de teatro, as palavras de um dos dirigentes do Teatrão, entrevistado em contexto de um grupo focal, evidenciam, no entanto, a existência de sensibilização para esta necessidade e direito das pessoas com deficiência, bem como de alguma permeabilidade à emergência de novas narrativas e novas linguagens teatrais:
essa noção de se começar a promover cada vez mais atividades com a participação de pessoas com deficiência vai fazer com que a estética vigente da arte comece a contemplar essas pessoas também no meio. E também, às vezes, é um exercício de humildade nossa, de perceber que, talvez, não tem de existir uma necessidade prévia nas pessoas com deficiência. Ou seja, aqui trata-se de fazer uma coisa ao mesmo tempo. Trata-se de fazer esta simbiose de apresentar e fazer, deixar que as coisas contaminem. (Dirigente e profissional do Teatrão - Grupo Focal 2, 8 de agosto de 2022)
4.2. Participação Cultural e Inclusão Social
O acesso à cultura e à prática artística apresenta-se como essencial à efetivação do direito à cultura, à afirmação de uma cultura da deficiência e à construção de uma cultura onde todas as pessoas se sintam representadas. A prática cultural proporcionada às pessoas com deficiência participantes no projeto A Meu Ver propiciou um conjunto de impactos nas suas vivências diárias que extravasaram esta dimensão cultural. Como foi possível verificar aquando da realização do primeiro momento de entrevistas, a motivação inicial mobilizadora da participação da maioria dos/as participantes do projeto foi a necessidade de uma atividade externa à sua vivência quotidiana, como bem exemplifica o testemunho deste/a participante: “é mais para sair um bocado de casa, estou sempre aqui durante o dia. À quinta-feira, quando vou, a esta hora já estou pronto, que vou apanhar o autocarro às duas e meia, ali naquela paragem” (Entrevistado/a 4, entrevista, 18 de dezembro de 2021).
Tendo em conta esta motivação, não é assim de estranhar que as principais mudanças relatadas, nesta fase, pelos/as participantes sejam de ordem social e espacial. São mudanças resultantes da maior mobilidade dos/as participantes para fora do seu contexto familiar e da sua esfera privada, produzidas pela participação nos ensaios e nas atividades do projeto. Esta mudança foi facilitada pela formação em orientação dada pela ACAPO de Coimbra aos participantes do projeto, de forma a aumentar a sua familiarização com o trajeto de e para a Oficina Municipal de Teatro, bem como o incentivo e diligências desenvolvidas pelo Teatrão de forma a promover a utilização de transportes públicos. Alguns dos testemunhos recolhidos dão conta dessa transformação: “agora em termos de transportes, passei a usar um autocarro que não me era sequer nada familiar, não usava, que é o 24T. Nunca o tinha usado anteriormente e passei-o a usar de uma forma mais habitual” (Entrevistado/a 10, entrevista, 21 de abril de 2022).
O conhecimento dos trajetos para virem autonomamente. Porque nenhum deles sabia vir ao Teatrão, nenhum. ( ... ) Nem nunca tinham vindo. ( ... ). O reconhecimento de trajetos, o elencar quais os transportes disponíveis, toda essa formação foi feita e as pessoas estão a vir e a ir de forma autónoma. (Técnica da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal - Grupo Focal 1, 18 de julho de 2022)
Este impacto é especialmente relevante já que, como tem sido denunciado, a maioria das pessoas com deficiência ainda vive em contextos de grande isolamento social, fruto da falta de acessibilidades do meio físico envolvente que as impede de saírem de casa e de se deslocarem na sua área de residência, bem como da sua manutenção em estruturas residenciais afastadas da comunidade e do mercado de trabalho, com prejuízo claro para o seu envolvimento em redes de sociabilidade e participação social. Tal como os dados dos últimos censos à população portuguesa revelaram, a percentagem de pessoas com cinco ou mais anos com uma incapacidade a viver em alojamento de tipo coletivo é muito superior à das pessoas sem qualquer tipo de incapacidade (8% face a 1,5% respetivamente) e do total de pessoas com incapacidade motora, 68,1% vive em alojamento sem acessibilidade para pessoas em cadeira de rodas (Instituto Nacional de Estatística, I.P., 2022). A estas barreiras físicas somam-se as barreiras económicas à participação social. Como também revelam os censos de 2021, do total de pessoas com uma qualquer incapacidade com 15 ou mais anos apenas 15,6% eram ativas no mercado de trabalho, por comparação a 58,5% das pessoas da mesma faixa etária sem qualquer incapacidade; acresce que 71,9% das pessoas com incapacidade apresentava como fonte de rendimento uma reforma ou pensão (Instituto Nacional de Estatística, I.P., 2022). A relevância do projeto para combater este isolamento social é clara nas palavras de uma outra técnica da ACAPO de Coimbra também entrevistada no âmbito do mesmo grupo focal:
há pessoas com ( ... ) deficiência visual que gostariam de ir e não vão pelos constrangimentos que sentem, pelas dificuldades que sentem antes de lá chegar. Em termos de mobilidade, transporte, mesmo em termos de espetáculo ( ... ), já para não falar nas outras dificuldades. ( ... ) Muitos acabam por estar isolados. Há um ou outro que não vive aqui na cidade e está mais isolado e em aldeias, meios pequenos, pronto… não tem tanta convivência. Então, eu penso que isto, para o isolamento ( ... ), penso que é muito importante. (Técnica da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal - Grupo Focal 1, 18 de julho de 2022)
A um aumento das oportunidades de interação social proporcionada pelo projeto, acresce uma oportunidade de sensibilização da comunidade face às questões da deficiência, bem como uma integração sistemática no espaço e prática teatral de todos e todas, independentemente de possuírem ou não alguma incapacidade. Este aspeto de normalização e integração sistemática da diferença é também salientado pela mesma técnica:
porque há muitas pessoas que, para além de sofrerem com o estigma de serem cegos ou baixa visão, também elas próprias não se identificam como tal e, portanto, tudo o que fazem no seu dia-a-dia tentam por tudo que não seja ligado a uma Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal. Ou seja, o participar no Teatrão e ser aqui no Teatrão, normaliza a coisa. Vai ao Teatrão quem gosta de fazer teatro e qualquer pessoa pode ir. (Técnica da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal - Grupo Focal 1, 18 de julho de 2022)
A sensibilização da e para a cultura teatral é, no entanto, o impacto mais evidente deste projeto. A facilitação e fomento do consumo desta prática artística por parte do projeto e da direção da companhia permitiu um maior acesso a espetáculos de teatro, nalguns casos mesmo uma iniciação no consumo desta prática, tendo em conta que algumas destas pessoas nunca tinha tido a oportunidade de assistir a um espetáculo de teatro. As pessoas com uma qualquer incapacidade visual, em resultado das suas necessidades específicas para experienciar uma peça teatral onde, muitas vezes, se conjugam elementos visuais e auditivos, têm estado arredadas da oferta teatral existente na grande maioria das cidades portuguesas. O projeto A Meu Ver mediou, assim, o primeiro contacto e um contacto regular e frequente com espetáculos de teatro, contribuindo para efetivar o direito à cultura e ao consumo cultural por parte deste grupo específico de pessoas com deficiência que, pelas razões anteriores, tem estado particularmente afastado. Este projeto é, no entanto, um embrião isolado daquilo que pode e deve ser feito de forma a promover o direito à cultura nas suas diferentes dimensões e níveis de participação. O trabalho está praticamente todo por fazer como ressalta um dos dirigentes do Teatrão:
sabemos o grau de dificuldade que nós temos, por isso a questão da mediação é tão importante para o Teatrão, porque está muito ligada à génese da companhia, às questões como a educação artística e à defesa que a atividade artística devia fazer parte do ensino público, que as escolas deviam ter um acesso e uma prática artística nos seus currículos, quer dizer… isto faz parte um bocadinho da nossa filosofia de trabalho. ( ... ) Há também uma necessidade dos agentes culturais e das equipas, e do próprio município ou, das pessoas que pensam as políticas culturais de terem uma formação específica nesta área. (Dirigente e profissional do Teatrão - Grupo Focal 2, 8 de agosto de 2022)
O processo de inclusão social na e pela cultura constitui, no entanto, um processo inacabado por natureza, que obriga a um constante investimento, alerta e monitorização por parte das diferentes partes envolvidas.
5. Reflexões Finais
A análise apresentada acima evidencia a importância do A Meu Ver enquanto projeto de mediação cultural entre uma organização artística e um grupo social tradicionalmente afastado desta expressão artística e cultural - pessoas com cegueira ou baixa visão - desenvolvido por uma companhia profissional de teatro. Este projeto inscreve-se num percurso desenvolvido por esta companhia ao longo dos últimos 12 anos de trabalho de ligação com diferentes tipos de comunidades por meio de projetos de formação e de intervenção artística. Esse trabalho tem permitido aprofundar metodologias de criação artística, aliadas a abordagens metodológicas das ciências sociais para o desenvolvimento de projetos de intervenção cultural e artística em comunidades distintas. Estes projetos, ao acontecerem em contextos multidisciplinares, viabilizam novos entendimentos, perceções e interpretações dos processos de criação artística e apontam novos caminhos para e formatos da participação cultural como estratégia de mediação cultural. Os processos de mediação cultural são aqui entendidos em direta articulação com os processos de acesso e participação cultural, evidenciados em múltiplas camadas e formatos. O conceito de participação cultural sofreu profundas transformações nas últimas décadas, acompanhando a mudança nas instituições culturais e nas suas práticas e produções artísticas (Ateca-Amestoy & Villarroya, 2017). Autores como Novak-Leonard e Brown (2011) assumem uma abordagem múltipla para o entendimento da participação artística que tem em conta diferentes tipos de participação, como assistir a espetáculos e atividades culturais, envolvimento artístico através dos média e criação artística ou performance. O grau de envolvimento e o controlo criativo do indivíduo na sua prática cultural é o critério usado por A. Brown (2004), classificando assim a participação cultural em diferentes camadas e formatos: inventiva, participativa, interpretativa, observacional e curadoria artística. Em suma, a participação cultural tem vindo a evoluir para formatos mais ativos, assumindo dimensões de envolvimento de diferentes tipos de audiências (Tomka, 2013). O processo de mediação no âmbito deste projeto, justifica-se no contexto e historial desta companhia de teatro, onde se entende que a atividade artístico-cultural deve ser acessível a diferentes tipos de comunidades e grupos e assumir formatos diferenciados. A criação artística deixa, assim, de ser apanágio de um pequeno grupo de artistas e passa a fazer parte integrante dos processos de construção identitária de pessoas e grupos normalmente afastados dos universos artísticos, existindo, portanto, um processo de apropriação artística do universo artístico e cultural por parte destes grupos.
Os resultados, obrigatoriamente exploratórios, que aqui apresentámos mostram a necessidade de um aprofundamento dos estudos sobre o impacto deste tipo de práticas artísticas em grupos afastados e/ou excluídos das práticas e experiências culturais. No caso específico deste projeto importa, ainda, conhecer e analisar as mudanças operadas no meio familiar dos/as participantes no projeto A Meu Ver na forma de perspetivar a deficiência e a incapacidade, ou mais concretamente a incapacidade visual, assim como aprofundar, a médio e longo termo, os impactos das atividades do projeto a nível individual e social nos/as participantes. Por outro lado, mostra-se, igualmente, pertinente recolher testemunhos junto do público dos espetáculos organizados no âmbito deste projeto, de forma a aferir possíveis alterações nas suas conceções de deficiência e das capacidades das pessoas com deficiência, bem como sobre a sua avaliação da linguagem e estética teatral desenvolvidas.
Os dados coletados e aqui reportados revelam, por um lado, a importância da acessibilidade dos espaços e dos espetáculos e criações culturais aos diferentes públicos para a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência e para a sua participação e inclusão social. Por outro lado, revelam a importância da cultura para o desenvolvimento pessoal e coletivo dos/as participantes do projeto A Meu Ver. Como ficou patente, o conjunto de práticas artísticas e culturais participativas implementadas pelo projeto permitiu identificar e reequacionar os diferentes níveis de participação cultural e de democratização da cultura. Essa democratização pressupõe, como vimos, pelo menos, a consideração de quatro fatores: a inclusão na cultura e na comunidade, a acessibilidade dos espaços e dos espetáculos, o seu repensar para diferentes tipos de públicos e a sua abertura à participação de diferentes grupos de pessoas com características e necessidades específicas. Em suma, o projeto A Meu Ver evidenciou as novas possibilidades de mediação cultural e de inclusão social que o contexto da atividade artística oferece.