1. Introdução
As alterações climáticas (AC) representam uma ameaça significativa para a saúde humana, englobando desafios globais, influenciados por mudanças no ambiente e nos ecossistemas, que têm impactes na saúde de populações humanas. Além disso, há também problemas locais, como perturbações respiratórias ou autoimunes, vinculados à poluição química do ar, ao aumento dos casos de recém-nascidos com baixo peso e ao aumento de abortos espontâneos.
Os incêndios florestais causam poluição do ar e da água, migrações e êxodos populacionais, perturbações da saúde mental e mortes; as temperaturas extremas levam à exaustão por calor, insolação e hipertermia; as mudanças nos padrões de distribuição dos insetos e vetores transmissores de doenças causam novas epidemias em locais anteriormente protegidos (Gage et al., 2008).
Além desses impactes diretos, as AC têm efeitos indiretos na saúde humana e também não humana. A escassez de alimentos resulta de mudanças na agricultura causadas por secas ou inundações, mediada por modificações nos sistemas sociais que podem causar conflitos violentos e movimentos populacionais entre regiões geográficas distintas. A elevação do nível do mar e a sua imprevisibilidade afetam o funcionamento das grandes cidades e até mesmo a sua existência (Vidal et al., 2022), contribuindo para o surgimento de eventuais Estados 2.0. em territórios alheios. É evidente que os grupos socioeconómicos mais vulneráveis suportarão os maiores riscos, com impactes desproporcionais sobre os países mais vulneráveis, as crianças e os idosos (Costello et al., 2009). Estas novas realidades geram uma sensação de estranheza diante de um mundo em transformação. Para compreender as mudanças fundamentais que enfrentamos, Beck (2016) descreveu estas transformações massivas como a “metamorfose do mundo”. Neste contexto, Seixas et al. (2021) propôs diversas descrições das “zonas críticas do antropoceno” que estão em perigo por cores: zonas cinzentas, decorrentes de um processo de urbanização que pulverizou a natureza; azuis, onde aos problemas socioecológicos que decorrem da poluição dos rios se agrega a subida do nível médio das águas do mar e a ameaça de infraestruturas e equipamentos; verdes, onde a exploração desmedida dos recursos acarreta diversos danos para a preservação ambiental; e as castanhas, zonas sacrificiais, com impactes gerados pela mineração e resíduos.
Embora existam soluções práticas para problemas específicos, a situação é paradoxal e de modificação complexa. A reconfiguração necessária será não apenas do ponto de vista prático, mas também conceptual, pois há necessidade de novas ideias para operacionalizar novas práticas. Como afirmou o psicólogo Kurt Lewin na década de 1950, “nada é mais prático do que uma boa teoria” (p. 169): a metamorfose do mundo implica, também, uma metamorfose da mente e do pensamento. O objetivo deste artigo é, assim, propor teorias e estruturas práticas que reexaminem alguns aspetos conceptuais dos riscos para a saúde relacionados com as AC. Esta proposta baseia-se nos resultados da investigação realizada pela rede transdisciplinar Compor Mundos: Humanidades, Bem-Estar e Saúde (Fundação Fernando Pessoa, s.d.). Este projeto reúne um conjunto de especialistas das ciências humanas e sociais e da saúde, e reflete sobre ideias que possam inspirar o tipo de mundos que queremos compor, promovendo a saúde global, reforçando a humanização das culturas e apoiando o bem-estar nos nossos ambientes de vida comuns. O projeto surgiu na Universidade Fernando Pessoa e reuniu, inicialmente, um grupo de 12 especialistas de três universidades diferentes. A relevância deste projeto prende-se com a evidência crescente de que a maioria dos problemas que o século XXI enfrentará, particularmente na área da saúde e do bem-estar, está relacionada com a forma como os seres humanos afetam o clima e se adaptam a diferentes ambientes, interagem com outras espécies, utilizam tecnologias, desenvolvem culturas e políticas ou promovem a inclusão social.
Neste contexto, o período em que vivemos acolhe grandes responsabilidades, sobretudo no que se refere a uma reconfiguração da relação entre humanos e não humanos, os últimos comummente associados ao conceito de “natureza”, na nossa cultura (Descola, 2005).
2. Enquadramento Teórico
Este trabalho parte da premissa de Beck (2016) de que vivemos uma metamorfose da vida social e das dinâmicas ambientais, tornando mais difícil entendê-las. O autor afirma que o mundo defronta eventos que desafiam o equilíbrio, como ataques terroristas, desastres nucleares, crises económicas e guerras. Em grande parte, a tecnociência controla o processo técnico e económico, sobrepondo-se a valores humanistas e democráticos (Lencastre et al., 2023). Beck (2016) explora a aplicação social e ambiental do conceito de “metamorfose”, relacionando-o com a necessidade de ir além do que ele chama de “nacionalismo metodológico”, na direção de um “nacionalismo cosmopolita”, uma vez que a humanidade está impregnada por um realismo global que é independente da sua própria vontade. Latour (2022) reflete sobre a cosmopolítica como um projeto que procura negociar equivalentemente uma multiplicidade de mundos. Com base nestes autores, propomos um enquadramento conceptual para compreender as dinâmicas complexas entre as AC e os riscos para a saúde. Este enquadramento integra a natureza e a cultura, atualizando trabalhos anteriores de Lencastre e Leal (2006) e Vidal et al. (2023) e cumprindo requisitos da sociogeobiologia e cosmopolítica do antropoceno.
As dimensões conceptuais que a seguir se apresentam foram originalmente pensadas no contexto do projeto TERRA1, desenvolvido em 2006 por Lencastre e Leal. Este projeto de transversalização curricular das questões socioambientais no ensino básico integrou questões éticas, sociais e ambientais, procurando fazê-las emergir dos programas curriculares nos pontos disciplinares em que elas estão contidas de modo implícito, ou introduzindo-as através de questões socioambientais pertinentes, trabalhadas ao nível micro, meso ou macro, nas escolas envolvidas. O projeto TERRA incluiu a formação de professores na promoção da interdisciplinaridade e da metodologia de projeto de escola/ano, acentuando a ação local e uma compreensão mais profunda dos significados da literacia ambiental global (Lencastre & Leal, 2006). Vidal et al. (2023) atualizaram estas dimensões conceptuais tendo em conta o conceito de “metamorfose do mundo” de Beck (2016) e a sua aplicação aos impactes das AC na saúde:
Coevolução, mudança e metamorfose do mundo - desde o início, a Terra tem sofrido grandes mudanças permeadas por longos períodos de estabilidade, nos quais as espécies se sucederam e transformaram habitats e, em geral, ecossistemas e biomas terrestres. Associados às dinâmicas geológicas e climáticas, estes processos deram origem à situação atual que interage com os efeitos de origem antropogénica, gerando a era do antropoceno. As culturas humanas, na sua diversidade, contribuem de diferentes maneiras e com diferentes pesos para o processo co-evolutivo global. As sociedades modernas estão confrontadas com as externalidades das suas ações e valores (mais consumo e volatilidade), e há cada vez mais evidência de uma urgente necessidade de mudar as formas de vida e a política em geral. Os indivíduos modernos sentem que o seu mundo está a passar por uma mudança fundamental, uma metamorfose profunda de vida (Beck, 2016) e essa situação afeta, sobretudo, a saúde e o bem-estar.
Complexidade não linear e relações entre humanos e não humanos nas “zonas críticas” - as AC são tradicionalmente descritas como sistemas complexos que envolvem um conjunto elevado de variáveis em interação não linear, originando estados finais descritos como os “atratores caóticos” de um resultado probabilístico. Na prática, e quando confrontados com problemas socioambientais locais que exigem intervenções urgentes, esses sistemas são mais bem descritos como emaranhados relacionais de seres humanos e não humanos que habitam “zonas críticas” em territórios finitos. A descrição destas “zonas críticas” requer uma inventariação realista das condições de existência (Latour, 2017), assim como conhecimentos científicos específicos, que permitam a tomada de decisões. O regresso ao contexto local é uma condição essencial para a organização pragmática da cooperação comunitária diante de riscos ambientais que afetam a saúde e o bem-estar dos coletivos, afastando-se da exclusiva dependência das decisões dos governos centrais;
Incerteza e estranheza - os emaranhamentos locais de humanos e não humanos implicam níveis elevados de incerteza nos conhecimentos científicos, sociais, culturais e políticos sobre os coletivos. Quando a incerteza dos sistemas e os riscos da decisão são altos, a controvérsia relativa às decisões necessárias torna-se provável. Este é o processo pós-normal da ciência aplicada (Funtowicz & Ravetz, 1994), que torna a democratização e o conhecimento público da ciência numa etapa obrigatória. Para tomar decisões práticas, estes autores recomendam que se constituam comunidades extensas de pares, oriundos de perspetivas sociais e tecnocientíficas diversificadas, que possam lidar com os níveis elevados de incerteza e de estranheza típicos da metamorfose socioambiental, com a pluralidade de valores e perspetivas legítimas dos parceiros envolvidos.
Risco, precaução, prevenção e reflexividade - a complexidade e a incerteza referem-se tradicionalmente à capacidade da ciência para identificar riscos e precauções associados com a tomada de decisão pericial. Mas as ideias claras de causalidade, retroatividade temporal e independência de variáveis que caracterizavam as cadeias de determinação da ciência tradicional estão hoje abandonadas. A ignorância muitas vezes permeia o conhecimento científico ao prever fenómenos físicos, biológicos e sociais globais que, por sua vez, interferem nas dinâmicas ecológicas, económicas e políticas locais. A ideia de que a vida moderna engendrou e que agora permeia perfis territoriais globais e locais é geralmente aceite. A consciência pública, a reflexividade pessoal e o estabelecimento de meios de prevenção são os resultados da situação atual, mesmo que a ação não siga imediatamente o pensamento. Apesar da relativa consciência dos factos, a ação individual e coletiva parece insignificante diante da magnitude dos perigos naturais externalizados. No entanto, deve ficar claro que toda a decisão cultural é imediatamente natural: vivemos em mundos tecnonaturais (Roqueplo, 1993).
Paisagismo regenerativo e modos de coexistência - o conceito de “desenvolvimento sustentável” e a sua desejável integração tripartida - ecológica/ambiental, social e económica - apresenta-se como uma das principais preocupações e um dos grandes desafios dos últimos anos. Mas a sustentabilidade não cumpriu as suas promessas, porque os seus objetivos estavam centrados primeiramente em satisfazer as necessidades humanas fundamentais, tentando não comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem as suas, uma visão muito dependente de interesses económicos e de financiamentos (Piteira et al., 2023). Como alternativa, o “paisagismo regenerativo” e a “agricultura regenerativa” surgiram como novos conceitos que investem na restauração e na revitalização dos territórios locais, urbanos e não urbanos, com base nas suas fontes endógenas de energia, materiais, clima e perfil das espécies locais. A ideia é criar comunidades ecológicas resilientes e equitativas, sistemas que integrem as necessidades das populações humanas e não humanas. O design regenerativo (Wahl, 2016) inspira-se no biomimetismo e na biofilia (Lencastre et al., 2022), na economia circular, bem como em ideias de renaturalização (rewilding) e justiça restaurativa. O seu foco é mapear os relacionamentos entre humanos e não humanos e promover a coevolução harmoniosa através de uma abordagem de cocriação em que as pessoas fazem parte de um projeto social coletivo.
Territórios e diversidade humana e não humana - no contexto das discussões sobre as zonas críticas e os impactes das AC na saúde, é crucial também considerar a diversidade local, tanto humana quanto não humana. A diversificação parece ser uma das características adaptativas mais importantes dos sistemas naturais e culturais resilientes, sendo um conceito importante para descrever vários níveis dos seres vivos: diversidade molecular, genética, fisiológica, etológica, psicológica, social, cultural e ecológica. A diversidade ecológica das culturas é evidente quando associada a modos de vida locais e tradicionais. A miscigenação humana, baseada em grande parte nas migrações passadas, atuais e futuras, pode aumentar a diversidade genética e cultural e constituir um dos eixos mais importantes da dinâmica demográfica humana no século XXI. Contudo, esta diversificação surge associada à sua tendência oposta, que é a homogeneização operada pela seleção natural/cultural que as culturas dominantes exercem sobre as culturas minoritárias. Os territórios locais também estão sujeitos à mobilidade das espécies não humanas em busca de condições de vida. Para descrever as dinâmicas locais da natureza/cultura, como, por exemplo, o uso da água, a distribuição de alimentos e as necessidades de energia ou abrigo, importa olhar a diversidade através de uma lente ecológica e dinâmica que permita a perceção global destas diferentes relações com o espaço geográfico.
Cosmopolítica e equidade multicultural e multiespécie - a “equidade” consiste numa noção diferencial de justiça que distribui as riquezas e os recursos materiais ou simbólicos de forma adaptada às necessidades locais dos grupos humanos (Tsing, 2015). Num mundo globalizado com recursos finitos, onde diferentes populações competem por eles, há uma crescente preocupação em dividir os territórios com outros seres. Essa preocupação exige repensar as “zonas críticas” dos territórios, com os seus habitantes humanos e não humanos, enredados em imbróglios de interesses (Latour, 2016). No antropoceno, as “zonas críticas”, onde a vida se desenrola, parecem muitas vezes desordenadas, por vezes estranhas e imprevisíveis, imperfeitamente sintonizadas com as velhas, e até com as novas narrativas locais, com as políticas, as práticas e os hábitos sociais comuns, bem como com as mobilidades e compromissos estabelecidos com outras espécies. O pensamento e a ação cosmopolíticos pretendem abordar estas diversas experiências e histórias, seguindo uma descrição da pluralidade dos modos de existência para entender as relações em presença e criar novas possibilidades estratégicas de ação (Stenghers, 2005).
Modos de ação e controvérsia - uma das características centrais da aplicação das ciências contemporâneas é o seu caráter urgente e potencialmente controverso, sujeito a diferentes fundamentações vindas de diferentes atores válidos. Para Latour (2016), quando se discute publicamente os riscos para a saúde, como, por exemplo, os efeitos adversos de aditivos químicos alimentares industriais, é importante descrever claramente o que está em jogo, ou seja, os modos de ação dos diferentes agentes envolvidos na controvérsia. Neste caso, são os químicos, as reações alérgicas causadas por eles, as perceções, atitudes e comportamentos dos industriais, dos cidadãos, do governo local e de outros grupos interessados, como os animais não humanos ou as plantas. Todas essas entidades ocupam um espaço comum e têm formas únicas de se relacionar com as outras entidades e com os demais elementos que compõem o coletivo. Factos e valores diferentes estão entrelaçados e os procedimentos deliberativos devem esclarecer primeiro os modos de ação, para permitir a discussão que leva depois à tomada de decisões.
Inventário, diplomacia e ação - a tomada de decisões sobre questões complexas em coletivos incertos torna os processos colaborativos de produção de consensos num dos pontos essenciais da cosmopolítica contemporânea. Esta deve basear-se no “empirismo e no irreducionismo radical” (Latour & Muecke, 2021, p. 12), abrindo a discussão para o pluralismo ontológico e disciplinar.
Para as controvérsias práticas, Latour (2016) propõe uma nova diplomacia que negoceia no espaço intermediário entre os intervenientes, olhando atentamente para a descrição das coisas e evitando conceitos abstratos como “sociedade” ou “natureza”. Para este autor, o inventário pragmático dos seres deve levar a uma descrição concreta, antes de propor uma explicação. A mediação diplomática entre modos de existência tem por objetivo levar à construção de um mundo comum.
Como vimos, a complexidade das AC e dos seus impactes multidimensionais na saúde e bem-estar de humanos e não humanos mostra que as abordagens quantitativas podem calcular os efeitos, mas não conseguem desconstruir os significados e discursos associados a eles. Assim, uma abordagem reflexiva baseada em descrições realistas e em métodos participativos pode contribuir para uma compreensão mais aprofundada deste fenómeno complexo. As etapas metodológicas da rede Compor Mundos, descritas na próxima secção, pretendem ser uma contribuição para este problema.
3. Metodologia
A metodologia utilizada neste projeto baseia-se em dados obtidos por fontes primárias, com recurso a um inquérito por entrevista com guião de resposta aberta (ver Anexo 1). Este guião foi construído de forma participativa pela rede de 12 especialistas (masculino - nove; feminino - três) de um vasto leque de disciplinas de três universidades portuguesas, incluindo áreas como a bioética, a literatura, o cinema, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a etologia, a medicina, a comunicação, a geografia, a arquitetura paisagística e os estudos científicos e tecnológicos. Esta entrevista foi enviada por escrito a cada um dos especialistas, que responderam também por escrito, tendo como recomendação responderem o mais fundamentadamente e o mais pessoalmente possível a cada uma das questões anteriormente definidas por todos. O objetivo da entrevista, dividida em quatro dimensões, foi trazer à luz conhecimentos e sensibilidades pessoais e fundamentados face às grandes questões que envolvem as humanidades, a saúde e o bem-estar nas sociedades contemporâneas, incluindo as AC e os seus riscos para a saúde. A rede Compor Mundos: Humanidades, Bem-Estar e Saúde constituiu-se a partir deste momento fundador, desenvolvendo a sua identidade a partir deste primeiro trabalho de levantamento dos conhecimentos, sensibilidades e preocupações. Os textos recolhidos pelas entrevistas foram sujeitos a análise temática e organizados por ideias-chave e por temas, dos quais se procuraram identificar as correspondências semânticas, em grupos de significado principais (Lencastre & Estrada, 2022).
A presente investigação caracteriza-se por ser indutiva, realista e de nível semântico; o seu objetivo é identificar temas originais emergentes em cada entrevistado, e não analisar os seus contextos históricos, críticos ou psicológicos. Ao adotar esta abordagem, as perguntas do inquérito foram formuladas de forma mais aberta e ampla, sem uma vinculação direta às AC de modo a permitir uma exploração das perceções e experiências dos participantes, sem restringir o diálogo apenas a um tópico específico. Acresce que a pesquisa fez uma análise profunda das palavras e significados associados aos temas abordados, de modo a explorar as implicações semânticas das questões de saúde, bem-estar e humanidades na contemporaneidade, sem necessariamente abordar diretamente as AC.
Esta pesquisa exploratória utiliza a análise temática com vários níveis de leitura e de codificação do texto para identificar as ideias-chave originais de cada autor, e a indução dos temas principais correspondentes, de acordo com as indicações metodológicas desenvolvidas em Braun e Clarke (2006) relativamente à análise temática. As respostas dos especialistas ao inquérito por entrevista foram sujeitas a seis níveis de leitura, análise e síntese:
Leitura global e familiarização com o texto de cada especialista;
Leitura global de cada texto sublinhando as ideias-chave;
Análise global de cada texto codificando, por termos, as respetivas ideias-chave;
Análise parcial de cada texto organizando as ideias-chave relacionadas por temas;
Retoma do texto global, das ideias-chave e dos temas, revendo-os e sintetizando-os em nove temas principais;
Revisão definitiva do corpus das ideias-chave e dos temas principais pelos especialistas.
Os temas abordados incluíram, entre outros, os tipos de notícias e o bem-estar, a ecologia e as relações com os animais não humanos, a paisagem regenerativa, as redes sociais e os dispositivos digitais inteligentes, as identidades, o género, a educação, a diversidade e os valores, a saúde do cérebro e as tecnologias médicas e psicológicas, a evolução e a saúde mental, a investigação transdisciplinar, a subjetividade e o lugar da narrativa, a estética, a ética e a espiritualidade. Posteriormente, foram organizados em grupos de correspondência, ou clusters temáticos, em que foram reunidos por proximidade semântica.
4. Resultados e Discussão
A partir desse agrupamento, foram identificados os seguintes grupos temáticos: (a) conhecimento público e ciência pós normal; (b) pensamento crítico e ética em saúde; (c) bem-estar, saúde, democracia e justiça social; (d) abordagem holística (transdisciplinar) da saúde e do bem-estar; (e) sistemas de saúde, diversidade, culturas e natureza; (f) tecnologias, inteligência artificial, saúde e bem-estar; (g) ambiente, saúde, sustentabilidade e equidade; (h) evolução, organismos, tempo e saúde mental; (j) a saúde como um proto-valor produzido nas relações entre e com as pessoas.
De um modo geral, com base nestas entrevistas, ficou claro que a pós-modernidade parece ter dado lugar a novas narrativas e a novas interrogações éticas e, até, metafísicas. Temas como a felicidade, o amor, a compaixão, a bondade e a beleza, e conceitos universais como o “antropoceno” e os “direitos humanos”, associados ao pensar local/agir pessoal, parecem ter substituído o relativismo dos pensamentos e das práticas, o construtivismo dos sentimentos, o localismo e o imanentismo dos valores e o multiculturalismo comunitário. Baseado no seu trabalho sobre a imagem, Descola (Fondation Louis Vuitton, 2018) diz-nos que podemos estar a assistir a uma lenta mudança do paradigma naturalista para uma conceção mais analogista das relações entre humanos e não humanos.
Embora todos os clusters apresentem relevância, escolhemos cinco clusters específicos para aprofundar a discussão sobre os riscos das AC na saúde humana e ambiental. Esta escolha baseia-se em critérios que visam estabelecer uma conexão direta e substancial com esse tema. A seleção é fundamentada nos princípios teóricos anteriores, bem como em conceitos científicos relacionados aos impactes das AC na saúde. Apresentamos os clusters nas subsecções seguintes.
4.1. Conhecimento Público e Ciência Pós-Normal
Segundo a obra seminal de Latour (1993), a ideia de ciência foi substituída por uma ideia mais flexível e realista das ciências em desenvolvimento dentro de redes de cientistas, de tecnologias, de objetos, pessoas e interesses. De facto, para Latour, ciência e modernidade engendram-se mutuamente, gerando também a ideia de uma seta do tempo que conduz inevitavelmente ao progresso. Mas as situações ambientais de hoje, particularmente as AC, mostram que essa ideia de progresso leva a um estado confuso de coisas em que os conceitos tradicionalmente separados de “ciência”, “natureza” e “cultura” se encontram interligados e produzem externalidades que inevitavelmente afetam os “objetos” e os “sujeitos” da modernidade. As AC e os seus efeitos na saúde reclamam uma conceção mais flexível e aberta das ciências, interagindo com os coletivos de humanos e não humanos que são afetados por elas.
Este estado de coisas também é reconhecível no contexto da transmissão da ciência entre especialistas e leigos. O modelo linear de transmissão de conhecimentos foi substituído por uma ideia mais complexa de “negociação de significados” que surgem durante o processo coletivo de socialização das ciências. Estes espaços eco-sócio-culturais híbridos entre ciências e coletivos incluem não só especialistas de diferentes origens, mas também as pessoas interessadas, os seres não humanos, como animais, plantas, elementos geológicos ou ecossistemas, que são representados pelos falantes humanos. A diplomacia latouriana age neste espaço híbrido e é baseada no que Latour designa como (a) o “empirismo radical”, isto é, uma descrição próxima do que realmente acontece, num lugar real ou território; também (b) o “irreducionismo”, que é a inclusão de tudo o que é relevante para um inventário concreto e para a explicação de um coletivo vivendo num espaço real (o oposto da redução científica, que isola entidades em laboratório e se interessa por cadeias causais simplificadas); e, finalmente, (c) o “consenso”, ou seja, a negociação no espaço intermediário entre os intervenientes, olhando atentamente para a descrição das coisas e evitando conceitos abstratos. Neste espaço híbrido, os pensamentos crítico e ético encontram a sua maior relevância para a ciência aplicada. Isto significa que as ciências especializadas de laboratório são incorporadas no mundo real, onde operam as coisas reais, onde os seres vivos, incluindo os humanos, se esforçam por habitar. A diplomacia, no contexto desta conceção cosmopolita extensa dos lugares de vida terrenos, representa um esforço de mediação e consenso para a construção de um mundo comum que seja habitável por todos.
Os debates locais mostram que não há respostas certas ou apenas uma aplicação da ciência na tomada de decisões, complexificando-se quando introduzimos a ecologia das outras espécies nas considerações sobre as AC, os seus habitats e os seus modos de vida. A complexidade da tomada de decisões aumenta exponencialmente. Com exceções óbvias, como os povos indígenas ou as pessoas que vivem em países desfavorecidos, o modo de vida humano moderno depende profundamente do que precisa de ser mudado se quisermos limitar os efeitos das AC e todas as suas consequências planetárias. Esta procura de consenso em coletivos plurais assemelha-se apreciavelmente a um cenário pré-moderno, como diria Latour (1993), ou extra-moderno, como diria Descola e Pignocchi (2022).
Nas sociedades tecnológicas contemporâneas, que enfrentam importantes impactes locais das AC na saúde, um levantamento criterioso dos dados locais é tão importante para o exercício correto da ciência pós-normal preventiva, como o pensamento crítico e ético. Nos dias de hoje, as comunidades ampliadas de pares devem também incluir representantes dos animais não humanos, e também dos elementos naturais como a água doce, a terra e as plantas. Profundamente sentidas, as dimensões poéticas humanas, nas suas relações com as sensibilidades não humanas, também devem ser tomadas em conta, porque a complexidade e a novidade dos cenários emergentes das AC, e os seus impactes globais, significam que eles exigem soluções novas e radicais. Quando essas dimensões entram na diplomacia cosmopolítica, podem condicionar profundamente as soluções para as novas situações. A ciência pós-normal propõe quadros metodológicos transdisciplinares e estratégias de resolução de problemas que incluem a incerteza dos sistemas naturais associados aos interesses e valores humanos e não humanos, na tomada de decisões em zonas críticas.
4.2. Pensamento Crítico e Ética em Saúde
Sabendo que a saúde é hoje entendida como o equilíbrio entre as diferentes dimensões pessoais (bio-psico-social-espiritual), e sabendo que esse equilíbrio interage e é afetado por outros indivíduos, animais, plantas e o ambiente compartilhado, consideramos que os cuidados de saúde e a gestão da saúde requerem pensamento crítico. No atual mundo tecnológico, diante do risco de despersonalização e de “Undinge” (Han, 2021) - um mundo onde os objetos são substituídos por informações - “desafio” é uma palavra-chave. É preciso desafiar pressupostos e contextos e (re)imaginar caminhos alternativos para viver em e com complexidade. Além disso, a saúde é um continuum entre ser saudável e estar doente, onde pessoas saudáveis podem conviver por muito tempo com doenças diagnosticadas e pessoas doentes podem sentir-se mais saudáveis do que a narrativa hegemónica entende como “saudável”. Este pensamento binário geral, a patologia da normalidade (Weil et al., 2017), deve, portanto, ser desconstruído no contexto da saúde, e as duas principais ferramentas para atingir esse objetivo são a reflexão crítica e o pensamento ético, estando ambos inter-relacionados.
Os conceitos e contextos plurais implicam uma revisão crítica do conhecimento, de si e do mundo, bem como uma reflexão interdisciplinar sobre questões de saúde e de educação, focada em saber ser e estar, além dos tradicionais modos de saber o que fazer e como pensar. O envelhecimento das populações requer abordagens não binárias e críticas dos cuidados, dado que o processo de envelhecimento implica frequentemente comorbilidades para as quais não há tratamento curativo, mas sim acompanhamento capaz de sarar e reduzir as vulnerabilidades subjacentes. A imprevisibilidade e a incerteza parecem estar em desacordo com a busca pelo diagnóstico correto e o melhor curso de ação/tratamento, com base na melhor evidência científica que é a base da medicina baseada na evidência. Não há cuidado centrado na pessoa, se a pessoa não é reconhecida como tal, ficando reduzida a uma categoria ou a um rótulo, sem a espessura do ser (que está sempre enraizada em valores, preferências, lugares e pessoas com significado). A deliberação ética deve, portanto, ser promovida nos cuidados de saúde, estabelecendo espaços seguros para a reflexão sobre o saber ser e estar e não apenas sobre o saber fazer e pensar.
Considerando a definição de “ética” de Paul Ricoeur (Martini, 2016) como visando a vida boa, com e para os outros, em instituições justas, é precisamente o significado do bem e da justiça que os profissionais de saúde, pacientes, cuidadores e formuladores de políticas devem integrar nos seus processos deliberativos e decisórios. Os objetivos de desenvolvimento sustentável (propostos pela Organização das Nações Unidas), enquanto mapa norteador dos valores que pedem realização nas nossas comunidades, exigem que cada parte interessada percorra a via longa da reflexão ética, respondendo à questão de fundo: como pode cada um de nós ser agente ativo na construção da paz e da justiça (Objetivo 16) nos diferentes contextos organizacionais e comunitários em que nos inserimos? A saúde, enquanto equilíbrio entre as dimensões bio-psico-social-espiritual, pode afirmar-se como horizonte alcançável se for enquadrada neste contexto amplo e espesso da realização dos valores éticos.
4.3. Bem-Estar, Saúde, Democracia e Justiça Social
Um estudo recente intitulado “Climate Anxiety in Children and Young People and Their Beliefs About Government Responses to Climate Change: A Global Survey” (Ansiedade Climática em Crianças e Jovens e as Suas Crenças Sobre as Respostas Governamentais às Alterações Climáticas: Um Inquérito Global; Hickman et al., 2021) mostra que os jovens sofrem de ecoansiedade, temem o futuro e culpam os governos por esta situação dramática. As crianças e jovens patenteiam sofrimento emocional (tristeza, medo, impotência, vergonha, desespero ou depressão) e as suas expectativas relativamente ao futuro são baixas e assustadoras.
A ideia de que as AC têm origem antrópica também não suscita dúvidas à comunidade científica. Como afirma o climatologista Filipe Duarte Santos (2017): “pesquisas publicadas precisamente sobre este assunto concluem que 97% dos cientistas do clima compartilham o consenso de que o aquecimento global observado é antropogénico” (para. 10).
O que pode então estar a falhar, apesar das evidências da ciência sobre o assunto, para que possamos reverter categoricamente o desastre anunciado e, ao mesmo tempo, restaurar a confiança no futuro das novas gerações? A resposta é complexa, pois mesmo em sociedades democráticas - sociedades nas quais o conhecimento e as instituições que o produzem devem ser respeitados, valorizados e ouvidos - o surgimento de lideranças populistas tem dificultado o esclarecimento e as decisões sobre o assunto.
Não tem sido suficiente, como referimos acima, para atingir o necessário consenso em relação ao clima ou, mais recentemente, à COVID-19, que a ciência adira à nova realidade comunicacional. Os mediadores, ou tradutores do conhecimento científico, pouco podem fazer quando se deparam com líderes negacionistas, que, em alguns casos, governam países muito poderosos. Tomemos, por exemplo, o ex-Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump: em 6 de novembro de 2012, referiu que : “o conceito de aquecimento global foi criado por e para os chineses para tornar as empresas dos EUA não competitivas” (Santos, 2017, para. 14).
Resumindo este ponto, podemos dizer que o mundo atual tem enfrentado desafios iminentes - por exemplo, as AC, a pandemia da COVID-19 e agora os efeitos da guerra. A estes desafios, junta-se também uma tendência infelizmente contemporânea que está a pôr em perigo a existência de uma linguagem comum entre os humanos e, assim, solapar a extraordinária experiência democrática.
4.4. Abordagem Holística (Transdisciplinar) da Saúde e do Bem-Estar
A década de 1970 foi uma época de crítica ao modelo de ensino e investigação financiados pelos governos e pelas universidades, e a transdisciplinaridade surgiu associada às preocupações éticas relacionadas com as aplicações diretas da pesquisa para a sociedade (Seixas et al., 2020). Os problemas eram demasiado complexos para serem resolvidos pela simples tradução da ciência de laboratório para o mundo real. Após 20 anos, surgiram problemas novos e altamente complexos, nomeadamente as AC e as questões urgentes da sustentabilidade ambiental, da perda da biodiversidade, da poluição e da pobreza. As relações entre ciências e tecnologias, políticas sociais, educação e o papel das humanidades e das artes, foram sendo equacionadas em novas configurações, e a transdisciplinaridade parecia ser uma forma nova e interessante de produzir conhecimentos teóricos, e também práticos.
Uma abordagem transdisciplinar para as AC, a saúde e o bem-estar significa que ensinar, aprender ou pesquisar levam em conta o que está, simultaneamente, dentro, entre, através e além das diferentes disciplinas. A transdisciplinaridade também se preocupa com os diferentes parceiros envolvidos na investigação e na ação, considerando-os como “sujeitos”, e não como “objetos”. Por outras palavras, o que se busca é a integração dos diferentes saberes e pontos de vista para alcançar uma compreensão mais profunda e mais abrangente das situações, bem como a possibilidade de desenvolver uma ação relevante.
Existem duas tendências principais na tradição transdisciplinar (Bernstein, 2015). A primeira é moldada pela The Charter of Transdisciplinarity (Carta da Transdisciplinaridade; Gibbons et al., 1994), onde são apresentadas as conceções do físico romeno B. Nicolescu: a transdisciplinaridade reconhece a complexidade fundamental dos diferentes níveis da realidade e aceita o “terceiro incluído”, abandonando a lógica aristotélica que regeu o pensamento ocidental durante séculos e preconizava a prática, comum na ciência, de separar para entender. A abordagem de Nicolescu enfatiza o mundo da vida humana e os significados vividos, na tradição fenomenológica. A segunda tendência é conhecida como a produção de conhecimentos de “Modo 2”: nesta conceção, a transdisciplinaridade consiste em abordar uma situação concreta integrando os intervenientes interessados, desde a academia científica à indústria, aos governos locais, às organizações não governamentais, aos museus, à arquitetura, às humanidades e às artes. As abordagens são complementares entre si, a primeira abordando questões do mundo real, a segunda identificando as implicações teóricas do conhecimento transdisciplinar.
A transdisciplinaridade é um quadro epistemológico interessante quando se trata de explorar ou ensinar os problemas de saúde associados às AC. Por exemplo, projetos transdisciplinares nos currículos de ensino de medicina ou de psicologia têm o potencial de mostrar mais claramente os valores tácitos das ciências disciplinares: na biomedicina, estes valores são a determinação molecular e causal das situações sociais sistémicas, o materialismo analítico dos impactes das AC nas doenças, a categorização e a universalidade dos diagnósticos médicos e psicológicos. São valores intrínsecos à disciplina biomédica que podem ser repensados à luz dos valores das humanidades.
Para entender fenómenos híbridos como as AC e o seu impacte na saúde, não basta entender os efeitos diretos isolados em laboratório ou dispor dos big data; as descobertas das ciências humanas e sociais são igualmente importantes porque falam sobre representações culturais de saúde e de clima, reconstroem as formas como as AC surgiram e como a história e a economia moldaram a situação atual, como a epistemologia, a tradição e a ética orientaram as nossas relações com a saúde e os regimes climáticos.
4.5. Ambiente, Saúde, Sustentabilidade e Equidade
A equidade é uma questão central na questão dos impactes das AC sobre a saúde. Quando não há equidade, Whitehead (1992) refere que há uma distribuição injusta e desigual dos cuidados de saúde, traduzível numa forte associação entre as posições socioeconómicas dos indivíduos e a sustentabilidade ambiental das sociedades (Oliveira et al., 2019; Vidal et al., 2018). Os fatores antrópicos e ambientais são as principais causas das AC, impactando a saúde humana e os ecossistemas e resultando em situações de injustiça ambiental (Schlosberg, 2007), racismo ambiental (Salas, 2021) e injustiça social (Comim, 2008). De facto, a história tem mostrado que os grupos sociais vulneráveis têm sido continuamente expostos à baixa qualidade do ar, à falta de acesso aos espaços verdes e, consequentemente, à pobreza e privação ambiental (Roberts et al., 2022). Portanto, juntamente com os impactes das AC que agravam as suas condições de vida, estes grupos sociais também têm os piores resultados em saúde, gerando um ciclo difícil de se interromper.
As projeções climáticas mostram que eventos climáticos extremos causados pelas AC, especialmente as ondas de calor ou de frio extremas, deverão aumentar nos próximos anos (Johnson et al., 2018). Nesse sentido, é esperado que essas ondas venham a impactar negativamente as condições de saúde. No entanto, grupos sociais vulneráveis - com problemas de saúde respiratória ou circulatória, crianças e idosos, grupos sociais desfavorecidos - provavelmente serão mais afetados porque ficarão mais expostos a esses impactes. Esta situação agrava-se quando os indivíduos vivem em condições de pobreza energética, relacionadas com a incapacidade em manter as casas frescas durante o verão e quentes durante o inverno. A adaptação e a mitigação das AC devem garantir a sua adequação à diversidade dos contextos socioculturais que, se for ignorada, pode minar os esforços para a sustentabilidade.
Os cinco clusters identificados pela rede Compor Mundos, quando combinados, podem ajudar a reforçar o papel das humanidades e das ciências sociais no sentido de lidar com os riscos de saúde devidos às AC. A Figura 1 apresenta a relação dos cinco clusters identificados por grandes eixos de análise, comunicantes e interdependentes, que podem ser aplicados à saúde e AC.
A complexidade e a multidimensionalidade das AC implicam uma comunidade de pares alargada e inclusiva que vá além da mera dimensão humana, atendendo aos pressupostos que Descola e Pignocchi (2022) referem no seu recente livro Ethnographies des Mondes à Venir (Etnografias de Mundos Futuros). Os autores apontam para uma sociedade híbrida que veria as estruturas estatais e os territórios autónomos articulados numa profusão heterogénea de modos de organização social, de modos de vida e de coabitação.
Os impactes das AC são transversais a todos os seres vivos, pelo que os seus direitos devem ser respeitados e considerados no desenho das ações de mitigação e de adaptação. Como afirmou Beck (2016), as comunidades de humanos e de não humanos, em todo o mundo, estão a enfrentar os impactes imprevisíveis dos fenómenos climáticos. A estranheza do mundo, que Beck descreve, implica o pensamento crítico relativo aos conceitos de “sociedade”, “ambiente” e, também, à saúde, para além da revisão do paradigma em que os indivíduos estão no centro.
Neste contexto, destaca-se o papel das “zonas críticas” acima mencionado, conceito desenvolvido nas ciências sociais por Bruno Latour (2014), e ampliado por diversos autores. A ideia de “zona crítica” e a prática da “ciência de zonas críticas” direcionam a atenção para análises geográficas centradas na interdisciplinaridade, em grandes conjuntos de dados e em processos tecnocientíficos participados. Para Latour (2014), a zona crítica documenta as propriedades de todos os terrestres que lá vivem e que são necessários para a sua manutenção. Como conciliar todos estes interesses? Nos últimos anos, testemunhamos a emergência de uma profunda tecnologização na gestão dessas zonas críticas, juntamente com novos métodos para lidar com o “capital vivo” e o trabalho não humano. Essas práticas são descritas no livro intitulado Critical Zones: The Science and Politics of Landing on Earth (Zonas Críticas: A Ciência e a Política da Chegada à Terra), escrito por Latour e Weibel (2020), onde é explorado o trabalho realizado por seres humanos e não humanos num ambiente em que coexistem abordagens tecnológicas com abordagens tradicionais, necessárias para a evolução humana e não humana.
6. Considerações Finais
A tecnociência provou não ser suficiente para lidar com a complexidade das mudanças globais que resultam das AC. Este artigo propôs-se repensar alguns aspetos dos efeitos das AC para a saúde através das lentes das ciências sociais e humanas. Enquadrado por uma rede transdisciplinar de académicos, a rede Compor Mundos explora em profundidade a poderosa conexão entre valores sociais, democracia, saúde, bem-estar e sustentabilidade, considerando a necessidade de caminhar para a integração de múltiplas vozes e conhecimentos, de humanos e de não humanos, para podermos lidar com as AC. Ancorados no conceito de “metamorfose do mundo”, desenvolvido por Beck (2016), defendemos que as ciências sociais e humanas podem ajudar a lidar com os riscos de saúde que resultam das AC, não apenas teoricamente, mas também na prática, através da desconstrução das narrativas comuns sobre o clima e a saúde, e a reconceptualização do complexo fenómeno socioecológico que a humanidade e os outros seres vivos enfrentam já hoje e num futuro próximo.
Os clusters identificados pela rede poderão agora ser explorados empiricamente pelos especialistas que atualmente integram a rede Compor Mundos, ou por outros investigadores interessados, fora da rede, de modo a revelar todo o seu potencial impulsionador para projetos concretos, compondo mundos. Importa referir o crescimento da rede, que em 2024 envolve já informalmente 25 especialistas oriundos de cinco universidades, e que os temas identificados primariamente pela investigação estão a ser desenvolvidos, seja em projetos interdisciplinares de pesquisa, seja através da formação e divulgação por podcasts e webinares2. Um dos objetivos iniciais deste projeto foi atuar a diversos níveis, desde o académico até ao não académico, envolvendo públicos e agentes sociais de diversos campos, já que a resolução das questões das AC e da saúde se colocam em níveis e lugares muito diversos. Sobretudo num momento em que os valores democráticos, ancorados na justiça social e no bem-estar de todos, e as ações necessárias para minimizar os efeitos das AC estão a ser desafiados, é necessária uma nova narrativa para a humanidade que promova a imaginação sobre as culturas/naturezas. Uma das originalidades do projeto em rede Compor Mundos consiste em propor um conjunto integrado de conceitos que permitem pensar melhor as complexidades e a estranheza do mundo de hoje. Partindo desta base, definiram-se áreas interdisciplinares que deram origem a investigações já publicadas e a podcasts, como o grupo sobre Biofilia e Saúde, ou o grupo sobre Desafios Sócio-ecológicos, Saúde e Ciência Cidadã, entre outros (https://compormundos.fundacaofernandopessoa.pt/). As humanidades e ciências sociais podem abrir caminho para reinterpretar os significados dos conceitos centrais das nossas culturas e ajudar-nos a pensar sobre o nosso lugar no planeta e, mais importante ainda, sobre as relações que, enquanto humanos, tecemos com os outros seres vivos.