1. Introdução
O segundo semestre de 2023 escancarou o que a comunidade científica mundial tem alertado há anos: a emergência climática se mostra cada vez mais severa e as possibilidades para enfrentar a situação estão se tornando estreitas. As rápidas alterações no clima da Terra - denominada emergência climática devido à necessidade de ações imediatas - já são consideradas a maior situação de risco à sobrevivência humana, com aumento significativo da temperatura, de acordo com dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (2023) - o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change).
O Relatório Síntese Sobre Mudança Climática 2023, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (2023), evidencia as perdas e os danos causados pela mudança global do clima. Consequência direta da queima de combustíveis fósseis, do uso desordenado e insustentável do solo e de energia, a temperatura média mundial já subiu 1.1ºC acima dos níveis pré-industriais e é responsável por aumentar a frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos que a humanidade vem enfrentando de forma mais acentuada, principalmente quando se soma ao fenômeno do super El Niño.
Desde julho de 2023, a série prolongada de novos recordes de temperatura na Terra confirma as projeções (Observatório do Clima, 2023). As sucessivas ondas de calor demonstram que o prazo previsto pode estar reduzido: enchentes, vendavais, chuvas de granizo, deslizamentos de encostas, entre outros eventos ocorrem em velocidade ainda maior. Urgentes são as ações para enfrentar esse quadro. Ao mesmo tempo, a violação aos direitos humanos agravados com a crise climática apresenta desafios próprios, em especial sobre a exposição desigual dos diferentes grupos sociais aos seus impactos, o que demanda uma abordagem sob a perspectiva da justiça climática (Nusdeo & De Paula e Silva, 2023).
A prevalência da responsabilização dos indivíduos sobre as questões ambientais - em detrimento da responsabilização de governos e empresas - mostra-se perversa sobre os impactos desproporcionais na emergência climática na vida das pessoas, especialmente das populações em vulnerabilidade socioambiental. A comunicação gestada de forma colaborativa no bojo das inquietações das comunidades pode colaborar para a sensibilização social e para a cobrança dos agentes públicos e empresariais nesse cenário de incertezas e injustiças acentuadas.
A situação é agravada entre os jovens, principalmente aqueles que já vivem em situação vulnerável, como é o caso de populações negras e tradicionais1, além de mulheres, idosos e pessoas com deficiência. Diante da emergência climática, a juventude do mundo todo tem experimentado a sensação de medo, falta de esperança no futuro e tristeza generalizada. Trata-se da ansiedade climática ou ecoansiedade (Grandisoli et al., 2021).
Apesar do cenário, um importante papel de sensibilização tem sido desempenhado por jovens ativistas a partir de plataformas digitais, sejam em redes sociais como Instagram, Facebook, TikTok e X2, ou em espaços para compartilhamento de vídeos, como o Youtube, e plataformas de consumo de áudio como Spotify e Deezer. A juventude engajada na luta contra os efeitos da crise climática tem ocupado lacunas da cobertura midiática sobre a questão ambiental.
Pesquisas desenvolvidas na área da comunicação demonstram a falta de atenção da mídia à escuta de lideranças, organizações não-governamentais e movimentos sociais que apresentem ângulos diversos relacionados às mudanças climáticas e seus desdobramentos na esfera pública. Nos documentos governamentais e nas abordagens da mídia convencional há a predominância do enfoque catastrofista. Apesar de não haver muitas pesquisas que investiguem os efeitos do enquadramento negativo das notícias sobre o tema (Balbé & Loose, 2020), há o entendimento de que tal perspectiva tende a gerar mais imobilização do que proatividade (Shome & Marx, 2016). Além disso, há percepção sobre a falta de comprometimento dos governos na elaboração de políticas públicas efetivas no enfrentamento da emergência climática; resistência ou lentidão das empresas na instalação de novas práticas socioambientais; e pouco ou nenhum interesse geral dos cidadãos sobre a temática (Grandisoli et al., 2021).
Assim, este artigo se debruça sobre a problemática da comunicação e da sensibilização para a crise do clima sob a perspectiva dos direitos humanos. Busca analisar as articulações de jovens ativistas com a justiça climática. Trata-se de um recorte, a partir dos usos do Instagram e do net-ativismo desempenhado por duas lideranças brasileiras da área ambiental, selecionadas por integrarem o Comitê Jovem do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU)3: a ativista Txai Suruí, do movimento da juventude indígena do estado de Rondônia e voluntária do Engajamundo4, organização que atua pelo empoderamento da juventude; e a também ativista climática Amanda Costa, fundadora e diretora executiva do Instituto Perifa Sustentável, entidade com sede no bairro Brasilândia, na cidade de São Paulo, que busca mobilizar jovens que vivem nas periferias urbanas para construir uma nova agenda de desenvolvimento para o Brasil, tendo como base as perspectivas de raça e clima.
Esse enfoque parte da necessidade de olharmos para a relevância do fenômeno e do desafio de discutir desigualdades sociais no debate público sob o prisma de populações vulneráveis e historicamente silenciadas, como são as mulheres indígenas e negras, foco desta pesquisa. Além disso, busca compreender práticas culturais e estratégias criativas adotadas pela juventude ativista que coloquem em destaque os temas cidadania, direitos humanos, comunicação, justiça climática, entre outros.
O artigo está organizado em outras cinco seções: discute as relações entre juventude e crise climática; aborda a justiça climática e o papel do net-ativismo ambiental; apresenta o percurso teórico-metodológico da análise; traz as reflexões pertinentes aos resultados encontrados e tece considerações finais.
2. Juventude e Crise Climática
Dada a situação de crise socioambiental que se mostra cada vez mais acelerada, os próximos anos são decisivos para a construção de respostas para a emergência climática. Soluções inovadoras são, aliás, urgentes para que as atuais, as novas e as futuras gerações possam viver com dignidade. O relatório elaborado pela United Nations Children’s Fund (2021) demonstra que crianças e adolescentes são ainda mais suscetíveis à crise do clima. O documento evidencia que aproximadamente 1.000.000.000 de crianças e adolescentes, quase metade dos 2.200.000.000 de jovens e crianças no mundo, vivem em um dos 33 países classificados como de risco extremamente elevado aos efeitos das mudanças no clima.
O protagonismo jovem pode influenciar as tomadas de decisão em diferentes níveis, contribuindo para a construção coletiva de soluções para problemas reais (Grandisoli et al., 2021). Nesse aspecto, o movimento Fridays for Future (https://fridaysforfuture.org), também conhecido como Juventude pelo Clima, é bastante representativo por promover uma mobilização global sobre a questão. Organizado por jovens desde 2018 - quando a estudante sueca Greta Thunberg, à época com 15 anos, iniciou uma greve escolar pelo clima - o movimento busca pressionar a sociedade a ver a crise climática com a atenção que merece. O movimento internacional é conduzido por estudantes que faltam às aulas nas sextas-feiras para participarem das manifestações a exigerem ações dos líderes políticos sobre as mudanças no clima.
Ainda que o protagonismo da pressão juvenil por ações para conter a crise climática esteja centrado na figura de Greta, que começou a protestar em agosto de 2018 em frente ao parlamento da Suécia, com uma placa “skolstrejk för klimatet” (“greve escolar pelo clima”), inúmeros jovens do mundo todo vêm assumindo esse papel, também no chamado Sul Global5, que concentra populações mais vulneráveis do ponto de vista socioambiental. As brasileiras Txai Suruí e Amanda Costa têm participado ativamente de eventos e ações nacionais e internacionais de sensibilização quanto à crise climática.
Jovens em áreas de risco climático têm sido importantes articuladores em seus locais de moradia, especialmente no que se refere à justiça climática, tema que guarda especificidades, como será discutido a seguir.
3. Justiça Climática e o Papel do Net-Ativismo Ambiental
A vulnerabilidade às mudanças climáticas é um fenômeno multidimensional e dinâmico, moldado pela intersecção histórica de regimes políticos, econômicos e culturais que culminaram nos processos contemporâneos de marginalização (Nusdeo & De Paula e Silva, 2023). Para compreender a ideia de justiça climática é necessário relacioná-la aos conceitos de racismo ambiental, justiça ambiental e interseccionalidade.
Racismo ambiental é um termo cunhado na década de 1980 pelo ativista estadunidense Benjamin Franklin Chavis Jr., militante na luta contra o preconceito racial nos Estados Unidos. O conceito de racismo ambiental surgiu a partir dos protestos realizados pela população da comunidade de Afton, majoritariamente negra, contra a construção de aterro sanitário de resíduos tóxicos no Condado de Warren, Carolina do Norte, EUA, em 1982 (Acselrad, 2010)6. Portanto, o racismo ambiental se combina com políticas públicas e práticas da indústria - o que configura necropolítica7, exploração imobiliária, entre outras práticas colonialistas - para fornecer benefícios para a população branca, enquanto transfere custos para as pessoas negras e racializadas8. Assim, o subsequente movimento de justiça ambiental constituiu-se nos EUA a partir de uma articulação entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis. Essa conexão de temas transformou o pensamento da época e desafiou o movimento ambientalista das décadas de 1960 e 1970, que se preocupava estritamente com a proteção do meio ambiente, desconectada das questões sociais (Louback & Lima, 2022).
Os conceitos de justiça ambiental e climática estão relacionados às questões históricas e geopolíticas. Países que emitiram mais gases de efeito estufa e contribuíram mais para a crise climática integram, predominantemente o Norte Global. Já países que contribuíram menos para a crise, mas que vão sofrer os impactos climáticos mais rapidamente e mais intensamente, pertencem ao Sul Global.
No Brasil, Acselrad et al. (2009) e Acselrad (2010) defendem que o movimento da justiça ambiental busca combater a narrativa de que os impactos ambientais são sentidos por todas as pessoas de igual modo. Para se ter uma ideia, estima-se que populações do Sul Global têm 99% de chance de sofrerem consequências negativas causadas por mudanças climáticas (Diffenbaugh & Burke, 2019). A justiça ambiental e o combate ao racismo ambiental desnaturalizaram as injustiças vinculadas à cor ou à etnia. É urgente que as desigualdades sejam colocadas em pauta no enfrentamento à crise contemporânea. Afinal, ainda que tais mudanças atinjam a todas as pessoas no globo, alguns grupos em situação de maior vulnerabilidade como crianças, adolescentes, mulheres negras e indígenas, têm sido mais impactados pelos efeitos da crise em curso.
Segundo o relatório Women in Finance Climate Action Group (2021), mulheres e pessoas do sexo feminino representam 80% das pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas. Além disso, estruturas de política climática nacional, regional e multilateral não têm incorporado questões de gênero, raciais, étnicas, de classe, geracionais para tomada de decisão. A epistemologia feminista, portanto, colabora com o adensamento da perspectiva teórico-metodológica da interseccionalidade, nascida a partir das experiências de mulheres negras, latinas, indígenas, asiáticas, entre outras9. A justiça climática escancara a interface entre direitos humanos e mudanças do clima, especialmente para mulheres, crianças e adolescentes em situação de desigualdade (Louback & Lima, 2022).
Tais vulnerabilidades agravadas pela emergência climática precisam ser analisadas sob uma perspectiva interseccional. Afinal, a colonialidade persistente e as formas de racismo institucional e ambiental limitam o acesso a financiamento, mídia e outros recursos, além de inviabilizarem os esforços e a participação desses grupos no movimento climático. As ações para o enfrentamento da emergência climática devem, portanto, ser multissetoriais, com participação e debate popular, a fim de englobar as questões estruturais do desenvolvimento na perspectiva conjugada da garantia dos direitos humanos e da natureza (Isaguirre-Torres & Maso, 2023).
Entretanto, o que se vê é um silenciamento seletivo. Populações impactadas não têm sido foco de ações de resiliência para aspectos básicos da sobrevivência humana, como acesso à água, por exemplo, enquanto grandes empresários são recebidos em reuniões governamentais do mundo todo para privatizar o acesso a esse bem primordial para a vida na Terra10.
O desequilíbrio na escuta das vozes sociais impactadas por injustiças remonta à própria história do Brasil. Fruto do colonialismo, da escravização, de genocídio, etnocídio e epistemicídio negro e indígena (Gonzalez, 2019; Nascimento, 1978), a sociedade brasileira é uma das mais desiguais do mundo. Sua formação histórica colonial, elitizada, imperialista, patriarcal e neoliberal mostra-se pouco inclusiva e altamente predatória.
A partir da perspectiva da justiça climática11 (Mira Bohórquez, 2023; Louback & Lima, 2022), medidas para o enfrentamento da crise do clima devem levar em consideração: as desigualdades de condições que países e pessoas encontram para se defender dos efeitos do aquecimento global; a necessidade de novas estruturas jurídicas e institucionais para garantir a efetividade dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade; e a urgência em aprofundar a discussão a respeito das diferenciações que fazem com que alguns grupos sejam mais vulneráveis do que outros nesse contexto.
A comunicação ocupa espaço importante para o enfrentamento da emergência climática, como plataforma privilegiada de trocas sociais para inovação e construção de respostas plurais à crise. No entanto, na produção jornalística, há predominância de fontes especialistas, governamentais e de mercado, o que revela ausência de diversidade de vozes na cobertura e falta de estímulo dos meios de comunicação para a mobilização das comunidades afetadas (Horn & Del Vecchio de Lima, 2019).
Cabe à juventude ativista ocupar espaços de debate. Especialmente em um momento em que o capitalismo neoliberal se apropria dos ambientes de discussão12 e as redes sociais digitais têm grande adesão do público mais jovem, são agregadores e difusores de conteúdo espontâneo, criam a possibilidade de acesso às novidades. As plataformas exercem o papel de canal de distribuição e determinam o que o público vê, quem é remunerado por essa audiência e quais assuntos ganham destaque, sem que se responsabilizem por sua apuração e divulgação.
Ainda que tais características vinculadas à “plataformização” possam restringir, em alguns aspectos, a distribuição de conteúdos, o ativismo provoca uma quebra do monopólio narrativo, democratiza e radicaliza as possibilidades comunicacionais. Nesse sentido, ativistas têm a oportunidade de promover comunicação democrática apesar da escassez de recursos, o que atualiza, para a contemporaneidade, o conceito de mídia radical desenvolvido no início deste século por John Downing (2001/2002).
O net-ativismo ambiental tem encontrado brechas na exploração algorítmica para colocar em pauta a crise climática. Di Felice et al. (2012) compreendem o net-ativismo como “uma nova forma de ativismo digital em rede e na rede” (p. 146), entendendo-se previamente que a rede cria a si mesma, produzindo seus componentes e, por sua vez, é produzida por eles. De acordo com Del Vecchio-Lima et al. (2023), para que o net-ativismo seja bem-sucedido, suas ações dependem do sucesso individual de cada participante da rede enquanto ecossistema informativo e criador de sinergia para fins de ação e ativismo.
Complementar à ideia de net-ativismo de Di Felice et al. (2012) há o entendimento de que esse movimento em rede apresenta uma forma de cidadania ativista. Para o autor italiano, o net-ativismo consiste em “uma interação fecunda entre sujeitos, grupos e entidades com o território e as tecnologias de informação, as redes informativas e as diversas interfaces utilizadas” (Di Felice, 2012, p. 146), formando uma rede colaborativa e uma ação social interativa que permitem transformações sobre a realidade em diferentes dimensões. Assim, como a breve discussão aqui permite, há a apropriação comunicativa por grupos e indivíduos potencialmente vulneráveis ou por entidades e coletivos preocupados com grupos vulneráveis.
Essas novas formas de ativismos em rede são particularmente atraentes para jovens interessados em transformar a realidade e as territorialidades pelas quais lutam. O ativismo jovem nas redes fura a bolha e, parafraseando Peruzzo (1999), dá seu aporte à educação democrática ao promover a criação coletiva e ao difundir conteúdo diretamente relacionado à vida local.
4. Percurso Teórico-Metodológico de Análise Sobre Justiça Climática
Muito se tem discutido sobre a construção ou invisibilização de narrativas no contexto contemporâneo. De acordo com Rincón (2006), a narrativa pode contribuir para impactar ou surpreender, ironizar, mostrar o impossível, o imprevisto ou paradoxal da natureza humana. A análise da narrativa, por sua vez, busca interpretar as relações sociais e as complexidades de suas interações. Nosso arcabouço teórico-metodológico, vinculado ao paradigma da pesquisa social, insere-se na compreensão de atores sociais em relação e em perspectiva. Apropria-se do método qualitativo a fim de interpretar fenômenos humanos e sociais. Uma das características da pesquisa qualitativa, valorizada na escolha dessa perspectiva, é a de que, conforme Bauer et al. (2015), trata-se de uma abordagem intrinsecamente crítica e potencialmente emancipatória.
Neste artigo, os procedimentos metodológicos contam com recursos da análise crítica da narrativa (Motta, 2013), da interseccionalidade e da justiça climática. Nosso ponto de partida é de que as narrativas são relações argumentativas - atos de fala - e se estabelecem no contexto da cultura, da convivência entre seres vivos com interesses, desejos, vontades e sob os constrangimentos e as condições sociais de hierarquia e de poder, o que torna a metodologia adequada para análises sob a perspectiva da justiça climática.
Conforme Motta (2013) a análise da narrativa é apropriada para observar a configuração de uma intriga e suas nuances, principalmente, para compreender os valores canônicos de uma cultura em ação e a construção simbólica da realidade. Por meio da análise crítica da narrativa, ponderamos sobre como as pessoas compreendem e representam o mundo.
Na hibridação aqui adotada, a análise narrativa buscou focalizar o poder de voz e as interseccionalidades de duas jovens ativistas. Na matriz para análise empírica do poder de voz sugerida por Motta, atenta-se à pluralidade de intervenções, já que a narrativa resulta em um produto plurivocal onde se manifestam vozes e interesses contraditórios que se sobrepõem. Por isso, as narrativas são polissêmicas (multiplicidade de vozes e de interesses que abre uma multiplicidade de interpretações) e são também polifônicas (várias estórias se entretecem).
Conciliamos o arcabouço analítico à contribuição da interseccionalidade, já que esta pode servir como uma ferramenta teórica e metodológica para estudar a vivência humana conectada às experiências (Collins & Bilge, 2020/2021). A interseccionalidade é uma forma de entender e analisar experiências humanas, especialmente quando tratamos de estruturas sociais desiguais vinculadas à organização de poder centralizado (Collins & Bilge, 2020/2021), como é o caso das soluções para combater as injustiças climáticas. Assim, nossa perspectiva adere à epistemologia feminista como teoria social crítica para pensar como raça, gênero, lugar social e geração se traduzem diante das profundas divisões sociais. Ao colocarmos em pauta as questões a partir do ponto de vista interseccional, nos aproximamos também do debate epistemológico da decolonialidade, que privilegia o enfoque às subjetividades subalternizadas e excluídas.
A perspectiva decolonial pretende, portanto, provocar posturas e atitudes de transgredir, intervir, (in)surgir e incidir, conforme Walsh (2009). É importante demarcar a decolonialidade como projeto de intervenção sobre a realidade, não como moda acadêmica ou rótulo. Afinal, Bernardino-Costa et al. (2018) ressaltam que a decolonialidade abarca a longa tradição de resistência das populações negras e indígenas. Logo, a teoria decolonial se debruça sobre os modos com quais os sujeitos colonizados experienciam a colonização, ao mesmo tempo em que fornece ferramentas conceituais para avançar na decolonização, movimento que vem sendo feito na práxis das jovens ativistas aqui focadas.
Assim, a análise privilegia três movimentos interpretativos propostos por Motta (2013): (a) a recomposição da intriga ou do acontecimento das narrativas das ativistas; (b) a organização da narrativa; e (c) a revelação de conflitos enquanto frame estruturador da narrativa sobre justiça climática13.
Uma etapa preliminar da análise se ocupa de compreender os lugares de fala das jovens ativistas. Conforme Motta (2013), a análise rigorosa e sistemática da comunicação narrativa no contexto de sua configuração pode revelar jogos de poder, o que é importante para o ativismo sobre justiça climática.
4.1. Apresentação de Txai Suruí
Walelasoetxeige Suruí, conhecida como Txai Suruí, pertence ao povo indígena Paiter Suruí. A jovem integra o movimento da juventude indígena de Rondônia, estado da região Norte do Brasil, que conta com 12 etnias e mais de 1.000 indígenas de 15 a 35 anos. Txai ganhou os holofotes do mundo, aos 25 anos, ao ser a única brasileira a discursar na abertura da COP-26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), em outubro de 2021.
Estudante do curso de Direito, Txai coordena a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé14, uma organização da sociedade civil de interesse público, com sede em Porto Velho, capital do estado de Rondônia, fundada em 1992. O trabalho busca defender os direitos humanos e o meio ambiente ao propor soluções que fortaleçam a identidade, a cultura, a economia, a educação e a saúde dos povos indígenas de diversas regiões do Brasil. Txai atua como conselheira na WWF Brasil e no Pacto Global da Organização das Nações Unidas, além de ser colunista semanal da Folha de S. Paulo, desde 2022. Txai revela que as pressões ambientais sofridas na maior terra indígena de Rondônia, Uru-Eu-Wau-Wau, passam por grilagem, invasões e, principalmente, queimadas ilegais, que aumentaram 600% durante a pandemia de covid-19. Tal contexto contribuiu para o agravamento da situação da população indígena, mais vulnerável às doenças respiratórias, já que as aldeias e cidades ficam cobertas de fumaça durante o período das secas (Louback & Lima, 2022).
Em entrevista à Ellen Acioli, a jovem Txai Suruí (2022) é enfática:
o mundo tem que olhar e valorizar a sabedoria tradicional. As soluções já existem e já são praticadas dentro da comunidade. O que precisa é que o mundo escute o que a gente fala e coloque isso em prática em outros lugares (p. 69).
Ao honrar a sabedoria ancestral de seu povo, Txai tem usado o Instagram (@txaisurui) para fazer sua voz e de seus parentes circular.
Embora tenha iniciado o perfil para uso pessoal, já na adolescência, Txai vem profissionalizando o uso da plataforma. Em novembro de 2023 tinha cerca de 128 mil seguidores.
4.2. Apresentação de Amanda Costa
Amanda Costa é mulher negra que, em 2021, entrou para a lista #Under30 da revista Forbes. Formada em Relações Internacionais, Amanda é colunista da Agência Jovem de Notícias e do Um Só Planeta. Apresenta o programa de televisão #TemClimaParaIsso? feito pelo Alma Preta Jornalismo, em parceria com a Rede TVT15, com intuito de ampliar a voz de pessoas negras, indígenas e quilombolas. Busca, em suas próprias palavras, “trazer uma visão afrodiaspórica e decolonizada sobre a crise climática”, conforme entrevista dada a Rafael Ciscati (2023), ao portal Brasil de Direitos.
A ativista é fundadora e diretora executiva do Instituto Perifa Sustentável16, organização que nasceu em 2019, quando Amanda Costa foi selecionada para o programa UPG Sustainability Leadership, realizado em Hurricane Island, Main, EUA. A iniciativa selecionou jovens lideranças do Sul Global que tinham ideias de “transformar o mundo num lugar melhor”. A ideia da Amanda foi de construir pontes entre o local e o global, encontrando caminhos para democratizar a crise climática nas periferias, favelas e comunidades.
Atualmente, as frentes de atuação do Instituto Perifa Sustentável estão centradas em advocacy climático, adaptação climática, educomunicação e participação social. Por meio da elaboração de projetos, o grupo reivindica a democratização e representatividade da juventude nos locais de tomada de decisão. Outra frente do instituto é a ocupação de espaços de liderança e atuação em processos institucionais, para encontrar formas de transformar a vida e os territórios dos mais afetados pela crise climática.
Amanda também é voluntária do Engajamundo e se apresenta como “cria” da “quebrada”, em referência a viver em uma área periférica de São Paulo. Assim, seu ativismo tem como proposta construir um mundo que priorize a vida das pessoas e do planeta, onde a justiça, a igualdade e a liberdade sejam princípios inegociáveis.
A criação da página no Instagram (@souamandacosta) para compartilhar conteúdo sobre a Agenda 2030 - especificamente a redução de desigualdades (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 10) e ação climática (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 13) - foi uma das primeiras ações de Amanda, vinculada à sua participação no programa UPG Sustainability Leadership. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), integraram a agenda da ONU em 2015 para serem atingidos até o ano de 203017.
A partir da apresentação dos lugares de fala das ativistas selecionadas para a análise, na execução da primeira etapa desta pesquisa, procuramos traçar: (a) a recomposição da intriga ou do acontecimento das narrativas das ativistas. Conforme Motta (2013), nessa fase há a identificação dos eixos estruturantes das narrativas, ou seja, se são políticos, econômicos, psicológicos, familiares, jurídicos, entre outros. É o que desencadeia as narrações, seus temas e propósitos.
Desse modo, foram analisados os perfis das ativistas no Instagram, a partir de julho de 2023, tendo como marco as sucessivas quebras de recordes de temperaturas no segundo semestre de 2023, o que reforçou a necessidade de abordar a crise climática e, consequentemente, a questão da justiça climática. No total, foram 119 publicações analisadas, no período de 1 de julho a 14 de novembro de 2023. Para melhor visualização, os dados da primeira etapa de análise foram agrupados em tabelas, que trazem informações gerais, apresentam uma síntese dos conteúdos das postagens, bem como principais temas abordados, representatividade, entre outros.
Após essa primeira etapa da análise, que será apresentada a seguir (Tabela 1 e Tabela 2), analisamos ainda as narrativas sobre justiça climática a partir de três movimentos interpretativos propostos por Motta (2013), conforme já discutido.
5. Reflexões Sobre os Resultados Encontrados
A partir da problemática da comunicação e da sensibilização para a crise do clima sob a perspectiva dos direitos humanos, esta pesquisa busca compreender táticas adotadas por ativistas que ocupam lugares sociais de saberes silenciados. Nos propusemos analisar as articulações das jovens ativistas Txai Suruí e Amanda Costa sobre justiça climática a partir dos usos do Instagram e do net-ativismo.
5.1. A Recomposição da Intriga ou do Acontecimento das Narrativas
As postagens de Txai Suruí trazem à pauta questões socioambientais, políticas, de gênero, étnico-raciais e pessoais, conforme a síntese (Tabela 1):
Nome | Txai Suruí |
Identificação de gênero e étnica | Mulher indígena |
Número de seguidores | 128 mil (14 de novembro de 2023) |
Total de postagens no período analisado (julho-novembro 2023) | 52 |
Postagens sobre justiça climática ou justiça ambiental no período analisado (julho-novembro 2023) | 23 |
Conteúdo da postagem | |
Foto | 8 |
Vídeo | 21 |
Carrossel18 | 10 |
Outros | 13 |
Legendas | Com emojis, hashtags, explicativas, humoradas, enfáticas, pessoais |
Hashtags mais utilizadas | #MarcoTemporalNÃO #Resistência |
Menções | Parceiros, mídia |
Tópicos da postagem | |
Principais temas | Direitos indígenas; pressão contra o marco temporal; mudanças climáticas; justiça climática |
Linguagem | Informal, empática, de pressão aos agentes (governantes, instituições, empresas) |
Estilo visual | |
Cores | Verde, vermelho, branco, laranja |
Fotografia | Artístico, documental, natureza |
Gráficos ou infográficos | Ausente |
Representatividade | |
Uso de imagens representativas | Mulheres indígenas, povos indígenas, outras minorias sociais |
Diversidade na audiência | Comentários, marcações de pessoas no mesmo lugar de fala |
Entre os assuntos mais presentes nas postagens de Txai Suruí estão os direitos indígenas, a pressão contra o marco temporal19, as mudanças climáticas e a justiça climática.
As postagens de Amanda Costa também abordam questões socioambientais, políticas, de gênero, étnico-raciais e pessoais, conforme a síntese (Tabela 2):
Nome | Amanda Costa |
Identificação de gênero e étnica | Mulher negra |
Número de seguidores | 26,5 mil (14 de novembro de 2023) |
Total de postagens no período analisado (julho-novembro 2023) | 67 |
Postagens sobre justiça climática ou justiça ambiental no período analisado (julho-novembro 2023) | 46 |
Conteúdo da postagem | |
Foto | 22 |
Vídeo | 33 |
Carrossel | 18 |
Outros | 9 |
Legendas | Com emojis, hashtags, explicativas, humoradas, enfáticas, pessoais |
Hashtags mais utilizadas | #Racismoambiental #Criseclimática #jovensliderancas #Justicaclimática |
Menções | Parceiros, mídia |
Tópicos da postagem | |
Principais temas | Igualdade racial, mudanças climáticas, justiça climática |
Linguagem | Informal, empática, de pressão aos agentes (governantes, instituições, empresas) |
Estilo Visual | |
Cores | Azul, branco, rosa, verde |
Fotografia | Artístico, documental, natureza |
Gráficos ou infográficos | Ausente |
Representatividade | |
Uso de imagens representativas | Mulheres negras, outras minorias sociais |
Diversidade na audiência | Comentários, marcações de pessoas no mesmo lugar de fala |
As postagens de Amanda Costa, assim como os posts de Txai Suruí, apresentam grande articulação para o tema da justiça climática, trazendo elementos da oralidade, com uso de diversas estratégias narrativas em vídeos, textos e fotos para promover processos dialógicos e participativos. Com linguagem informal e empática, as ativistas realizam pressão aos agentes (governantes, instituições, empresas) e estabelecem conexão com seus públicos com o uso de emojis e hashtags. Suas táticas narrativas são explicativas, humoradas, enfáticas, pessoais.
Demos ênfase à análise narrativa, qualitativa, não com enfoque quantitativo. No entanto, os dados apresentados nas tabelas ajudam a evidenciar como se deu a recomposição da intriga ou do acontecimento das narrativas das ativistas sobre o tema aqui analisado. É importante destacar que do total de postagens de Txai Suruí no período analisado (52 posts) entre julho e novembro 2023 (momento da coleta da pesquisa, sintetizado na Tabela 1), 23 posts abordam, de algum modo, mudanças climáticas ou justiça climática. A maioria das postagens de Txai aborda direitos indígenas, já que trata do período que antecede os movimentos de pressão contra o marco temporal das terras indígenas. As postagens sobre a questão indígena não podem ser desconsideradas no contexto da justiça climática, já que os povos indígenas são grandes guardiões do território. Para se ter uma ideia, as terras indígenas demarcadas são responsáveis por proteger 80% da biodiversidade do planeta, conforme dados da ONU20.
Das 67 postagens da ativista Amanda Costa no período analisado (entre julho e novembro 2023 e apresentadas na Tabela 2), 46 posts abordam justiça climática ou justiça ambiental. Grande parte das postagens analisadas têm foco educativo, explicativo ou de advocacy sobre justiça climática. Essas três características estão mais presentes nas narrativas de Amanda, que criou a página do Instagram com a finalidade de pressionar o cumprimento dos ODS, principalmente para a redução de desigualdades (ODS 10) e ação climática (ODS 13).
A partir da primeira etapa da análise, identificamos temas recorrentes, que serão exemplificados a seguir.
5.2. A Organização da Narrativa
Conforme Motta (2013) essa etapa possibilita compreender como se dá a relação entre narradores e quem recebe as narrativas. Nesse movimento podemos verificar como se articulam ações, surpresas, tensões, clímax, um começo, desenvolvimento e final, quesitos da ordem narrativa, com intuito de gerar adesão de interlocutores.
As duas ativistas procuram estabelecer conexões com seus públicos, além de enfatizarem o caráter explicativo acerca das questões ambientais. Um exemplo de como Amanda Costa constrói esses recursos narrativos é o vídeo Racismo ambiental existe?, fixado no seu perfil. Com um minuto de oito segundos de duração, Amanda explica do que se trata e ainda lança provocações de forma criativa, crítica e assertiva.
Fonte. Retirado de O que nunca te contaram sobre racismo ambiental [Vídeo], por Amanda Costa [@souamandacosta], 2022, Instagram. (https://www.instagram.com/reel/Cg7COZ1Aejg/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D)
Conforme já discutimos, o conceito de racismo ambiental está relacionado ao de justiça climática e foi cunhado pelo ativista estadunidense Benjamin Franklin Chavis Jr. que, inclusive, atuou com Martin Luther King Jr. na luta contra o preconceito racial nos Estados Unidos. De forma criativa, Amanda explica a origem do termo. Transcrevemos alguns trechos para a compreensão:
o rolê é que as comunidades negras estavam sendo alvos de lixos tóxicos. Mas vem cá, a gente não precisa ir até lá nos EUA para investigar esse tema... Regiões indígenas não demarcadas, enchentes e deslizamentos, lixões e áreas urbanas não atendidas por saneamentos básico. Esses são exemplos de racismo ambiental. Tá na hora da gente entender esse tema e dar espaço e visibilidade para quem realmente está fazendo algo para enfrentar todo esse sistema que nos exclui!!! Até porque o racismo ambiental afeta, principalmente, as mulheres pretas, periféricas, indígenas, ribeirinhas e quilombolas (Costa, 2022 21).
Amanda Costa traduz, em linguagem descontraída e acessível, um conceito importante para a compreensão da justiça climática. Fala de forma bem-humorada e com recursos da ironia. Ao final do vídeo dá exemplos e articula sua narrativa de modo impactante. Lembra que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto que luta a favor da moradia, é um ótimo exemplo de um grupo que se articula para enfrentar injustiças. E encerra: “Pegou a visão, não é? Antes que eu esqueça, anota uma parada: O Brasil foi invadido e esse foi nosso primeiro caso de racismo ambiental!” (Costa, 2022).
Conforme indicado por Motta (2013) a etapa de organização da narrativa nos permite compreender o poder e as intenções persuasivas da composição da intriga por parte de narradores e destinatários. O autor destaca que a linguagem narrativa é por natureza dramática e a sua retórica é ampla e rica. “Intencionalmente ou não, geram nos receptores inúmeros efeitos de sentido poéticos e simbólicos. Esses efeitos catárticos suscitam estados de espírito diversos: surpresa, espanto, perplexidade, medo, compaixão, riso, deboche, ironia etc” (Motta, 2013, p. 203). Chama também a atenção no texto dos posts de Amanda o uso de gírias e expressões relacionados ao repertório oral de jovens. Os recursos apontados promovem a identificação das pessoas, humanizam os fatos e promovem a compreensão com dramas humanos.
Txai Suruí, igualmente, usa recursos que recriam um diálogo com quem lê suas postagens, como o questionamento, a perplexidade, a decepção:
Fonte. Retirado de O que estamos fazendo para adiar o nosso fim? [Vídeo], por Txai Suruí [@ txaisurui], 2023a, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CxwbLn6tQLb/)
Esta postagem de Txai Suruí, que também se utiliza de vídeo, evoca um sentimento de tristeza com a imagem dos peixes mortos, com a seca na Região Norte do Brasil (no segundo semestre de 2023). Reproduzimos o texto abaixo:
o que estamos fazendo para adiar o nosso fim, da natureza e dos ecossistemas? Estamos como peixes sendo asfixiados sem oxigênio, pois está insuportável respirar. Esta catástrofe está acontecendo neste momento aqui no estado do Amazonas em vários municípios, pela vazante dos rios, aquecimento das águas e a diminuição do oxigênio das águas. As mudanças climáticas são reais e nossos povos já são afetados. E os seres humanos fazendo queimadas para assentar gado. Desmatamento para monocultura. Garimpo ilegal. Onde vamos parar? (Suruí, 2023).
Os dois exemplos denotam que a organização das narrativas busca impactar quem as consome, acessando recursos emocionais. A seguir discutimos mais profundamente como se dá a revelação de conflitos como eixos que estruturam as narrativas sobre justiça climática.
5.3. A Revelação de Conflitos Enquanto Frame Estruturador da Narrativa Sobre Justiça Climática
Nesta etapa na análise ficam explícitas as marcas de ação ativista, em especial, os pontos de pressão social, presentes nas postagens de Amanda Costa e Txai Suruí. A partir desse movimento de análise são reveladas relações entre visões de mundo diferenciadas na disputa pelo consenso cultural e construção de uma realidade discursiva hegemônica. Motta (2013) questiona: “quem detém o poder de voz? Esse poder provém de quais relações sociais? Até onde os interesses dos vários atores envolvidos em uma narração se chocam ou se entretecem para configurar os enredos?” (p. 213).
Todas essas inquietações estão presentes na construção narrativa do net-ativismo ambiental de Txai Suruí e Amanda Costa, conforme abaixo:
Fonte. Retirado de Porque as periferias são as mais afetadas? [Vídeo], por Amanda Costa [@ souamandacosta], 2023a, Instagram. (https://www.instagram.com/reel/Cx_e1iuvxIx/)
Ao usar o recurso da pergunta, Amanda toca no âmago do conflito, conforme o texto demonstra: “Por que as periferias são as mais afetadas pelas mudanças climáticas? O que é Racismo Ambiental? Podemos fazer algo para mudar? Tá na hora de discutir o clima na quebrada!” (Costa, 2023). O post é um convite para o novo projeto do Instituto Perifa Sustentável. Conforme já destacado, o perfil de Amanda Costa, ativista que se dedica exclusivamente ao tema da emergência climática, apresenta posts sobre justiça climática com mais frequência. Suas postagens conectam questões interseccionais e questionam ao acesso à justiça e aos direitos humanos.
Como mulher negra, Amanda Costa busca constituir o espaço de legitimidade a partir de seu lugar de fala e não se curva aos polos de poder. Amanda se ergue contra a colonização de corpos, conhecimentos e subjetividades a partir de sua voz ativista. Consciente das interseccionalidades, tece narrativas que discutem gênero, classe social, questões étnico-raciais, entre outras clivagens, como faixa etária, condição física e posição geográfica, sempre conectadas às questões sócio-históricas.
Fonte: Retirado de Você já ouviu a palavra do feminismo hoje? [Fotografia], por Amanda Costa [@ souamandacosta], 2023b, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CzOaF7cr8ND/)
Amanda utiliza-se do recurso de posts em parceria, o que agrega maior público à sua plataforma. Do mesmo modo, Txai também se utiliza do recurso de postagem com parceiros, que inclusive retomam seu discurso na COP-26. A postagem em colaboração com o Tribunal Superior do Trabalho, por ocasião do evento “Gente que Inspira - Jovens”, apresenta Txai Suruí e inclui o vídeo da fala da ativista, outro exemplo que traz à luz sua ancestralidade para o enfrentamento da crise climática.
Fonte. Retirado de Da etnia Paiter Suruí, Txai Suruí (@txaisurui) é coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que defende a causa indígena, por Txai Suruí [@txaisurui], 2023b, Instagram. (https://www.instagram.com/reel/CupGZ97grdK/)
Durante a participação da jovem na COP-26, ela enfatizou que não haverá justiça climática sem justiça social para os povos indígenas. Reproduzimos um trecho:
a Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo ( ... ). Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais. Não é 2030 ou 2050, é agora ( ... ). Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar nos centros das decisões que acontecem aqui. (Suruí, 2021, 00:00:36)
Em outro post, Txai lembra que as mudanças climáticas têm contribuído para padrões climáticos imprevisíveis, resultando em uma seca devastadora no coração da Amazônia. Chama a atenção de que é preciso agir agora para combater as mudanças climáticas e proteger o equilíbrio vital das chuvas.
Fonte. Retirado de #PreserveNossaAmzônia [Fotografia], por Txai Suruí [@txaisurui], 2023c, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CyG6REysRTk/)
Como mulher indígena, Txai Suruí evidencia a urgente necessidade de reconexão com a proteção ambiental, a proteção de nossa casa comum. A voz de Txai ecoa a cobrança por ações contra o colonialismo e o racismo que, historicamente, violaram corpos e territórios, mas que se materializam até hoje, na contemporaneidade. Sua narrativa busca ativar a visão de que somos uma pequena parte do que chamamos de natureza, desequilibrada por conta das ações humanas.
Nessa terceira etapa de análise é possível perceber que as narrativas das duas ativistas fazem grande enfrentamento às estruturas de poder. Txai Suruí e Amanda Costa desafiam o capitaloceno22, evidenciando que transformações urgentes para o enfrentamento da emergência climática dependem de ações políticas e econômicas, a fim de minimizar as desigualdades no contexto do capitalismo global. As ativistas colocam seus saberes, corpos e subjetividades a serviço de conter a imensa destruição em curso (Haraway, 2016).
As jovens ativistas, mulheres e não-brancas, vocalizam o que Bruno Latour (2020) afirmou ao perguntar à humanidade, “onde aterrar”?, de forma a se orientar do ponto de vista político nesse momento em que “a natureza se transformou em território” (p. 17) e que os povos são despojados de suas territorialidades. A filósofa Alyne Costa, ao comentar esse ensaio de Latour, adapta uma frase do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2016), ao afirmar que, no Brasil, diante das catástrofes ecológicas e sanitárias que já começam a acontecer, todo mundo de certa forma se torna indígena, desterritorializado (Costa, 2020, p. 135).
Por outro lado, a análise das articulações de Txai e Amanda transparecem tessituras narrativas que costuram ancestralidade e futuro. Há uma simbologia interessante que conecta as duas ativistas: ambas estão à frente de organizações ambientais que têm como ícones aves (kanindé e sankofa). São livres para alcançar novos horizontes e, apesar dos debates e discussões pessimistas sobre a crise socioambiental e climática, apresentam potencial para espalhar palavras de esperança centradas em ação, experiências e exemplos concretos de articulações.
6. Considerações Finais
A justiça climática propõe que as mudanças no clima sejam combatidas com a responsabilização daqueles que efetivamente causam o desequilíbrio e que apresentam mais condições de enfrentá-las. A matriz interseccional não pode ser invisibilizada nessa discussão. O patriarcado, em todas as culturas, fortalece a injustiça climática. Mulheres, jovens, populações negras e tradicionais, especialmente vulneráveis nas dinâmicas de violência e desigualdades, passam a ser protagonistas ao criar fissuras nas estruturas de dominação. Elas entretecem novas tramas e disputam narrativas, mesmo nos cenários em que as lógicas do capitaloceno imperam, como nas redes sociais digitais, em especial na luta por proteção socioambiental, território histórico de exploração.
A partir das etapas de análise crítica da narrativa, percebemos que as práticas de advocacy sobre justiça climática estão bastante manifestas nas narrativas das jovens ativistas aqui evidenciadas, principalmente porque ambas integram a organização Engajamundo de liderança jovem. No caso de Amanda Costa, suas narrativas são totalmente voltadas ao combate à crise do clima. Txai Suruí realiza seu ativismo ambiental em defesa dos povos indígenas e relaciona, em grande parte de suas narrativas, que tal proteção se dá diante do maior desafio da humanidade: agir contra as mudanças climáticas. Apesar do recorte abranger os meses de julho a novembro de 2023, a análise permitiu compreender que as articulações de Txai Suruí e Amanda Costa se dão no campo do net-ativismo ambiental na luta por justiça.
Deste modo, as brechas que as jovens mulheres abrem, mesmo que ainda com alcance reduzido, ampliam as possibilidades de sensibilização da sociedade sobre as mudanças do clima e, com isso, expandem canais de cobrança social para enfrentar a crise. Neste momento em que nossa responsabilidade social compartilhada de cuidar de nossos jovens se mostra ainda mais evidente, as ativistas evocam, por suas vozes e corpos, o grito de emergência em busca de justiça climática. Suas vozes-mulheres ecoam: o futuro é ancestral.