1. Filme Etnográfico e Antropologia Visual
O filme etnográfico, ou o cinema etnográfico, entendido no sentido mais amplo, abarca uma grande variedade de utilização de imagens animadas aplicadas ao estudo do ser humano na sua dimensão social e cultural. Inclui, frequentemente, desde simples registos até produtos de investigação muito elaborados. Os métodos do cinema etnográfico são também muito variados, associados a tradições teóricas diferentes, como a meios e procedimentos utilizados na sua realização. Assentam, no entanto, em alguns princípios fundamentais: uma longa inserção do investigador no terreno ou meio estudado, frequentemente como participante, uma atitude não diretiva (ou autoritária) fundada na confiança recíproca, valorizando as falas das pessoas envolvidas na pesquisa (interlocutores), uma preocupação descritiva baseada na observação e escuta aprofundadas independentemente da explicação das funções, estruturas, valores e significados do que descrevem.
O seu nascimento é frequentemente referenciado como o nascimento do próprio cinema: para Claudine de France (1989), com os primeiros filmes Lumière, a partir de 1898. Para Emilie de Brigard (1979), o primeiro filme etnográfico terá sido realizado em 1895 por Félix-Louis Regnault, médico especializado em anatomia patológica que, com a ajuda do assistente de Etienne-Jules Marey, filmou uma mulher uólofe2 a fabricar uma peça de olaria na exposição etnográfica da África Ocidental. Neste filme, existe uma intenção científica explícita: a de descrever uma técnica de cerâmica intermediária entre a executada sem roda e aquela com roda horizontal (Piault, 2000). Só nos anos 1950, o filme etnográfico se torna uma disciplina institucional com especialistas reconhecidos e critérios (Brigard, 1979). É, porém, André Leroi-Gourhan (1948) ao apresentar o seu trabalho intitulado “Le Film Etnographique Existe-t-Il?” (O Filme Etnográfico Existe?) ao “Congresso Internacional de Etnologia e Geografia Cinematográfica”, em 1948, que marca o nascimento do filme etnográfico, colocando em pauta a discussão do lugar que lhe deve ser atribuído na pesquisa antropológica e na exposição de resultados.
Na expressão cinema etnográfico ou filme etnográfico, a palavra “etnográfico” tem duas conotações distintas. A primeira é a do assunto que trata - ethnos, “povo”; graphein, “um escrito”, um desenho, uma representação. O filme etnográfico seria “a representação de um povo através de um filme” (Weinberger, 1994, p. 4). Neste sentido se enquadram os filmes Nanook of the North (Nanook do Norte; 1922) de Robert Flaherty e os ensaios sobre o cinema etnográfico escritos por McDougall (1979), Asch (1975), Marshall e Brigard (1975), análises feitas por cineastas que fotografaram ou filmaram culturas exóticas. A segunda conotação do termo “etnográfico” é a de que há um enquadramento disciplinar específico dentro do qual o filme é ou foi realizado. Esse enquadramento é, em primeiro lugar, o da etnografia enquanto descrição científica associada à antropologia. Neste sentido, a série de filmes de Asen de Balikci e Guy Marie-Rousselière sobre os esquimós netsilik e os escritos de Jay Ruby (1975) podem considerar-se etnográficos e antropológicos. O cinema etnográfico era sobretudo descritivo. As imagens, funcionando como arquivos de uma enciclopédia sobre as sociedades não industriais, exóticas ou rurais, eram captadas segundo os programas da antropologia clássica. Descrevem as técnicas, o habitat, o artesanato, as diferentes formas de agricultura, os rituais, as cerimónias. Para Brigard (1979), a mudança mais notável do filme etnográfico desde as origens apareceu claramente depois da Segunda Guerra Mundial. Consistiu no deslocamento do centro de interesse da câmara. Esta já não olha do exterior para um mundo exótico, mas do interior para o seu próprio meio.
Para Eliot Weinberger (1994), o “cinema etnográfico pode ser um subgénero do documentário ou um ramo especializado da antropologia e equilibra-se precariamente nos limites de ambos” (p. 47). Alguns autores como Jay Ruby (1975), Emile de Brigard (1979, Heider (1976) e Eliot Weinberger (1994) argumentam que todos os filmes são etnográficos: “qualquer filme por mais ‘ficcional’ é um documento da vida contemporânea” (Weinberger, 1994, p. 4); e, ainda, “é habitual definir filme etnográfico como um revelador dos modelos culturais. Segundo esta definição, depreende-se que todos os filmes são etnográficos pelo conteúdo, pela forma ou por ambos. No entanto, alguns filmes são nitidamente mais reveladores do que outros” (Brigard, 1979, p. 27). Na verdade, os filmes de ficção como resultados de um processo criativo não são puras ficções: “eles têm uma pretensão à evidência quotidiana, à experiência; sugerem um espaço, uma história, uma linguagem, um olhar sobre o mundo” (Augé, 1997, p. 54).
Habitualmente, são apontados como pais fundadores do cinema etnográfico Dziga Vertov e Robert Flaherty. No entanto, Piault (2000, p. 53) acrescenta ainda outros nomes: Edward Curtis, Thomas Reis, Jean Vigo, Jean Epstein, Alberto Cavalcanti, John Grierson, Walter Ruttmann, Luis Bunuel e Joris Ivens, entre outros.
Jean Rouch (1917-2004) é figura incontornável e a referência primeira do cinema etnográfico, não apenas pela quantidade de filmes realizados, mas pela qualidade das obras, a contínua inovação nos procedimentos de pesquisa, a criação de estruturas fundamentais para o desenvolvimento do género - a criação do Comité do Filme Etnográfico, em 1953, do Bilan du Film Ethnographique, atualmente “Festival International Jean Rouch”, cuja 44.ª edição se realizou em 2022, e a organização da formação em França e sua expansão/extensão a muitos países da Europa, África, Ásia, América Latina, nomeadamente através dos Ateliers Varan.
Jean Rouch, engenheiro, cineasta-antropólogo ou antropólogo-cineasta, nasceu em Paris em 31 de maio de 1917. Formou-se, em 1941, em engenharia civil pela École des Ponts et Chaussés e deixou a França, com mais 20 engenheiros, no mesmo ano, para trabalhar na construção de caminhos de ferro em África. Aí descobriu os mistérios da religião e da magia Songhai3, decidindo estudar etnologia. Em Paris, frequentou os cursos de Marcel Mauss e de Marcel Griaule. Iniciou o doutoramento com Marcel Griaule sobre os Songhai em 1947, que terminou em 1952. Em 1953, com Henri Langlois, Enrico Fulchignoni, Marcel Griaule, André Leroi-Gourhan e Claude Lévi-Strauss, fundou o Comité do Filme Etnográfico. Faz o seu primeiro filme em 1947 - Au Pays des Mages Noirs (No País dos Magos Negros). Da sua obra cinematográfica constam cerca de centena e meia de filmes. A sua influência prolonga-se até à atualidade no cinema e na antropologia. Foi reconhecido, primeiro, pelo cinema e só posteriormente começou a ser reconhecido na antropologia. Influenciou as práticas da antropologia visual debatidas no primeiro “Congresso de Antropologia Visual”, em 1973. Os filmes de Jean Rouch tornaram-se referência paradigmática (Ginsburg, 1999) e escola, continuada em múltiplos lugares: na Universidade de Nanterre, com os cursos de cinema, audiovisual, cultura e sociedade, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, Marselha) e noutras instituições como os Ateliers Varan, que expandiram a formação em cinema um pouco por todo o mundo.
Entre os numerosos filmes de Rouch é difícil destacar algum em particular, uns porque constituem documentos importantes na história, sociedade e cultura africanas como Les Fêtes du Sigui4 (As Festas do Sigui; 1967-1974), Sigui Synthèse, L’Invention de la Parole et de la Mort (Síntese de Sigui, A Invenção da Fala e da Morte; 1981), ou as iniciativas cinematográficas em Moçambique, outros porque constituem processos criativos inovadores, tanto na antropologia como no cinema. Refiro-me sobretudo a Les Maîtres Fous (Os Mestres Loucos; 1955), Moi, un Noir (Eu, um Negro; Rouch, 1958), La Pyramide Humaine (A Pirâmide Humana; 1961) e Chronique d’un Été (Crónica de um Verão; Rouch & Morin, 1960).
Tanto a antropologia como o cinema estabeleceram, desde o início do século XIX, uma relação entre o “indígena” ou “nativo” e os pobres das sociedades europeias. A figura do selvagem primitivo era prolongada pelo excluído europeu (Kilani, 1994). Eram, assim, incluídos indigentes, agricultores, montanheses, os que a ação civilizadora da ciência procurava reabilitar para a sociedade moderna. A antropologia tinha, além de um carácter romântico, de “preservação”, “conservação” das sociedades tradicionais, o filantrópico de integração de excluídos, ambos valores da sociedade moderna. Expulsa dos seus campos tradicionais, a antropologia em casa (Davies, 1999) ou antropologia endótica (Kilani, 1994), não só não soube voltar-se para o centro, o que raramente fizera durante o processo colonial, como mantém as duas grandes divisões - externa: diferença radical; e interna: diferenciação natureza/cultura e, consequentemente, ciência e sociedade, coisas e signos - e perdeu mesmo algumas das suas melhores características - objetivos holísticos.
Les Maîtres Fous é um dos filmes mais conhecidos, mas também objeto de muitas polémicas entre os antropólogos e mesmo junto de comunidades africanas. Não deixa, porém, de ser um dos mais relevantes filmes etnográficos, por lidar com questões epistemológicas importantes e centrais para a antropologia.
O objetivo de Marcel Griaule era sobretudo vinculado a uma antropologia de urgência, isto é, visava registrar rituais que estavam desaparecendo. Rouch aborda em Les Maîtres Fous a reconfiguração do ritual na sociedade atual, enfatizando a perceção de ritual e de sociedade na construção da narrativa.
Rompia com uma forma de fazer antropologia que apostava na integração do social pelo ritual e este como forma de experiência desta representação da integração. Les Maîtres Fous apontavam desde o título para uma ambiguidade que colocava em suspenso a questão: qual a sociedade que se representava no ritual? A africana, a dos britânicos, ou as duas ao mesmo tempo? Assim, Les Maîtres Fous instala um novo olhar sobre o que era uma sociedade e refletia um momento de transição por que passava a África Ocidental. O interesse de Rouch estava em pessoas deslocadas, migrantes que viviam em grandes cidades, a vida urbana e o fenômeno da possessão e, neste sentido, Rouch fizera parte do Iluminismo e sua antítese, a sombra em torno da luz (Grimshaw, 2001, pp. 91-92). Rouch encarnava no melhor sentido do termo esta condição do etnógrafo moderno: ao mesmo tempo que tinha o fascínio pelos rituais autênticos dos dogon, conforme haviam sido apresentados minuciosamente por Griaule, os quais Rouch filmou 40 anos depois, do mesmo modo que Griaule o havia escrito, tinha também a consciência de que essa experiência não é possível no mundo moderno (Gonçalves, 2007, pp. 35-36).
Em Chronique d’un Été, Rouch e Morin superam as dificuldades de a antropologia se adaptar às novas situações, voltando-se para o centro. São abordados temas tais como: a cidade, os jovens, as relações entre operários e estudantes, o debate político, a descolonização - a guerra da Argélia, a independência da República do Congo e até uma pequena referência a Pândita Nehru, primeiro-ministro indiano entre 1947 e 1964 e responsável pela integração dos territórios na Índia (nomeadamente, os territórios sob dominação portuguesa), a vida na cidade, o bal-musette (baile da festa nacional francesa do 14 de julho), a produção industrial, os percursos urbanos dos operários, as periferias da cidade, o problema da habitação, as frustrações perante o trabalho, na vida íntima e na realização pessoal, o dealbar da sociedade de consumo e das preocupações monetárias como forma de felicidade.
A abordagem do exótico e do longínquo, que marcara os filmes anteriores de Jean Rouch, é colocada numa situação de igualdade com o endótico, o próximo, o familiar, o quotidiano das nossas sociedades (Chronique d’un Été) ou com a interação entre os mundos dos tradicionalmente observadores com os dos tradicionalmente observados (La Pyramide Humaine). A observação como atividade visual, o saber ver, é agora acompanhada de palavras e sonoridades localmente produzidas, o saber ouvir, o saber escutar. A relação entre observados e observadores (quem é quem neste processo?) transforma-se. A antropologia também é o saber estar com - com outros e consigo, mesmo quando nos encontramos com os outros. Finalmente, é ainda uma atividade de construção do discurso audiovisual, integrando as possibilidades técnicas de registo do som síncrono, audiovisual. Isto tem marcas profundas de afinidade com novas formas emergentes no cinema - cinema direto, o “novo cinema-verdade” (Morin, 1960), cinema observação, cinema interação (antropologia partilhada). Este período e a influência de Jean Rouch prolongam-se até à atualidade.
Em Chronique d’un Été, Jean Rouch superava ainda, e simultaneamente, dois constrangimentos técnicos que dificultavam o desenvolvimento do filme exploratório ou de pesquisa: a tomada em direto do som síncrono e uma câmara ligeira que lhe permitia acompanhar a ação dos personagens - câmara ativa vertoviana. A colaboração estreita entre Rouch, bricoleur nato, e o engenheiro Coutant, permitiu a criação de um protótipo de uma câmara utilizada em Chronique d’un Été e contribuiu para fazer progredir rapidamente as técnicas de registo de som e de imagem. Rouch reunia na sua equipa Michel Brault, credenciado operador de câmara, realizador e produtor do Quebec, e Edgar Morin, que neste filme se iniciava na prática do cinema e empreendia um novo método de trabalho: um filme baseado na palavra, no diálogo natural, captado em direto. Este novo método permitia-lhes acercarem-se das pessoas, num dos seus redutos: a palavra, instrumento por excelência da comunicação humana. Procurava, assim, as coisas secretas, recalcadas, esquecidas, que emergem da palavra (as representações mentais). Produzia também um filme profundamente inovador no meio cinematográfico francês: no plano formal, porque pela primeira vez o “som e a imagem passeavam em conjunto, com as personagens em movimento, a câmara de Michel Brault investigava as personagens, filmava em torno delas, ‘esculpia-as’” (Marsolais, 1974, p. 270). Neste filme, as personagens não são colocadas numa situação de psicodrama, nem chamadas a reviver uma situação passada, estão na vida de todos os dias. Pela provocação ou pela confiança nos realizadores (Morin e Rouch), são convidadas a exprimir-se, a revelar a sua verdade. A câmara ora se torna discreta, ora interveniente, tendo como objetivo provocar e testemunhar a confissão. É um filme orientado, sobretudo, para o problema da comunicação, não apenas no seu aspeto formal e superficial, mas ao nível da revelação dos verdadeiros problemas que não se comunicam.
2. Chronique d'un Été: 50 Anos Depois
Em 2008, os materiais, imagens e sons não usados na montagem final deste filme foram digitalizados e o som restaurado e sincronizado. A partir destes materiais revisitados por Edgar Morin e pelos principais atores do filme - Régis Debray, Jean-Pierre Sergent, Marceline Loridan-Ivens, Nadine Ballot - e pelos comentários do investigador Raymond Bellour e da realizadora Florence Dauman, produtora e diretora da sociedade Argos Film, produtora de Chronique d’un Été, produziu o filme Un Été + 50 (Um Verão + 50; Dauman, 2011; https://www.allocine.fr/film/fichefilm_gen_cfilm=196828.html). O filme resulta, pois, de sequências inéditas do filme realizado em 1960, relidas pelas conversas com seus atores 50 anos após a rodagem.
A primeira montagem de Chronique d’un Été (Rouch & Morin, 1960) deu origem a uma obra final de cinco horas, versão desconhecida. Posteriormente, Jean Rouch e Anatole Dauman (pai de Florence Dauman) fizeram uma montagem final de 85 minutos. Esta redução deu origem a divergências entre Rouch e Morin, sanadas muito mais tarde, mas deixou muitas sequências que permitem conhecer os processos de criação, contextos de realização, integração pelo cinema de muitos dos atores do filme. Permitem também a releitura desta importante obra de referência - “filme extraordinariamente importante… um projeto singular [único] pela confrontação destas duas individualidades [Rouch e Morin] e de suas duas experiências: sociologia sem cinema e o cinema etnográfico em África” (Raymon Belour em Dauman , 2011, 00:02:04) - no cinema e fazer a sua etnografia e a crítica genética, o acompanhamento teórico-crítico do processo de criação.
Cinema e etnografia, ambos se interrogam sobre o que é a realidade e o imaginado, a multiplicidade de pontos de vista, a importância dada ao detalhe, ao pormenor. Como os fenómenos sociais, o cinema é visual e sonoro. O cinema altera o nosso conhecimento, a nossa perceção do sensível, suscitando um conhecimento simultaneamente do real, do imaginado e de reflexão sobre o real imaginado, real construído. O filme, cada filme, é, pois, um campo privilegiado de pesquisa antropológica, para a descrição etnográfica e a reflexão antropológica. Assim se passa também com o processo criativo e as dinâmicas de realização, construção, produção e circulação do filme. Un Été + 50 (Dauman, 2011) mostra-nos claramente isto mesmo. Mostra-nos também como esta figura do antropólogo-cineasta é boa para pensar ambos os saberes - a antropologia e o cinema. Rouch afirmava numa entrevista dada em 1981 a Enrico Fulchignoni:
o cinema, a arte do duplo, é já a passagem do mundo real para o mundo imaginário e a etnografia, a ciência dos sistemas de pensamento dos outros, é a contínua passagem de um universo conceptual a um outro, uma ginástica acrobática em que perder o pé é o menor dos riscos. (Stoller, 1994, pp. 96-97)
Esta mesma estratégia reflexiva é apresentada, em forma de comentário, pela voz de Jean Rouch em Chronique d’un Été: “este filme foi feito sem atores, mas vivido por homens e mulheres que dedicaram parte do seu tempo a um experimento novo de cinema verdade” (Rouch & Morin, 1960, 00: 01.10). O som síncrono e rolos de película mais longos permitiram realizar a intenção de Rouch e Morin de deixar nos filmes as marcas da passagem da ideia ao filme.
O filme começa com uma proposta e um ensaio do experimento que Rouch e Morin pretendem realizar. Parecia, pois, que este experimento era demasiado simples. No entanto, as primeiras imagens do filme apontam de imediato para a sua ambiciosa pretensão. Na verdade, propõe-se emparelhar com as excelentes e inovadoras realizações aparecidas e premiadas da época, rivalizando com elas: Miracolo a Milano (Milagre em Milão; 1951) de Vittorio de Sicca, Les Vacances de Monsieur Hulot (As Férias do Senhor Hulot; 1953) de Jacques Tati, Hiroshima Mon Amour (Hiroshima, Meu Amor; 1959) de Alain Resnais, La Dolce Vita (A Vida É Bela; 1960) de Federico Fellini, La Source (A Fonte da Virgem; 1960) de Ingmar Bergman, Rocco i Suoi Fratelli (Rocco e os Seus Irmãos; 1960) de Luchino Visconti, e situar-se na história do cinema dando continuidade ao cinema-verdade de Vertov e integrar-se nos contextos destas obras-primas do cinema europeu.
A complexidade e a riqueza de Chronique d’un Été (Rouch & Morin, 1960) resulta da mistura e da imbricação entre a vida e o cinema em todos os níveis do filme. O que cativa os atores, afirma Morin (1960), é a ação do cinema na vida real, a maneira como as pessoas, tornadas personagens, libertam qualquer coisa de suas preocupações profundas perante o olhar da câmara. O filme expõe-se como um trabalho em curso submetido aos insólitos técnicos e humanos de rodagem vividos como um encontro. O filme, escreve Morin (1960), após a sua realização “é híbrido e é essa hibridez que faz tanto a sua enfermidade quanto a sua interrogatividade”. Em Cronique d’un Été, temos não só estes elementos inscritos no filme, mas também nos escritos ou entrevistas dos autores que prestam informações acerca do processo criativo - fontes inspiradoras, processos de criação, fotografias da rodagem, tecnologias utilizadas, atores ou personagens a abordar no filme, mas sobretudo muito material filmado que permaneceu fora da montagem definitiva - montagem que entrou nos circuitos de distribuição e exibição. O filme Un Été + 50, de Florence Dauman (2011), constitui um documento precioso para um olhar retrospetivo sobre este filme, considerado hoje um clássico no âmbito do cinema documentário e da antropologia. O filme de Florence Dauman (2011) traz-nos um duplo olhar sobre o passado dos atores depois de 50 anos e suas próprias imagens que ficaram no filme, ou fora dele, como material não montado na cópia definitiva, permitindo-nos, assim, ver e reconstruir o processo de realização do filme; faz surgir, ou ressurgir, a emoção íntima em que se sobrepõem a vida e o cinema; mostra-nos o contexto sociopolítico da sua realização - mise-en-situation filmée - filmar um acontecimento vivido. O próprio genérico do filme informa sobre o prémio da crítica internacional obtido em Cannes em 1961, as tecnologias utilizadas, a restauração das imagens e sincronização do som e uma banda-sonora de fragmentos do som da rodagem em que se revela a primeira ideia do título do filme e a divergência numa conversa telefónica entre Rouch e Morin no início do filme - Rouch discorda da proposta de Morin Un Été Pourri (Um Verão Terrível); “sem título não há filme”, e das temáticas abordadas que contextualizam a situação política em França - a guerra na Argélia (Dauman, 2011, 00:00:01) e Raymond Bellour situa este “filme único” no contexto da nouvelle vague e traça a biografia de seus autores (00:01:20).
A ideia do filme Chronique d’un Été de Jean Rouch e Edgar Morin (1960) nasceu em Florença, onde ambos se encontraram, como elementos do júri do recém-criado “Festival dei Popoli”5 -“Festival Internacional do Filme Etnográfico e Sociológico” e inspira-se no filme Come Back, Africa (De Volta à África)6 de Lionel Rogosin (1960), com Miriam Makeba, e em que a palavra é improvisada, vivida e filmada. Este filme influenciou particularmente Edgar Morin (1960) que, regressado do Festival, escreveu no France Observateur o artigo “Pour un Nouveau Cinema Verité” (Por um Novo Cinema-Verdade). Neste artigo, Morin afirma que “o cinema de ficção atinge as verdades mais profundas, mas há uma verdade que não consegue apreender, é a autenticidade da experiência vivida” (Morin, 1960). Morin considera, ainda, que perante a câmara muito pesada e pouco móvel (presa ao tripé) a vida, de repente, se escapa e se fecha provocando uma paragem na fluidez do quotidiano - “intimidade da vida quotidiana realmente vivida” e a perda da vivacidade. Também, perante a câmara, todos se mascaram, perdendo-se, pois, a autenticidade. Conclui, pois, Edgar Morin (1960):
o cinema não pode penetrar na intimidade da vida cotidiana realmente vivida ( ... ) o cinema-verdade estava, portanto, em um impasse, se quisesse apreender a verdade das relações humanas no local. ( ... ) Todo o cinema documentário ficou exterior aos humanos, renunciando a lutar no terreno com o filme de ficção.
Para Morin, autenticidade, verdade, intimidade e captação do vivido no novo cinema-documentário constituem uma síntese de duas tendências contraditórias: a captação do vivido é a superfície; a intimidade e a profundidade limitam a vivacidade. O desafio do filme seria “o íntimo captado pelo vivido” (Morin, 1960). As palavas, as sonoridades, a fala dos participantes no filme (realizadores e atores - sociais e do filme) tornam-se verdadeiramente importantes e o som direto síncrono7 imprescindível para a concretização deste desafio. O que mais interessava a Morin eram os diálogos, a palavra falada e o que esta trazia de mais-valia para o cinema falado.
Considerava Morin (1960) que só Jean Rouch, “cineasta-mergulhador que se entranha no meio real”, seria capaz de iniciar este cinema. Para tal, previa um dispositivo técnico que permitisse grande liberdade, uma renúncia a uma estética formal e o facto de procurar na vida realmente vivida seus segredos estéticos. A ideia seria a de revelar a beleza da vida, mais que tentar a sua “estetização” por processos formais. Este conceito permitiria aliar beleza e verdade estética, introduziria a ideia de uma beleza descoberta e não trazida do exterior. Propôs, então, a Jean Rouch que fizessem um filme em França sobre o tema “como vives?”. O filme resumir-se-ia, assim, em três frases que expôs a Anatole Dauman, que viria a ser o produtor do filme: problemas materiais/económicos e morais/psicológicos; as mais-valias que a palavra falada trazia para o cinema (Dauman, 2011, 00:03:51); só Jean Rouch poderia concretizar esta experiência. À partida, Edgar Morin via um filme feito de coisas do quotidiano, tomadas da vida das pessoas, de conversas com elas como em Come Back, Africa. Un Été + 50 descreve as negociações com o produtor, contadas por Morin na atualidade e vividas na época por Rouch e Marilù (Dauman, 2011, 00:02:40). Revelando também o envolvimento dos atores, uma constante no filme (uso do sinal de início da rodagem por Jean Pierre, Marceline e Nadine Ballot no inquérito de rua), no processo de realização, no visionamento e apropriação das imagens e da obra (no filme original e em Un Été + 50).
Depois do encontro com o produtor - Anatole Dauman - foram contactadas e construídas as personagens a partir das redes sociais de Morin e Rouch (bande Morin e bande Rouch) - os jovens trabalhadores da Renault, Jacques Gabillon e Angelo Borgien; Angelo Borgien tornou-se uma personagem importante no filme com Marilù Parolini, uma imigrante italiana das relações próximas de Morin; Marceline Loridan-Ivens, uma antiga deportada em campo de concentração, que acabara de conhecer; Jean-Pierre Sergent, um estudante (numa situação de relação amorosa difícil com Marceline); Jacques Galillon, um empregado do caminho-de-ferro e a esposa. Rouch, que acabara de realizar La Pyramide Humaine, convidou, entre outros, Nadine Ballot, estudante que conhecera na Costa do Marfim e viria a tornar-se atriz em La Pyramide Humaine e noutros filmes de Rouch, como Gare du Nord (Estação do Norte; Rouch, 1964), La Punition (A Punição; 1962), Les Veuves de Quinze Ans (As Viúvas de Quinze Anos; 1964). Também convidou Régis Debray, estudante da Escola Normal Superior de Paris; Landry, um jovem africano estudante de medicina; e Michel Brault, que tinha ido no ano anterior à Califórnia para conhecer Rouch, convidado por Rouch para vir trabalhar com ele em Paris.
A guerra na Argélia, a participação ou a deserção dos jovens (fora da montagem final do filme; Dauman, 2011, 00:21:25) e a independência do Congo em 1960, até então propriedade particular do rei dos belgas, constituíam marcas do contexto socio-histórico da realização do filme e do contexto socio-histórico dos acontecimentos, das preocupações e da consciência e das divergências políticas dos jovens. Os temas das conversas com os atores eram as questões da vida quotidiana - o individualismo e preocupações monetárias, o dinheiro, a vida privada das pessoas, o amor, as relações entre géneros, o tédio, a imigração, o racismo, o encontro de dois grupos sociais que se desconhecem, operários e estudantes (premonitório do maio de 1968, em que conjuntamente se manifestaram, mas realmente não se encontraram nem questionaram reciprocamente; Dauman, 2011, 01:00:05), as férias (a ida a Saint-Tropez, ideia de Morin), a praia, o mar, as estrelas de cinema (encontro de Nadine, Landry e Nicole), e as conversas sobre o conflito entre Jean-Pierre Sergent e Marceline8.
Na montagem, conseguiram uma primeira versão de cinco horas e uma outra de hora e meia, que Jean Rouch e Anatole Dauman consideraram muito boa, mas que deixara Edgar Morin num estado de perplexidade, da qual não saiu senão depois de 20 anos. Na resolução deste problema, funcionou a autocensura. Por um lado, a guerra da Argélia - Jean-Pierre estava na rede pro-Frente de Libertação Nacional -, por outro lado, a vida privada das pessoas e diálogos mais íntimos, que seriam banais após o maio de 1968, mas que aqui constituíam uma primeira exposição pública que mais tarde, em 1964, Pier Paolo Pasolini levaria mais longe em Comozi d’Amore (Comícios de Amor)9. Os diálogos íntimos entre Jean-Pierre e Marceline são formalmente diálogos de um filme de ficção (Dauman, 2011, 00:39:13).
Ambos, Rouch e Morin, consideraram a necessidade de uma tecnologia ligeira, uma câmara hipermóvel, e a ideia era de uma câmara provocadora que se vê, que se manifesta, que perturba profundamente a pessoa que filma e a pessoa filmada.
As diferenças e complementaridade de Jean Rouch e Edgar Morin são manifestas no filme. Edgar Morin é um importante e muito conhecido sociólogo - “um grande sociólogo e um grande conhecedor do cinema e da sociologia” (Dauman, 2011, 00:01:39). São conhecidas suas obras sobre o cinema: O Cinema ou o Homem Imaginário (Morin, 1956) e As Estrelas do Cinema (Morin, 1957), e o artigo publicado no France Observateur, em janeiro de 1960. Também aqui há muitas e interessantes histórias para contar no percurso epistemológico do autor (transdisciplinaridade, complexidade, reciprocidade via para a teoria e economia da reciprocidade) e que lançam alguma luz na génese do filme Chronique d’un Été. Publicou também com Jean Rouch Chronique d’un Été (roteiro do filme; 1962). Morin tem no filme um papel mais ideológico e militante; Rouch, uma posição mais interlocutora, etnográfica.
Podemos dizer que Rouch e Morin fazem cinema híbrido direto/cinema-verdade de múltiplas influências e participações (como, por exemplo, Michel Brault). Usam os meios técnicos próprios do cinema direto - câmaras ligeiras (Coutant-Mathot e Nagra), equipas reduzidas, som direto, luz natural (https://www.avoir-alire.com/chronique-d-un-ete-la-critique-le-test-dvd). Mas usam-nos como uma espécie de provocação à expressão livre, esperando dos seus personagens um envolvimento inexistente noutras escolas do documentário. Trata-se de um procedimento que se quer científico, já que os meios técnicos eram usados por etnólogos, sociólogos, e não pelos jornalistas. Esta utilização do aparatum (meios técnicos específicos e procedimentos) punha em causa tudo o que Michel Brault havia adquirido como a linguagem específica do cinema direto.
A presença de Rouch e Morin e do aparatum em cena não deveriam ser dissimuladas. Tornavam-se eles próprios protagonistas do filme na apresentação inicial da ideia do filme e nas negociações/instruções dadas às entrevistadoras (Marceline e Nadine).
É no plano da linguagem que a originalidade dos procedimentos de Rouch se torna mais notada. Em Chronique d’un Été, a relação do entrevistador com os protagonistas se não é inteiramente nova, cria uma nova relação com os protagonistas (a entrevista dá lugar a conversas entre interlocutores).
É também um filme híbrido, situando-se entre o documentário e a ficção. A personagem reinventa livremente a sua história sem nenhuma encenação: (a) este procedimento evita a dramatização da narrativa, que viciou o neorrealismo, procurando numa mensagem as possibilidades de revelação do comportamento; (b) a câmara não é para Rouch um obstáculo à expressão dos protagonistas, mas ao contrário um “incomparável estimulante”. Os próprios protagonistas participam na rodagem, dando sinal de arranque da câmara e sincronismo (claquete). Trata-se de obter, graças à cumplicidade das personagens não dirigidas e sem roteiro/guião, a realidade à medida que acontece - como é a própria vida dos jovens descrita por Marceline e referida acima: “nunca sei o que vou fazer no dia seguinte. Eu tenho um princípio de que o amanhã pode cuidar de si mesmo. Para mim aventuras estão sempre ao dobrar da esquina” (Marceline em Rouch & Morin, 1960, 00:03:56).
Un Été + 50 (Dauman, 2011) apresenta uma reflexão final, em forma de mosaico polifónico, sobre Chronique d’un Été pelas palavras atuais de seus atores - Debray, Sergent, Marceline, pelo investigador em cinema Raymond Bellour e pela conversa final não integrada na versão original do filme (00:58:57). Nesta abordam-se questões que esclarecem e dão nova vida à obra de Rouch e Morin:
a construção das suas próprias personagens no filme; o filme como premonitório de qualquer coisa (maio de 1968? - interrogação de Rouch e Morin);
a compreensão geral nas relações de uns com os outros e as dificuldades dessa compreensão;
as “conclusões ambivalentes de nossa aventura” (Morin) - um filme de férias. As férias terminaram. O que se passou durante essas férias e durante a realização do filme no mundo (no Congo, na Organização das Nações Unidas, em França) e nas pessoas do filme;
o objetivo central do filme, a partir dos resultados do inquérito apresentado no filme;
a evolução das pessoas no filme (sobretudo Marilù, que encontra um novo emprego e estabilidade afetiva);
a expressão dos atores perante a câmara (salientando Marceline - a personagem principal do filme);
a “filmoterapia paradoxal ao inverso” (Dauman, 2011, 01:04:35), de que Rouch e Morin são responsáveis;
a posição frente ao trabalho.
Os comentários finais de Raymond Bellour são sobre as técnicas de rodagem, o foco, a câmara síncrona, a importância totalmente determinante do som - “torna-se imagem” -, a capacidade de penetrar nos interstícios da realidade. O filme fecha com as palavras de Marceline, 50 anos depois, ao lado de uma bobine com filme para rodar - “deste filme agradeço a Jean de o ter feito. Há uma verdade neste filme, não o cinema verdade, mas uma autenticidade de todos esses personagens” (Dauman, 2011, 01:06:40) e de Jean-Pierre:
no filme a verdade é discutível… mas uma realidade que se mostra quaisquer que sejam as circunstâncias em que se passe é o grau de sinceridade. Há pessoas que se encenam elas mesmas. Marceline se encena ela mesma. Está muito consciente daquilo que faz. Na discussão estou consciente do papel que desempenho… há uma espécie de espontaneidade mais autêntica das pessoas… É isto que faz o charme e a força deste filme. (Dauman, 2011, 01:07:04)
As afirmações de Morin levam-nos hoje a novas reflexões sobre o cinema, sobre a relação do cinema com o vivido e com o autobiográfico, ou o auto-socio-biográfico, e não apenas no cinema como nos mostra Annie Erneaux na literatura.
Marceline Loridan-Ivens, personagem principal do filme, realizou com Jean-Pierre Sergent o filme Algerie, Année Zéro (Algéria, Ano Zero; 1962) e com Joris Ivens, com quem veio a casar, Le 17ème Parallèle (O Paralelo 17; 1968), Une Histoire de Ballon, Lycée n° 31 Pékin (Uma História de Balão, Liceu n.º 31, Pequim; 1976), Comment Yukong Déplaça les
Montagnes (Como Yukong Moveu as Montanha; 1976), Les Kazaks (Os Kazaks; 1977), Les Ouigours (Os Uigures; 1977), Une Histoire de Vent (Uma História do Vento; 1988). Foi também atriz e roteirista/guionista. Marilù Parolini trabalhava na Câmara de Comércio italiana, encontrou Jacques Rivete e passou a trabalhar nos Cahiers du Cinéma. Régis Debray, filósofo, jornalista, escritor, seguidor de Althusser, amigo de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, descendente de uma família abastada, doutorou-se na Escola Normal Superior e ensina filosofia na Universidade de Lyon. Nadine Ballot, atriz no filme Chronique d’un Été - entrevistadora com Marceline -, e noutros filmes de Rouch, desempenhou também pequenos papéis em filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Jean Rouch, que fez uma centena e meia de filmes e é personagem física ausente, mas a mais referida em Un Été + 50, e foi colocado pelos dogon num funeral simbólico, como antes acontecera com Marcel Griaule, na Falésia de Bandiagara. Neste funeral, os dogon incluem os rituais que Rouch filmou e em que se iniciou. Destes rituais do seu último regresso a África, o cineasta alemão Bernd Mosblech (2007) realizou o filme Je Suis Un Africain Blanc - L’Adieu à Jean Rouch (Eu Sou um Africano Branco - O Adeus a Jean Rouch). Talvez este filme contribua para o esclarecimento da presença africana em Chronique d’un Été.
3. Jean Rouch: O Último Encontro com os Dogon
O cineasta documentarista e o antropólogo vivem a mesma experiência de passagem, algumas vezes, as mesmas situações, os mesmos contextos socio-históricos, as mesmas responsabilidades éticas e políticas e as mesmas condições de realização do trabalho e até, por vezes, a mesma precaridade de meios e os mesmos constrangimentos. O antropólogo-cineasta, ou o cineasta-antropólogo, vive uma experiência singular, num local concreto, com pessoas concretas, que em tudo se assemelha a um ritual de passagem. É-lhes exigido um percurso original e uma obra original - a realização de um projeto que implica uma passagem para um outro lugar, onde vai realizar o trabalho de campo, a adaptação à situação em que realiza esse trabalho (crise da adaptação, das interações, das representações), a concentração nas intenções, a densificação de objetivos e a definição de estratégias e a realização de ações orientadas para a concretização desses objetivos, e, finalmente, a conclusão de um percurso através da apresentação de resultados esperados, suscetíveis de o credibilizar para a reentrada na instituição (cinema, antropologia) com um estatuto diferente do da partida. Trata-se, pois, de um ritual de passagem em que se procura o reconhecimento do valor da sua obra e, consequentemente, também um ritual de instituição.
Vemos neste percurso, sobretudo, o reconhecimento da obra pelas instituições em que se enquadra. Mas, neste rito de passagem, há um contacto com os lugares e as pessoas - passagem efetiva e afetiva para o terreno de onde dificilmente se pode sair. Não se trata, pois, de uma mera passagem pelo terreno para recolha de informação sem nenhum elo que o ligue às pessoas, aos grupos, às instituições, aos locais. As pessoas correriam o risco de se tornarem objetos, suscetíveis de serem instrumentalizadas, reificadas, e tanto o cineasta como o antropólogo carregam para a vida a obra, as pessoas e os locais - os afetos e os conflitos vividos na realização do trabalho de campo e na produção da obra cinematográfica. Esta situação coloca o projeto antropológico e cinematográfico num complexo processo de decisões pessoais, políticas, económicas, éticas e estéticas.
Ao contrário do cinema de ficção e da obra literária que podem efabular e determinar o destino de seus personagens, o documentarista e o antropólogo trabalham sobre o real, sobre o que veem e ouvem, a maneira como veem e ouvem, o que escolhem e fixam (personagens, enquadramentos, lugares, acontecimentos, ações); escolhem personagens, escolha guiada, em grande parte, pelas afinidades sem excluir, no entanto, certas personagens indispensáveis à compreensão do tema tratado, mesmo que integradas a contragosto. O mesmo acontece com os locais - territórios geográficos. O mundo inteiro pode-se oferecer à investigação de documentaristas e antropólogos desde o nascimento da antropologia e do cinema (desde os operadores Lumières que se espalharam um pouco por todo o mundo) - lugares longínquos e culturas exóticas, ou o “drama vivido à soleira da nossa porta, o drama do quotidiano” (Sussex & Grierson, 1972, p. 27). Como a antropologia, o documentário nasceu da errância e da exploração do desconhecido.
Jean Rouch foi um antropólogo e cineasta fiel às suas temáticas sociais, a uma região, ao cinema etnográfico, e mais que tudo ao respeito pelas culturas e pessoas filmadas. Marcel Griaule, que chefiara a missão científica Dakar-Djibouti (1931-1933), em que participaram Michel Leris (Afrique Fantôme [África Fantasma], 1934), André Schaeffner, Deborah Lifshitz, Eric Lutten, Jean Mouchet, Jean Mitten, Abel Faivre e Gaston-Louis Roux - viria a orientar a sua tese de doutoramento sobre religião e magia songhai (1952), tornando-se investigador do Centro Nacional da Pesquisa Científica.
Como “foram inventados” para a antropologia e como aparecem os dogon na vida de Rouch? O primeiro contacto foi com Marcel Griaule e Michel Leiris que, na missão Dakar-Djibouti (1931-1933), percorreram uma quinzena de países africanos. Passaram dois meses entre os dogon e Griaule realizou, nos anos seguintes, alguns filmes sobre este povo da África Ocidental: Au Pays des Dogons (No País dos Dogon; 1935), Les Techniques Chez les Noirs (As Técnicas dos Negros; 1942) e Sous les Masques Noirs (Sob as Máscaras Negras; 1938). Não registou, porém, as cerimónias mais importantes dos dogon, que se repetem de 60 em 60 anos, durante sete anos consecutivos - o sigui.
Esta missão viria a ser cumprida por Jean Rouch e Germaine Dieterlen (1967-1973).
Marcel Griaule, pelo primeiro contato, Germaine Dieterlen, pela pesquisa sistemática, e Jean Rouch, pelo cinema, constituem o trio que construiu ou, pelo menos, trouxe ou tornou visível a mitologia dogon para os ocidentais. Rouch e Dieterlen tiveram o privilégio de poder filmar a cerimónia do sigui - Sigui Synthèse, L’Invention de la Parole et de la Mort (1981), síntese dos filmes realizados entre 1966 e 1974.
Jean Rouch chegou mais tarde aos dogon, quando sua notoriedade em África e em França já era evidente devido aos filmes realizados na África Ocidental (Mali, Costa do Marfim, Nigéria), à sua participação no movimento cinema-verdade (Chronique d’un Été) e à nouvelle vague - como afirma Bellour “um grande cineasta que participa na Nouvelle Vague a partir do cinema etnográfico numa posição singular” (Dauman, 2011, 01:26:00). Estes fatos contribuíram definitivamente para a popularidade dos dogon nos círculos estritos dos especialistas e dos estudantes de antropologia, do filme etnográfico e da antropologia visual.
Em 18 de fevereiro de 2004, 50 anos depois da rodagem de Cimetière Dans la Falaise (Cemitério na Falésia; Rouch, 1950), Jean Rouch morreu num brutal acidente de viação na Nigéria, quando se dirigia ao festival de cinema para apresentar o filme Le Rêve Plus Fort que la Mort (O Sonho Mais Forte do que a Morte; 2002). Três anos depois, os dogon, no Mali, fizeram seu funeral simbólico.
Jean era um homem forte (reconhecido, estimado) nesta aldeia e feito iniciado antes de morrer. Jean pediu que quando morresse fizessem a mesma coisa que fazem aos Dogon, após sua morte. Nós informamos. Assim amanhã se fará o enterro de Jean como iniciado nesta aldeia de Tyogou, Koundou. (Anagaly Amadigné Dolo em Mosblech, 2007, 00:05:08-00:05:48)
Jocelyne Rouch deveria participar, como viúva de Rouch, nas cerimónias fúnebres e entregar os objetos pessoais que lhe foram pedidos - vestuário e o seu principal instrumento de trabalho. Antes, Marcel Griaule, denominado localmente por senhor barragem, também tinha sido contemplado com uma cerimónia semelhante em 1956 (Mosblech, 2007, 00:15:30).
O cineasta alemão Bernd Mosblec acompanhou Jocelyne Rouch, registando seu contacto com os amigos de Rouch entre os dogon. Entregou as tradicionais dádivas a Ogon, chefe religioso da aldeia e às mulheres que ensinaram a Jocelyne a forma como as viúvas dogon participam nos funerais de seus familiares e seus maridos.
O filme não é uma biografia, mas uma evocação do cineasta através dos rituais comentados por Jocelyne Rouch. O título recupera uma afirmação de Rouch, “eu sou um africano branco”. Conta também, durante a viagem que a conduz aos dogon, as circunstâncias do acidente de viação em que se viram envolvidos. Seguem-se os ritos funerários dos dogon, danças com as máscaras, sacrifício de um animal (touro) segundo a importância do defunto e, finalmente, a subida do manequim de palha, vestido com a roupa habitual de Rouch, camisa azul, calça bege e chapéu. A voz emocionada de Jocelyne Rouch sobrepõe-se às dos rituais num adeus vibrante e alegre no meio de sacrifícios, libações e cerveja de milho.
Entre os dogon, as cerimónias funerárias incluíam danças nos terraços que cobrem as casas dos defuntos, nas quais muitos mascarados participavam segundo regras precisas do ritual. O objetivo é afastar a alma do defunto, evitando que esta volte, apavorando os membros da família. Uma festa periódica permitia o uso de uma grande máscara em forma de serpente. Esta simbolizava o ancestral, elemento de ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, onde havia sistemas patriarcais dominando as sociedades, prosperava o culto aos ancestrais. De toda a forma, como resumiu o escritor moçambicano Mia Couto (2003), “em África, os mortos não morrem nunca. Exceto os que morrem mal... Afinal, a morte é um outro nascimento” (p. 30).
A Falésia de Bandiagara, no Mali, é uma fratura geológica de aproximadamente 200 km de extensão e 300 m de altura. Localizada entre a savana e a planície do Rio Níger, servira como refúgio natural para os dogon, as suas paredes escarpadas de rocha ofereciam proteção e abrigo, as suas casas eram construídas da mistura de argila e palha, para camuflagem. Elas eram, e ainda são, quase indistinguíveis à distância. Este mimetismo nas construções não era nada casual, era uma topografia de guerra e, de facto, ideal para a defesa das povoações. Erguidas junto às paredes mais altas do penhasco, as casas só são acessíveis através da escalada da rocha, sobretudo aquelas que serviram de objeto para a ocupação inicial. O terreno, aqui e ali, pontilhado de pedras soltas, dificultava a escravatura dos seus membros por grupos de cavalaria. E, do alto da falésia, era possível observar e sinalizar a aproximação de ameaças quando ainda poderiam ser evitadas ou o seu impacto minimizado.
Depois do manequim de Jean Rouch ter sido depositado na falésia, num lugar secreto, o seu instrumento principal de trabalho - a câmara AATON - passou para as mãos de Ogon, chefe religioso da aldeia, que a despedaça contra os rochedos perante o silêncio dos participantes no funeral.
O filme consta de sete partes: abre com a subida à Falésia de Bandiagara, seguindo-se o título em alemão e em francês. A primeira parte cobre a viagem e a entrada na aldeia de Tyogou. Nesta parte, o realizador e Jocelyne Rouch-Lamothe narram a ligação de Rouch com os dogon e as circunstâncias da morte de Rouch, numa espécie de interlocução exterior (realizador) e interior/participante (Jocelyne), que refere o filme Le Rêve Plus Fort que la Mort (2002), que Rouch deveria apresentar aos seus amigos, Damouré Zica e Tallou Mouzourane. No percurso, temos o itinerário de Rouch em África em imagens de arquivo e a narração do realizador. Jocelyne anuncia a chegada à aldeia dogon, as cerimónias que vão realizar-se e o conhecimento recíproco destas cerimónias e de seus atores. A segunda parte, em Tyogou, é de oferendas, apresentações e saudações ao chefe religioso da aldeia - Ogon, e depoimentos acerca da razão das cerimónias de homenagem a Rouch.
Como na primeira parte, prossegue a narrativa do itinerário de Rouch por África, pelo cinema, pela etnografia em interlocução com Jocelyne, com imagens de arquivo de Rouch ou dos dogon, filmadas por Rouch. A terceira parte começa com a preparação do manequim que representará Rouch, com a sua camisa azul, calças bege e outros objetos trazido pela viúva, o fogo das espingardas e a mímica das manobras militares coloniais.
A narrativa histórica nesta parte evoca uma cerimónia semelhante à que fora feita a Griaule, que repousa num lugar secreto na falésia. A narração é feita pelo realizador, pela viúva de Rouch e pelo colaborador dogon, que descreve onde aconteceram as filmagens. A quarta parte é composta sobretudo pelas cerimónias funerárias. A quinta parte contempla a subida do manequim para a falésia, terminando com a destruição da câmara AATON 16 mm. Depois, reiniciam-se as cerimónias com filmes de Rouch sobre os funerais, seguidas pela dança das máscaras e a sua interpretação pelo narrador, que tem como interlocutor a voz de Rouch. A sétima parte é a narrativa pessoal das vivências no ritual do encontro e vida com Jean Rouch - uma espécie da catarse em que se efetua a separação entre Rouch e Jocelyne.
Paula Morgado e Denise Barros (2008), em comunicação apresentada na “26.ª Reunião Brasileira de Antropologia”, constatam as mudanças culturais dos dogon, decorrentes da instalação dos média e do desenvolvimento do turismo. Segundo esta investigadora do Laboratório de Imagem de Som em Antropologia da Universidade de São Paulo, em Bandiagara, existia em 2002 apenas um gerador que oferecia energia para uma parte da população; mesmo assim, foi instalado o primeiro cibercafé e rapidamente um número crescente de jovens, geralmente guias turísticos ou pessoas ligadas a projetos de desenvolvimento de uma das diversas organizações não governamentais que atuam no local, iniciaram sua incursão pela rede, principalmente para enviar correspondência para o exterior. Mais tarde, com apoio norte-americano, foi instalada na administração de Bandiagara uma sala com cinco computadores com acesso via satélite. Estas mudanças introduziram alterações significativas na cultura local. Em 2027, quando se realizarem de novo os rituais sigui, como serão os dogon? Persistirão os rituais? Qual a sua reconfiguração? E as instituições científicas e os antropólogos cineastas ainda estarão disponíveis para passar os sete anos da sua realização junto dos dogon? Serão os dogon a fazer os próprios filmes, a estudar a sua própria cultura e os processos de mudança?
4. Jean Rouch e a Poética do Ferro e do Aço
Une Poignée de Mains Amies, Fleuve Qui, par Dessous les Ponts, Ouvre la Porte de la Mer (Um Aperto de Mãos Amigas, Rio que, por Debaixo das Pontes, Abre Porta ao Mar) foi o filme que Rouch realizou, no Porto, com Manoel de Oliveira, em 1996:
degustando um porto velho falava com o Manoel sobre as pontes do Douro e imediatamente nos pusemos de acordo - de todas as pontes, a que foi construída por Gustave Eiffel, antes de construir a torre de Paris, era a grande obra de arte. Em menos de cinco minutos o projeto deste filme foi criado. Manoel escreveria um poema que aperfeiçoaríamos com os nossos amigos. (En une Poignée de Mains Amies, Fleuve Qui, par Dessous les Ponts, Ouvre les Portes de la Mer, s.d., para. 1)
O encontro e a ideia do filme punham em relação numa mesma obra os dois cineastas amigos, dois filmes, Douro Faina Fluvial (1931), de Manoel de Oliveira, e Beau Navire (Belo Navio; 1990), de Jean Rouch, duas cidades, duas formas de filmar a “moderna poesia do ferro e do aço” (Régio, 1934), as obras de arte de um mesmo engenheiro - Gustave Eiffel. Rouch (1992) sempre referia o modo como Manoel de Oliveira filmara a Ponte D. Luís a partir do Rio Douro em Douro Faina Fluvial e como ele próprio filmara a Torre Eiffel: o “terceiro filme em que consegui um plano-sequência” (p. 38) em que mostrava o que se passava
debaixo das saias da senhora Torre Eiffel. Por isso, deitei-me em cima de um carro e aproximei-me da Torre Eiffel ao lusco-fusco ( … ) o céu estava completamente azul e a iluminação fazia contraste com o céu tão azul enquanto ela ficava toda dourada. Por isso tinha uma joia de ouro sobre um fundo azul. E eu via a minha Torre Eiffel debaixo ( … ). Por isso, tive a ideia de juntar um poema de que gosto muito, que é um poema de Baudelaire a uma crioula e que eu, cito de cor: Quando andas, com a tua saia larga, varrendo o ar. (Rouch citado em Ribeiro, 2007, p. 38)
O encontro de Rouch com Manoel de Oliveira dá-se em 1955, mediado por Georges Sadoul, no contexto de uma reunião de cineastas realizada em Paris. Rouch tinha acabado de realizar Les Maîtres Fous. Este primeiro encontro não pareceu muito promissor, mas acabou por colocar os dois cineastas num caminho de múltiplos encontros e de formas de reconhecimento mútuo (https://images.cnrs.fr/video/6543).
Seria difícil conceber a presença de Jean Rouch em Portugal antes de abril de 1974. O país mantinha as colónias e, desde 1960, guerras na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique, e um crescente caudal de emigração para o centro da Europa. Temas e ideias caras na obra de Rouch - África, migrações, a antropologia partilhada - eram interditos em Portugal. Pesquisadores de campo na área das ciências humanas eram vigiados e perseguidos pelo regime - o geógrafo Orlando Ribeiro, o linguista Lindley Cintra, os musicólogos Lopes-Graça e Michel Giacometti. A antropologia era quase exclusivamente ensinada no Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina, onde se formavam os administradores coloniais. Nestas circunstâncias, não obstante Rouch, até então, ter produzido quase uma centena de filmes, estes não eram conhecidos em Portugal e na universidade entrava com mais facilidade a polícia do que o cinema. Logo após abril de 1974, Jean Rouch veio várias vezes a Portugal, sobretudo ao Porto, a convite do adido cultural da embaixada de França (Centro Cultural Francês do Porto), Jacques d’Arthuys, diplomata de carreira entre 1944 e 1989, conselheiro cultural em Valparaíso, conselheiro de comunicação do Presidente Salvador Allende, então transferido para o Porto. Em Portugal, d’Arthuys foi autor do argumento do filme de Thomas Harlan, Torre Bela (1977). Segundo Jean Rouch (1979), foi aí que iniciou com d’Arthuys as experiências em Super 8 - desenvolveram conjuntamente a ideia de criar ateliers de Super 8 com pequenas câmaras com som síncrono. Jean Rouch havia encontrado no formato Super 8 uma ferramenta ideal para iniciar um programa de ensino dedicado à antropologia visual na universidade em França. Estes ateliers viriam a ser realizados mais tarde entre 1978 e 1980, em Moçambique, com o objetivo de formar em técnicas do cinema-documentário os quadros e trabalhadores do Centro de Estudos de Comunicação da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Esta formação foi realizada por um grupo de jovens cineastas - Philippe Constantini, Miguel Alencar, Nadine Wanono, Françoise Foucault -, coordenados por Jean Rouch e Jacques d’Arthuys, então nomeado conselheiro cultural em Maputo. Durante a sua estadia em Moçambique, Jean Rouch fez com d’Arthuys o filme Makwayela (1977; https://www.youtube.com/watch?v=SxGa25BSRbA), composto de planos-sequência. Este documento apresenta uma dança originária da África do Sul, em que vários trabalhadores moçambicanos trabalhavam nas minas de ouro, que se reconfigura em Moçambique pós-independência. Este filme chamou a atenção de Jacques d’Arthuys e Jean Rouch para a necessidade de fornecer aos moçambicanos ferramentas para o registo visual e sonoro da sua história e da efervescência que reinou entre 1975 e 1980, durante os primeiros anos da independência.
Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville juntaram-se ao projeto durante a difusão dos filmes realizados pelos estudantes nas aldeias e interessaram-se pela forma como as imagens eram percecionadas pelos camponeses. O projeto de Godard e de Miéville excedeu claramente o âmbito de formação em que os jovens realizadores estavam implicados. Eles negociaram com os líderes moçambicanos a proposta de uma televisão em Moçambique. Este projeto, intitulado o “nascimento da imagem de uma nação”, questionava os modos de comunicação numa televisão do Estado, previa uma colaboração entre a sua empresa de produção Sonimage e o governo de Moçambique, inspirada nas experiências de Armand Mattelart junto de Salvador Allende. Este programa da televisão nunca se veio a realizar.
As experiências desenvolvidas no Porto e em Moçambique pela influência de Jacques d’Arthuys contribuíram definitivamente para o nascimento, em 1981, dos Ateliers Varan, membro do Centro Internacional de Ligação das Escolas de Cinema e Televisão e consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Embora fundados em janeiro de 1981, a sua origem remonta a meados dos anos de 1970 em Portugal e em finais da mesma década em Moçambique e deveu-se sobretudo a Jacques d’Arthuys, seu gestor até 1988, ao encontro com Jean Rouch e à proposta feita por ambos a vários cineastas para irem filmar o que se passava em Moçambique. Neste contexto, Rouch proporá que os moçambicanos se filmem eles mesmos, propondo-se formar os futuros cineastas através da iniciação à realização de filmes documentários. O desenvolvimento e a dispersão pelo mundo desta primeira experiência reuniram algumas dezenas de profissionais (realizadores, montadores, operadores, engenheiros de som, etc.) que, mais tarde, viriam a criar os Ateliers Varan (https://www.ateliersvaran. com/), transmitindo suas práticas em estágios e oficinas que ainda hoje se realizam.
5. Notas Finais
O cinema e a antropologia nasceram em torno das mesmas preocupações, da perceção do movimento e da inventariação das diversidades culturais. À tendência visualizante das primeiras imagens orientadas para os arquivos e as coleções dos museus sucederam-se vozes e discursos que, de modo diverso, trouxeram para a antropologia outras formas de representação antropológica e de comunicação entre culturas. Assim foi-se definindo e consolidando o filme etnográfico. Jean Rouch tornou-se, a partir de meados do século XX, uma referência incontornável pela longa carreira de antropólogo cineasta e de africanista. Com Edgar Morin, que realiza uma obra inovadora no cinema e na antropologia, quer nos processos tecnológicos e da antropologia partilhada e participada, quer nas formas de discurso e na abordagem de temas relevantes da sociedade parisiense dos anos de 1960. A remasterização dos arquivos de Chronique d’un Été 50 anos depois permite-nos fazer uma etnografia do processo criativo e uma etnografia longitudinal a partir dos atores sociais envolvidos na realização do filme. Rouch não deixou de lado as temáticas africanas ao virar-se para a “antropologia em casa”. Numa ida para apresentar o filme Le Rêve Plus Fort que la Mort (2002) num festival de cinema, faleceu num acidente de viação. Jocelyne Rouch ficou para contar a história do acidente e o funeral simbólico celebrado pelos dogon no filme de Bernd Mosblech, Je Suis un Africain Blanc. A partir de 1975, Rouch passou a vir com frequência a Portugal para o doutoramento honoris causa de Manoel de Oliveira, na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, para os encontros com Jacques d’Arthuys, para iniciativas culturais do Instituto Francês do Porto. Estes encontros permitiram a ida para Moçambique, mas também o convívio frequente com Manoel de Oliveira. Estes foram os quatro momentos relevantes a partir dos quais podemos construir um olhar sobre o multifacetado percurso da personagem mais relevante do filme etnográfico e da antropologia visual.