1. Introdução
Este artigo tem como objetivo explorar os conceitos de “arte ativismo”1 e “arte ecológica” por meio de uma revisão teórica que inclui pensar a relação entre cultura, ambiente e sociedade, tal como propiciar a reflexão sobre as diferentes abordagens artísticas e as nuances pelas quais se constituem as práticas de produção cultural. No âmbito da arte ativista, abordou-se a relação entre arte e resistência e o papel político da arte. Através de Rancière (2007), compreendemos o argumento de que a política é uma dimensão essencial da identidade da arte e que manter a tensão entre esses domínios (arte/política) é essencial para a eficácia da resistência. No que concerne à arte ecológica, o foco deteve-se na apresentação de diferentes abordagens sobre as quais as práticas artísticas ecológicas se desenvolvem. Entre a amplitude e a não consensualidade destas abordagens apresentadas (Kagan, 2014; Ribeiro & Almeida, 2021; Rodriguez-Labajos, 2022; Sanz & Rodriguez-Labajos, 2021; Wallen, 2012), notam-se práticas artísticas que promovem denúncias e/ou informam os seus públicos sobre problemáticas ambientais, exploram o caráter dialógico entre múltiplas áreas e temas e evidenciam inúmeros aspetos ligados às alterações climáticas, tais como: a não conservação da biodiversidade, a produção de lixo e a exploração e uso excessivos dos combustíveis fósseis, as questões sobre qualidade e disponibilidade da água, entre outros. Sob o prisma da estreita conexão entre práticas artístico-culturais e lutas socioambientais, a ideia de ecoarte foi revisada através da contribuição de Félix Guattari (1989/1990) na perspetiva das suas três ecologias - mental, social e ambiental - e sobre a articulação ético-estética, denominada pelo filósofo como “ecosofia”.
A importância de reforçar a presença da dimensão ambiental no debate cultural é primordial quando pensamos no uso indevido de discursos que vêm acompanhados de ações paliativas em desenvolvimento sustentável por parte de instâncias político-governamentais e mercadológicas; no desconhecimento ou negligência a respeito da noção de coexistência entre a sociedade e o ambiente; e, ainda, na ignorância associada à falta de vontade política em compreender as questões ambientais de forma conjuntural e temporalmente evolutiva. Para este contexto é significativo o posicionamento de Raymond Williams (1961), presente na obra The Long Revolution (A Longa Revolução), de 1961, da cultura como fonte de conexão a diversas esferas, permitindo o próprio uso democrático da noção de “cultura” em benefício da mudança social (Cevasco, 2003). A noção de “cultura” alinhada a esta perspetiva integradora defende a visão de Williams (1998) da cultura como modo de vida, práticas, sentimentos e pensamentos articulados (Ribeiro, 2017).
Este artigo é orientado pelos princípios teóricos e epistemológicos dos estudos culturais e possui um caráter teórico, reflexivo e interpretativo. A perspetiva da autora - produtora cultural com 14 anos de experiência - compôs também o investimento metodológico. A discussão foi contextualizada por exemplos de artistas e projetos e suas práticas relacionadas ao ativismo ambiental, com ênfase no contexto português. Na Secção 2, este artigo apresenta uma reflexão sobre os contextos em que os processos criativos de arte ecológica se desenvolvem, seja através das noções conceituais de “cultura” e “ambiente”, seja pela menção sobre o papel das políticas culturais e da economia da cultura. Nas Secções 3 e 4, propõe-se um recorte teórico sobre aspetos relativos à arte ativista e à arte ecológica. E, na Secção 5, reforça-se a perspetiva da produção de bens culturais pelo ângulo da atividade profissional de produção cultural de forma a trazer alguns exemplos de artistas e projetos portugueses e as suas potencialidades para a promoção da educação e da sustentabilidade ambiental.
2. Cultura, Ambiente e Produção Cultural
Sob o ponto de vista da produção de conhecimento e pensamento, através do qual os estudos culturais se orientam, é parte integrante desenvolver uma autorreflexão intelectual permanente e um questionamento da produção científica em relação ao que acontece na sociedade (Hall, 1992). Para tanto, é primordial que se reflita sobre a articulação crítica entre trabalho intelectual político e trabalho académico, no sentido referido por Walsh (2012), de modo a debatermos a sociedade e as suas questões culturais de forma dialógica e ampla, e isto inclui necessariamente, e de forma premente, o contexto ambiental. No caso deste artigo, esta visão está representada por uma abordagem às problemáticas ambientais através de uma análise cultural que suscita um processo de teorização sobre práticas artísticas e lutas socioambientais. Abordar as questões ambientais através da crítica artística requer inevitavelmente o confronto com a realidade e com as responsabilidades humanas pela mudança climática. O posicionamento de Raymond Williams de que a cultura está interligada a diversas esferas, tais como a económica, ideológica, histórica (Cevasco, 2003), reforça a necessidade de incluir a dimensão ambiental no debate, já que garante o que Williams referiu, conforme Cevasco, como um uso democrático da noção de “cultura” que seja potencialmente benéfico para a mudança social. Ou seja, a cultura mantém-se no cerne das lutas sociais em suas mais diversas abordagens. Para Williams (1998), uma definição de cultura deve contemplar, não só a produção intelectual, formativa e artística, mas também as práticas das instituições e as formas de comportamento humano. Para isso, é necessário olhar para os sentidos e valores sociais e para todo o registo da atividade criativa humana.
No que refere ao caráter multirrelacional do conjunto de transformações culturais que intervêm na vida humana contemporânea (Hall, 1980), uma definição ampla do conceito de “ambiente” faz-se necessária no sentido de uma visão integradora entre ambiente, sociedade e cultura. Assim, Freitas (2008) pontua que “o ambiente está ligado tanto à natureza, aos ambientes humanos e não humanos, quanto às dimensões social, cultural, política e econômica” (p. 26). E Gorz (2011) refere que o termo “ecologia” diz respeito aos princípios ambientais e à consciência das consequências que os modos de produção capitalista trazem para o meio ambiente. O conceito de “meio ambiente” também é relativo ao diálogo entre os gestores públicos, atores da sociedade civil, do setor privado e académico sobre temas como a gestão ambiental, o desenvolvimento sustentável e a criação de uma cultura de responsabilidade sustentável (Nações Unidas, 2023). A noção do ambiente físico parece estar tão presente neste conceito quanto a preocupação com o bem-estar da sociedade, no sentido da sustentabilidade e da participação e colaboração social e política, o que configura uma visão multidimensional do conceito, assim como acontece com a definição de “sustentabilidade”, de acordo com Jacobi (2003). Nesta linha, ressalta-se a importância de considerar fatores como a qualidade e a justiça ambiental (Nascimento, 2012), que nem sempre são contemplados pelas abordagens multidimensionais do conceito de “sustentabilidade”.
Guattari (1989/1990) reforça a ideia de articulação entre cultura, ambiente e sociedade quando apresenta a discussão sobre os três tipos de ecologias, que juntas vão ao encontro de uma noção ampliada da subjetividade. Neste sentido, fazer frente aos desafios ambientais contemporâneos requer a conciliação entre as ecologias mental, social e ambiental. Ou seja, a crise ambiental não pode ser compreendida apenas no contexto da degradação física do planeta Terra, mas também se deve considerar aspetos sociais, socioambientais e subjetivos. Isto sugere novas formas de imaginar e analisar a produção e consumo, novos modos de pensar, viver, experimentar e lutar, o que é denominado por Guattari como “ecosofia”. Esta junção entre ecologia e filosofia representaria uma nova maneira de estar e pensar a sociedade contemporânea e, por isso, contempla uma perspetiva da subjetividade marcada pela singularização das experiências e por um multicentrismo funcional que vai contra projetos universais de sociedade. Sobre a ecoarte, em sentido análogo à arte ecológica, percebe-se a visão de Guattari (1989/1990) de que a enunciação proposta a partir da arte faz parte deste conjunto dos modos de pensar e sentir adaptados às relações com todas as espécies e à reflexão sobre as práticas no espaço molecular da existência, como são os espaços urbanos, familiares, laborais, entre outros. Assim, a produção da subjetividade configura-se como o principal território para a constituição de relações de poder e sua resistência.
Apesar de Brunner et al. (2013) assumirem a posição de que a visão da ecoarte relacionada às três ecologias de Guattari (1989/1990) pode ser facilmente mal interpretada e ainda carrega traços utópicos sobre uma “projeção identitária ou moralista de uma comunidade plena, completa e uniforme” (p. 10), os autores destacam pontos importantes sobre esta perspetiva. A ecoarte referida por Guattari não pode ser resumida a um tipo de arte “verde” que não empreende a discussão sobre o papel político da arte ou, ainda, sugere ligação aos partidos “verdes”. Em contraposição, os autores sugerem o questionamento sobre como é que tais ecologias evoluem e ativam o seu potencial de relação. Dizem também que a crise ecológica necessita ser compreendida como uma crise política, cultural e social, que exige uma ecosofia e, também, uma ecoarte, como uma revolução política, social e cultural capaz de reorientar os objetivos de produção, as formas de organização e de estar juntos (Brunner et al., 2013).
Com este artigo, temos o intuito de projetar um breve exercício de compreensão sobre aspetos ligados à produção e ao consumo de bens culturais, apoiado pela visão de Guattari (1989/1990) sobre a ecoarte. Para tanto, a produção cultural, na perspetiva de Menezes (2018), engloba, principalmente, as políticas públicas para as artes e as suas consequências para a economia da cultura e a formação de públicos. Este último aspeto elabora-se a partir de alguns questionamentos: que tipos de públicos consomem produtos culturais? O que consomem? O que desejam consumir? Estão mais interessados na apreensão de manifestações culturais ou no entretenimento? Entre as reflexões da autora, é dada importância à análise sobre as condições por meio das quais a produção de cultura se desenvolve, especialmente sobre as transformações que moldam a composição identitária das sociedades contemporâneas. Menezes (2018) diz:
mas a esta característica tão vincada, a de vivermos num mundo totalmente globalizado, onde as referências culturais de uma comunidade são vividas (e mescladas) em qualquer outra parte do planeta, quer por força da permanente relocalização de gentes, quer como consequência do acesso a tecnologias que deglutiram espaços e tempos, junta-se outra, não menos relevante: a de sermos hoje (num mundo que é claramente assimétrico, na distribuição da riqueza) uma sociedade incitada pelo desejo, pela busca incessante de novas experiências, íntimas e emocionais, de novos modos e estilos de vida. Consumidores ou, talvez até, como defende Lipovetsky, hiperconsumidores. E se a primeira destas características teve claros efeitos nos modos de produção, circulação e consumo cultural, a segunda característica não foi, seguramente, menos percussiva, até mesmo na construção daquela civilização do espectáculo. (p. 14)
Este contexto é parâmetro tanto para aquilo que define o desejo de consumo dos públicos, quanto para o que move o produtor de bens culturais, entre estes os artistas, os produtores culturais e os gestores da cultura. Aqui, a noção de “produção cultural” está associada à economia e à sociologia da cultura, num formato que compõe a complexa estrutura das indústrias culturais, dos padrões estéticos, éticos, financeiros e sociais. No que se refere à perspetiva da arte relacionada à economia da cultura, as três ecologias de Guattari (1989/1990) podem ser refletidas pela seguinte ótica: (a) ecologia social - relações e estruturas sociais que, na economia da arte, implicam considerar como as práticas económicas relacionadas à produção, distribuição e consumo de arte impactam as relações sociais. Isto envolveria questões de acesso à arte, equidade na distribuição de recursos para artistas e a influência das estruturas económicas na produção artística; (b) ecologia mental - sugere que as práticas económicas relacionadas à arte também influenciam as perceções e a compreensão mental das pessoas sobre a cultura, o que pode ser desafiador nas abordagens contemporâneas, sejam elas mais conceituais, participatórias e ativistas. Também, o sistema económico afeta a valoração da arte e, portanto, tem impacto no acesso a diferentes formas de expressão artística; e (c) ecologia ambiental - embora não fique explícita a relação da ecologia ambiental no contexto da economia da arte, são percetíveis as implicações. É possível considerar os impactos ecológicos da produção de obras de arte, o uso de materiais, as práticas de exposição, performance e comunicação e o modo como os artistas abordam as questões ambientais.
Devido ao caráter interdisciplinar da arte ecológica, da diversidade do seu conjunto de abordagens criativas, conceituais e performativas e da sua capacidade relacional, torna-se fundamental o alinhamento de políticas culturais adequadas. Políticas culturais articuladas aos níveis local, regional, nacional (e europeu, no caso de Portugal), com oferta abrangente de financiamentos, com a promoção de experiências estéticas a longo prazo, e não somente de aquisição pontual de bens culturais, são pontos decisivos nas práticas de produção cultural da arte ecológica. Isto porque, através de políticas culturais efetivas em termos de abordagem, tempo e financiamento, é possível manter um processo consistente de criação artística que permite a amplitude da experiência, da participação e da reflexão por parte de públicos diversificados. Este é um aspeto fundamental para a realização da arte ativista de cunho ambiental ou mesmo para a implementação de práticas artísticas ambientalmente sustentáveis.
3. O Caráter Múltiplo e Flexível da Arte Ativista
O ativismo artístico, também conhecido pelos termos “arte ativista” e “artivismo”, é suscetível de ser comparado à arte pública, arte política ou arte interventiva. Não há um conceito específico ou consenso sobre sua nomenclatura e abordagem e, de acordo com Vieira (2007), trata-se de uma prática multifacetada e com vertentes intercambiáveis no contexto da produção artística. A autora ainda diz que:
o adjectivo “activista” tem sido evitado por alguns comentadores que preferem utilizar antes diferentes termos tais como arte intervencionista, progressista, de oposição, experimental, crítica ou comprometida, entre outros sinónimos nomeadamente arte política, politizada, sociopolítica, de confronto, subversiva ou radical. Alguns defensores da arte activista evitam inclusive a conjunção destes dois termos preferindo proposições como cultura visual de esquerda, performative activism, prática cultural activista ou activismo cultural. O sentido destes termos pode por vezes ser mais positivo quando emana da esquerda e depreciativo quando provém da direita, conotado com propaganda, o que não quer dizer que estas perspectivas sejam partilhadas. (Vieira, 2007, p. 6)
Em “Será que a Arte Resiste a Alguma Coisa?”, Rancière (2007) explora a complexa relação entre arte e resistência. Ele argumenta que a arte gera dissidência, questionamento e emancipação, independentemente de sua natureza política explícita. Contudo, como existe a ligação e a dependência da arte com o universo mercadológico, não é possível afirmar que os artistas sempre subvertem sistemas e geram contestação. A partir deste prisma, Rancière sugere que a relação entre arte e política é uma dimensão essencial da identidade da arte, enfatizando a importância da tensão entre esses domínios para a eficácia da resistência. Ou seja, a arte ativista não se configura como um favor prestado pelo artista ou pela arte à política e representa, sim, uma dimensão intrínseca composta pela tensão permanente entre arte e política. Desse modo, a arte cria um espaço material e simbólico que oferece uma nova liberdade sensível (Rancière, 2007). Para os artistas, a liberdade estética da arte ativista está na interação entre a arte, o contexto social e o público, num espaço onde as vozes subalternas podem ser ouvidas e as formas tradicionais de poder desafiadas. Pela ótica dos públicos, Rancière traz o conceito de “espectador emancipado” referindo-se ao espectador ativo e crítico da arte que se dispõe a se envolver na interpretação e a questionar as estruturas de poder. A própria produção de sentidos representa uma oportunidade para o questionamento sobre os discursos e as posições de poder.
Entre as diversas abordagens da arte ativista, há manifestações relacionadas às práticas de comunicação comunitária, nas linhas de Homi Bhabha e Grant Kester, ou ainda ao diálogo com instituições e outras esferas públicas, que é o caso de Finkelpearl (Vieira, 2007). Segundo a artista Andrea Fraser, a arte política é caracterizada pelo seu compromisso consciente em intervir nas dinâmicas de poder, de forma a moldar a produção artística com esse princípio organizador em mente, e a abranger aspetos que vão desde a forma e o conteúdo até aos métodos de produção e disseminação (Bordowitz, 2004). Contributos teóricos de Lucy Lippard, crítica de arte e curadora norte-americana, propõem uma diferenciação entre a arte política e a arte ativista: a arte política tende a ser socialmente preocupada e a arte ativista parece ser socialmente comprometida. No ensaio crítico de Simon Sheikh (2017) ao texto “Trojan Horses: Activist Art and Power” (Cavalos de Troia: Arte Ativista e Poder), de Lucy Lippard, publicado no site da rede ativista e cultural Void Network2, a metáfora do “cavalo de Troia” surge como argumento para explicar o forte movimento de arte ativista que se apresenta de forma disfarçada por meio de um objeto estético sedutor a partir de 1980. O texto crítico refere que, ao contrário do cavalo de Troia, a arte ativista não tem uma função instrumental na derrubada violenta de um regime, mas antes funciona subvertendo a própria ideia do que seja um objeto estético. Sobretudo nos círculos artísticos e ativistas, este debate questiona se esta subversão é meramente uma máscara - um universalismo puramente estratégico que finge ser arte para obter acesso - ou se estamos a lidar com uma nova identidade artística que se mostra ao mesmo tempo ativista e estética (Sheikh, 2017).
Se assumirmos a ideia de que a política faz parte da identidade da arte, podemos pensar que a arte ativista se configura como um conjunto de práticas criativas e artísticas elaboradas com base na performance política e na articulação de diversos agentes sociais e áreas de conhecimento. No caso da relação da arte com o ambiente, a escritora, crítica de arte e professora norte-americana, Suzi Gablik (1992), argumenta a respeito de uma mudança de foco da arte como mercadoria ou expressão individual para uma arte que seja participativa, inclusiva e orientada para o bem comum. Neste sentido, ela defende que a arte precisa de se engajar diante dos desafios ambientais globais através de práticas que promovam a sustentabilidade, a comunidade e a conexão com a natureza.
4. As Abordagens e as Causas Ambientais Predominantes na Arte Ecológica
A arte ecológica tem origem num movimento artístico iniciado no final da década de 1960 através de artistas inovadores, tais como Hans Haacke, Helen e Newton Harrison, Patricia Johanson, Alan Sonfist e Joseph Beuys (Wallen, 2012). As primeiras obras de arte incluíram a ideia do uso da terra como elemento criativo central, o uso de materiais naturais e o trabalho em paisagens remotas. No entanto, Wallen refere que estas formas estavam geralmente mais preocupadas em desafiar a conceção de arte do que em envolver princípios ecológicos. A nomenclatura “arte ecológica” foi reconhecida em 1990 e, conforme Kagan (2014), referia-se às abordagens como a land art, a reciclagem e o uso de recursos naturais como rótulos que representavam: (a) práticas colaborativas, participativas e socialmente engajadas com humanos e não humanos; (b) práticas reconstrutivas, que dão origem a obras de arte transformadoras; e (c) práticas artísticas, que se sujeitam a responsabilidades éticas para com as comunidades. Por outro lado, a arte ecológica vem sendo estudada na perspetiva das suas raízes artísticas e científicas (Wallen, 2012), do engajamento artístico motivado pela imersão na natureza e com potencial para a educação ambiental (Vasko, 2016). Uma das suas características marcantes é o seu caráter colaborativo e multidisciplinar. Na sua produção, está também um amplo conhecimento interdisciplinar por meio da relação entre o sentir e o pensar; uma ética ecológica e uma teoria de sistemas que aborda uma rede de relações entre os aspetos físicos, biológicos, culturais, políticos e históricos dos ecossistemas (Wallen, 2012).
Um exemplo tanto da capacidade dialógica quanto da amplitude possível de ser reconhecida como arte ecológica é a sua inserção na relação mais ampla entre arte e sustentabilidade, não apenas em sua dimensão ambiental. Lopes et al. (2017) referem os benefícios da intervenção artística em espaços públicos no processo de sustentabilidade e o quanto as atividades artísticas participatórias podem promover a coesão social. Entre os principais contributos da intervenção artística em espaços públicos estão: a conservação e a proteção do território ambiental; a promoção do desenvolvimento sustentável; a criação de valor no acesso físico do território (facilidades) e de qualidade para o entorno ambiental; para além da promoção da animação nos espaços públicos. Estes benefícios estão relacionados às práticas de desenvolvimento sustentável abordadas pelas instâncias político-governamentais. Entre elas: a reabilitação de espaços, com reaproveitamento de materiais e uso de material ecológico; a renovação social e económica que pode gerar a movimentação da economia local, empregos, turismo e o interesse dos gestores públicos em planos de investimento no setor cultural. Sobre o desenvolvimento sustentável, dois aspetos precisam ser analisados criticamente: (a) as intervenções artísticas neste âmbito não estão necessariamente associadas à diminuição da pegada ambiental ou à promoção da consciência sobre a emergência climática. Se a abordagem artística e a comunicação da obra (por parte da instância pública) não possibilitarem a discussão sobre práticas de produção e consumo e não promoverem a autorreflexão sobre o lazer e o turismo desencadeados pela intervenção artística, o debate ambiental perde o efeito; e (b) as abordagens ao desenvolvimento sustentável devem evitar a mera reprodução de discursos políticos e institucionais com o objetivo de impedir uma abordagem neutra e não efetiva sobre o tema ambiental (Krieg-Planque, 2010). Neste sentido, estas intervenções artísticas possuem a responsabilidade de compreenderem o contexto social e político em que se inserem e, portanto, de análise das relações de poder ali estabelecidas.
A não consensualidade sobre as abordagens de arte ecológica evidenciam críticas em torno de projetos artísticos de land art que valorizam somente as éticas “verdes” por via da relação com a natureza e não demonstram, por exemplo, promover a denúncia ou a informação do espectador (Ribeiro & Almeida, 2021). Pela perspetiva dos integrantes da Ecoart Network (2023) - uma rede de profissionais dedicados a uma prática multidisciplinar da arte ecológica em comunidade -, os seguintes princípios precisam ser considerados: (a) a atenção na rede de inter-relações do ambiente - nos aspetos físicos, biológicos, culturais, políticos e históricos dos sistemas ecológicos; (b) a criação de obras que utilizem materiais naturais ou interajam com forças ambientais, como vento, água ou luz solar; (c) a recuperação e a manutenção de ambientes naturais; (d) a promoção da informação ao público sobre a dinâmica ecológica e os problemas ambientais enfrentados atualmente; e por fim, (e) a busca por repensar as relações ecológicas e propor criativamente novas possibilidades de coexistência, sustentabilidade e cura.
Kagan (2014) reitera que as nomenclaturas relacionadas à arte ecológica têm sido abordadas de forma intercambiável e pouco aprofundada. O autor destaca que, para além de elementos como conectividade, responsabilidade ética e ecológica, equilíbrio dinâmico e exploração da complexidade da vida, existem princípios orientadores da arte ecológica como: as diferentes escalas de relações ecológicas nos níveis local, regional, nacional, biorregional (por exemplo, as bacias hidrográficas), continental e global; o equilíbrio de perspetivas entre o ecocentrismo e o egocentrismo de forma a reconhecer a necessidade de desenvolvimento de todas as formas de vida; a conexão entre os diferentes níveis das atividades cotidianas, produtivas e científicas, especialmente no que toca ao questionamento sistémico e a reflexividade crítica.
Entre os estudos atuais e voltados à análise sobre os propósitos e causas ambientais refletidas pelo ativismo artístico ambiental, bem como os seus efeitos, estão Sanz e Rodriguez-Labajos (2021) e Rodriguez-Labajos (2022).
A arte como aliada das estratégias do movimento contra as exportações de carvão é explorada em Sanz e Rodriguez-Labajos (2021) de maneira a perceber as contribuições dos artistas ativistas nos movimentos ambientais. O estudo de caso dessa pesquisa refere a luta emblemática para impedir a construção de um terminal de exportação de carvão em Oakland, Estados Unidos. O estudo demonstrou o engajamento de diversos artistas em manifestações públicas organizadas pelo movimento ambiental através da criação de produtos e materiais de identidade visual (cartazes, banners, t-shirts), música, cinema, leitura de poesia, artes visuais. Entre os principais efeitos verificados pela associação da arte ao movimento ambiental estão: a promoção da visibilidade mediática a esta causa ambiental; a sensibilização de públicos de diversas faixas etárias especialmente pela dimensão emocional trazida pela poesia, textos, imagens e instalações visuais esteticamente atrativas e impactantes; a interlocução direta dos artistas e ativistas dirigida aos responsáveis pelas tomadas de decisões no caso da construção do terminal de carvão; as sessões de partilha e oficinas sobre as consequências da utilização e do transporte de combustíveis fósseis que foram organizadas com e para a comunidade. Uma série de aparatos sensoriais foram criados artisticamente com o intuito de ampliar o alcance da contestação. Sanz e Rodriguez-Labajos, por fim, assinalam um conjunto de transformações, derivadas do ativismo artístico ambiental, com potencial para incidir na justiça ambiental: (a) transformações materiais (no caso de Oakland, a proibição da exportação de carvão pela câmara municipal, pelo menos temporariamente até o desenvolvedor do terminal mover uma ação federal contra a decisão da autarquia; (b) transformações políticas que incluem mudanças regulatórias, a participação pública nas decisões que demonstrou o apoio político local à causa; e (c) transformações socioculturais caracterizadas pelas interações entre indivíduos, representação identitária, partilha de valores e conhecimentos.
Já o estudo de Rodriguez-Labajos (2022) faz uma revisão das reivindicações ambientais contidas na literatura sobre arte ecológica publicada entre 1991 e 2021. Entre as principais descobertas nas pesquisas sobre projetos de arte ecológica, RodriguezLabajos destaca diversas contribuições, incluindo: (a) a aplicação de tecnologias digitais no monitoramento ambiental, evidenciando a natureza interdisciplinar dessas abordagens; (b) a realização de exposições de arte ou performances durante eventos significativos na área ambiental, proporcionando visibilidade estratégica para questões socioambientais; (c) a valorização da diversidade de projetos, abrangendo literatura, arte visual e iniciativas participativas e performativas, como exemplificado pelas caminhadas ou danças de mulheres indígenas no Canadá; (d) a exploração das relações conflituosas entre seres humanos e ambiente no contexto do antropoceno, uma época que estuda o impacto profundo e duradouro da humanidade no meio ambiente. Os temas centrais desses projetos de ativismo ambiental abordam questões como as mudanças climáticas, a poluição do ar e a vulnerabilidade do mundo não-humano. Nos estudos examinados, a arte ativista varia desde críticas e contestações até ações orientadas para resultados. Projetos que utilizam tecnologias para monitoramento ambiental ou envolvem a participação do público no processo criativo podem exemplificar abordagens focadas em resultados ou sustentabilidade através da arte. Por outro lado, projetos altamente performativos, com forte apelo sensorial, podem encaixar-se na abordagem de oposição.
Refletir sobre arte ecológica pode incluir a capacidade dos setores culturais em adotar práticas sustentáveis em criação, produção e comunicação. Um exemplo é a Recycling Tour3 de Manu Delago, músico austríaco conhecido por tocar o instrumento “hang drum”, que incorpora música eletrónica e instrumentos feitos de materiais reciclados em suas práticas artísticas. A sua tour de 2023 incluiu viagens de bicicletas, da Áustria para a Holanda, e o transporte de caixas de equipamentos com painéis solares para minimizar a pegada ambiental da tour. As performances, parcialmente acústicas, usavam a energia solar acumulada e propunham ao público repensar os seus deslocamentos para a ida aos concertos e o seu consumo de forma geral. Em Portugal, a Direção Geral das Artes tem proposto em seus concursos de financiamento às artes que os projetos proponham maneiras de fomentar a sustentabilidade ambiental e a implementação de práticas ecológicas nos domínios artísticos. Especificamente, em 2021, lançou um programa de apoio em parceria com a Agência Portuguesa do Ambiente, em que, a partir de 2022, foram aprovados e executados 18 projetos de reflexão e intervenção no âmbito da arte e ambiente4. O objetivo era promover a participação e o envolvimento de artistas e profissionais da cultura nas dinâmicas de transformação e de combate às alterações climáticas. Até abril de 2024, a Direção Geral das Artes não divulgou novos editais nesta temática. Na próxima secção, este artigo procura pensar sobre as práticas do setor cultural relacionadas à sustentabilidade ambiental.
5. A Atividade de Produção Cultural e as Suas Particularidades no Contexto do Ativismo Artístico Ambiental: Alguns Exemplos Portugueses
Após pensarmos sobre o contexto através do qual a produção de cultura é desenvolvida e apreendida pelos públicos, no seu papel de direito humano (Secção 1), propõe-se nesta secção a reflexão sobre as feituras da atividade de produção cultural. Na execução de projetos artísticos, há diferentes tarefas envolvidas na produção e gestão cultural. Se o objetivo for submeter o projeto a financiamento, o trabalho inicia na conceção, com a discussão sobre o conceito/ideia juntamente ao artista. Dependendo do tipo de candidatura de apoio, a conceção envolve a escrita (argumentação, justificação, descrição, objetivos específicos da área artística, objetivos de interesse público, adequação ao aviso e regulamento, cronograma de atividades, entre outros); os orçamentos; os planos de gestão, logística e comunicação; a descrição das parcerias; entre outros aspetos. Se o concurso envolver o tema ambiental, estes pontos devem ser planejados e argumentados no sentido de fomentar a sustentabilidade ambiental e a implementação de boas práticas ecológicas nos domínios artísticos. Portanto, todas as etapas do projeto artístico são oportunidades para que se concretizem práticas ambientalmente sustentáveis, para além do objeto artístico e da abordagem estética estarem alinhados à arte ecológica, nas suas mais variadas nuances.
Posto isto, no caso dos projetos de ativismo artístico ambiental, a atividade de produção e gestão cultural requer um profissional que perceba este conjunto de aspetos e que saiba otimizá-los e relacioná-los. Quando o projeto é multidisciplinar, o que é comum na arte ecológica, há um trabalho de gestão de pessoas (artistas, técnicos, ativistas, cientistas e outros profissionais); gestão de espaço e tempo para que os diferentes agentes possam dialogar, partilhar experiências e conhecimentos e ainda experimentar diversas possibilidades artísticas, interpretativas e performativas. Como forma de aprofundar este tópico, é relevante questionar: como se elabora a atividade de produção cultural nas diferentes áreas artísticas?
A arte ativista ambiental desenvolvida a partir da arte sonora e da música instrumental, especialmente na sua abordagem contemporânea, possui um alto teor de subjetividade, tanto na produção criativa quanto na receção dos públicos. Cláudia Martinho e Luís Bittencourt são artistas do âmbito português que constituem exemplos de abordagens em que o som é o principal elemento de conexão entre a obra de arte e os públicos. A arquiteta, artista sonora e investigadora Cláudia Martinho5, refere que o seu trabalho inclui:
a criação de instalações sonoras espaciais, composições e performances para revelar através do som aquilo que não pode ser visto, para realçar as qualidades e essências vibratórias dos lugares, a presença da água e da vida selvagem, em relação às atividades e perturbações humanas. (para. 4)
A artista realiza também um trabalho de orientação de grupos de pessoas que querem ter experiências de ressonância com os seus corpos e lugares, através de passeios de campo, caminhadas imersivas, canto associado à acústica de paisagens naturais. Segundo Polli (2012), as experiências com paisagem sonora6 permitem a criação de vínculo com o ambiente natural e as caminhadas sonoras podem ser vistas como exercícios formais ou informais que constroem consciência ambiental e social e promovem mudanças nas práticas sociais e culturais. Neste caso, a atividade de produção relacionada às residências artísticas, exposições e performances compreende, por exemplo, o reconhecimento espacial prévio (paisagem natural, museu ou galeria), a garantia da preservação dos materiais utilizados na instalação, os materiais de difusão sonora adequados aos espaços, a forma com que o público vai ter acesso à obra, a qualidade e segurança da experiência estética. No seu projeto artístico, Wetland, Cláudia Martinho aborda um tema relacionado aos fatores de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas: a manutenção dos ecossistemas de zonas húmidas, neste caso, da região da Reserva Natural do Estuário do Tejo, em Portugal. Através de uma instalação de áudio multicanais que espacializa sons ambientais, a artista explora um conjunto de sons de avifauna e de correntes aquáticas criadoras de uma experiência auditiva imersiva. Segundo a artista, a proposta é que “esta experiência convide a sintonizar com a biodiversidade ameaçada, ao mesmo tempo que seja possível perceber a avassaladora pressão do ruído infra sónico dos aviões” (para. 8). É neste local que se estudam possibilidades para a construção de um aeroporto7. As experiências estéticas com esta obra de arte podem gerar a criação de vínculo com o meio natural, como refere Polli (2012), mas também a compreensão sobre este meio e o risco ambiental ligado a ele. No que concerne à qualidade da experiência estética a ser construída pelo público, o trabalho de produção cultural não tem apenas uma função técnica de promover uma nítida apreciação do som, mas uma responsabilidade sobre a função informativa relativa à biodiversidade, riscos ambientais e mudanças climáticas.
No caso do compositor, produtor musical e multi-instrumentista Luís Bittencourt, que possui uma identidade artística orientada para a música instrumental experimental, alguns dos cuidados de produção e apresentação da obra são também importantes, sobretudo a garantia da qualidade sonora de objetos incomuns que vão ser amplificados e os equipamentos de som, luz e acessórios (estantes, mesas e outros dispositivos).
Na sua trajetória como artista-investigador, tem desenvolvido arranjos e composições em que a água e objetos do cotidiano são as principais fontes sonoras. Em seu projeto Sons de Resistência8, o músico explora uma série de objetos sonoros que procuram estimular a consciência sobre o consumo global, a produção de lixo e os estilos de vida contemporâneos. Uma das obras fulcrais do concerto é “Import/Export: Suite for Global Junk” (Importação/Exportação: Suíte Para o Lixo Global), do compositor britânico Gabriel Prokofiev. Esta obra utiliza como instrumentos uma palete de madeira, um bidão metálico, sacos plásticos e garrafas de vidro e, ao longo dos sete andamentos da música, imagens sobre o consumo excessivo dos humanos e a sua produção de lixo são exibidas em vídeo.
Noutro projeto do artista, Memórias Líquidas9, a água é utilizada como principal fonte sonora e é percutida por meio de diversas técnicas criativas e interpretativas. Aqui, utilizar a menor quantidade possível de água e garantir a reutilização da mesma deve ser um princípio fundamental para a produção. Em Memórias Líquidas, o artista tem explorado também performances em que tanto ele quanto o público fazem comentários e reflexões no decorrer das apresentações, o que pode ser interessante para ajudar a compor a reflexão sobre o tema da água, a sua escassez, qualidade e sustentabilidade. Estes dois projetos de Luís Bittencourt envolvem um tempo mais alargado para a montagem dos concertos, pois vários objetos e instrumentos musicais são amplificados e, por vezes, dialogam com sons eletrónicos (paisagens sonoras e outros sons sintetizados) e imagens que se relacionam e complementam os sentidos da proposta musical. Pode-se dizer ainda que a música experimental criada pelo artista procura romper com as possíveis fronteiras entre som, música e ruído e com aquilo que usualmente a sociedade considera como instrumento musical. Seria algo como fazer música com aquilo que se tem à mão, numa prática sustentável, como o próprio refere em materiais de comunicação dos seus concertos10.
Nas abordagens das artes plásticas há, por vezes, uma natureza manual que implica a escolha e recolha de materiais e, nas obras de grandes dimensões, pode exigir o apoio de artesãos ou profissionais técnicos específicos. Em obras de arte ecológica, para além do conceito, os tipos de materiais e a dimensão da obra têm grande impacto na pegada ambiental. O artista Bordalo II - Artur Bordalo - é reconhecido mundialmente pelas suas esculturas feitas de material descartado, como ele define seu trabalho: “a produção e o consumo excessivos de coisas, que resultam na produção contínua de ‘lixo’ e consequentemente na destruição do Planeta, são os temas centrais de sua produção artística”11. O tema da biodiversidade, com o destaque para as esculturas de animais que se encontram em extinção, é um dos chamamentos provocados pelas suas obras. A sua série de esculturas Big Trash Animals (grandes animais de lixo) compostas pelos tipos “Neutral”, “Half-Half” (metade-metade), “Plastics” (plástico) e “Floating” (flutuar) estabelece uma linha contínua de reflexão. Em “neutral”, o artista propõe a total camuflagem dos objetos quando utiliza cores mais próximas das encontradas na natureza. Esses objetos, na sua maioria plásticos reaproveitados, são revestidos com tinta com o objetivo de criar uma representação contrastante que se aproxima da cor e da forma realista do animal escolhido. Já em “Half-Half”, metade da obra representa o realismo das cores, a outra metade traz a presença de plásticos, metais e outras matérias-primas compostas por texturas e cores vivas (ver Figura 1). Esta combinação instiga o público a construir e desvendar a parte da imagem que não é óbvia à primeira leitura. Nas obras “Plastics”, a ideia de camuflagem perde-se, dando lugar à beleza contraditória das cores e texturas de objetos-lixo comuns e reconhecíveis pelo público. No último tipo, “Floating”, Bordalo II explora a ideia dos animais flutuantes feitos somente com materiais plásticos, de forma a alertar para o problema ambiental da presença deste material nos oceanos12.
Estas obras são divulgadas através de registos fotográficos e videográficos, pois são retiradas dos oceanos para não interferirem no meio natural. Em 2019, na cidade de Paris, o artista inaugurou a exposição Acordo de Paris, que reuniu 30 obras representativas de animais em extinção que foram criadas a partir de materiais descartados13.
Outro artista português com abordagem semelhante é Xicogaivota - Ricardo Ramos - que faz do lixo encontrado nas praias a matéria-prima exclusiva do seu trabalho de ativismo artístico. De forma a não aumentar a pegada ambiental dos fragmentos ao transformá-los em obras de arte, o artista utiliza-os tal como foram encontrados, sem os partir, sem utilizar tintas ou colas. Todas as peças são presas com parafusos ou cordas. A estrutura também é feita com estes materiais, seguindo as mesmas regras (ver Figura 2). A busca pela peça específica para cada escultura pode ser interpretada como a própria ideologia do artista e representa também um estilo de vida que ele partilha por meio de projetos de educação ambiental. A arte-educação é uma marca do seu trabalho, pois tem vindo a realizar workshops em empresas e escolas portuguesas e africanas14.
A característica da atividade de produção referente a estes dois artistas envolve a ideia de arte pública, no sentido da intervenção no espaço, e da recolha de materiais descartados. No caso de Bordalo II, que para além de Portugal, possui obras em países como Espanha, França, Itália, Alemanha e Estados Unidos, a logística inclui o reconhecimento dos locais e dos materiais disponíveis onde cria as obras. Xicogaivota desenvolve o seu trabalho num atelier fixo, contudo, realiza um processo de recolha conjunta de materiais que se pode transformar em momentos de participação da comunidade e de, consequentemente, formação de consciência sobre o ambiente. Como Bordalo II cria obras de grandes dimensões e utiliza tintas e colas, são necessários equipamentos, máquinas e possivelmente pessoas que auxiliem no trabalho manual.
A atividade de produção cultural para o audiovisual ou cinema mostra-se geralmente vinculada às parcerias institucionais e ao financiamento público e privado. Isto porque atua num setor da indústria cultural em constante crescimento e que, pela sua ligação às novas tecnologias da comunicação e pelo seu potencial de retratar os problemas sociais, promove identificação junto aos públicos (Prado & Barradas, 2023). O cinema estabelece geralmente processos longos de pré-produção, produção e finalização que envolvem altos custos para a execução. As produções audiovisuais relacionadas com o cinema ambiental possivelmente seguem a mesma lógica, contudo, atraem mecenas e instituições vocacionadas ao tema da sustentabilidade ambiental. Uma possibilidade de ativar o potencial do cinema ambiental é associá-lo a um conjunto de iniciativas. É o exemplo do “Cine-Eco Seia”, um evento abrangente, com ênfase na organização de um festival de cinema ambiental, na cidade de Seia, que já soma 29 edições. O evento reúne realizadores, ativistas, biólogos e outros especialistas para momentos de partilha com o público através de sessões para a exibição de filmes, exposições de obras e materiais educativos, concertos, conferências, eco-talks, entre outras atividades. Trata-se de um investimento coletivo de produção cultural, disseminação de conteúdo especializado e de financiamento. Envolve uma série de parcerias institucionais, tais como entidades e espaços culturais que acolhem extensões do evento; investidores como empresas ligadas à sustentabilidade ambiental e aos média; apoios nacionais, europeus e globais, como o das Nações Unidas15. Este é um exemplo que demonstra uma atividade de produção cultural extensa e multidisciplinar, com destaque para a diversidade de tipos de atividades que exigem equipamentos, materiais, contratação de serviços e pessoas em função das qualidades artísticas e ativistas associadas.
Outros exemplos de práticas artísticas ainda poderiam ser mencionados, como a literatura, a fotografia e as artes cénicas, que igualmente carregam o potencial de empreender ativismo e sustentabilidade. Juntamente a este exercício necessário de repensar a atividade de produção cultural no contexto da arte ecológica, a estratégia criativa tem uma influência notória na conceção da obra. São exemplos os projetos que têm um caráter participativo, geograficamente específico e multidisciplinar, no caso das residências artísticas e das obras realizadas em e sobre territórios específicos a partir de problemas ambientais locais (ver por exemplo outros projetos portugueses, tais como Sustentar16 e Terra Batida17).
Os exemplos portugueses mencionados no artigo cumprem o papel de inicializar a nossa reflexão sobre as particularidades da atividade de produção cultural em projetos de arte ecológica ou ambientalmente sustentáveis. Importa mencionar que, em todas as vertentes artísticas, torna-se uma questão de coerência ter cuidado com os tipos de materiais utilizados nas obras, com a logística, gestão e comunicação, em direção à diminuição da pegada ambiental. Em termos éticos, três pontos parecem fundamentais: (a) nos casos dos projetos participativos e de cunho territorial, conhecer o contexto e estabelecer um processo de escuta e interação respeitosa dos moradores e de outros agentes locais; (b) garantir que há um determinado retorno para a comunidade em forma de modos de aprendizagens e de visibilidade das questões ambientais locais; e (c) manter a reflexão de que os ativismos não caminham isolados. Sendo assim, o respeito pelas diferentes espécies, pela diversidade étnica, cultural, de género e social deve ser também pensado. Existem também questões gerais relativas aos direitos dos artistas e profissionais da cultura, às condições de acessibilidade dos públicos e de implementação de sessões de mediação com o objetivo de partilha do processo criativo e de formação de públicos para as artes.
6. Reflexões Finais
Num prisma alargado sobre a arte ecológica, é importante destacar o potencial do diálogo e da ação conjunta de diferentes áreas, disciplinas e práticas, que pode sugerir também a quebra de fronteiras no âmbito da produção de conhecimento. Falar em disciplinas ou em determinado limite entre conhecimentos pode ser algo incompatível, visto que o pensamento integrado faz parte da composição efetiva do ativismo artístico ambiental. Os artistas ativistas tendem a ser sensíveis a diferentes causas. Um exemplo disto é Bordalo II e as suas obras provocativas que promovem denúncias de problemas sociais atuais, tais como a crise na habitação e as crises económica e política em Portugal. Podemos pensar que o ativismo é parte integrante da performance, sendo que não é necessária a separação entre a dimensão artística e a dimensão política. Arte e política configuram a mesma dimensão através da qual formas de expressão, sensibilidades, significados e conhecimentos são oferecidos aos públicos.
Neste artigo, foi possível refletir sobre a capacidade da arte ecológica de desenvolver processos de educação ambiental e ações que comunicam sobre a emergência climática e as respetivas práticas de mitigação. Alguns dos temas abordados por artistas ou projetos artísticos portugueses referem a produção e consumo excessivos, os estilos de vida alicerçados em consumo de produtos industrializados e dependentes de combustíveis fósseis e a grande produção de lixo. No tema da água, a abordagem é abrangente, envolvendo questões tais como escassez, qualidade, impactos nos ecossistemas aquáticos e nos recursos hídricos subterrâneos. Por consequência, a biodiversidade marinha e todo o lixo encontrado nas águas doces e salgadas são tocados de forma implícita ou explícita. De forma geral, os exemplos destes artistas alertam para os riscos ambientais e, como forma de não gerar contrassenso, acabam por repensar a sua própria pegada ambiental enquanto agentes do setor cultural. É possível pensar que um dos pontos de sensibilização destes projetos pode derivar dos sentidos produzidos a partir de discursos e perspetivas multi e interdisciplinares que constituem a composição estética e as estratégias criativas e de comunicação. Da parte dos públicos, existe, por exemplo, a oportunidade de imergir sonoramente em territórios aquáticos, de refletir sobre a presença da água no cotidiano e projetar a sua escassez futura, de pensar amplamente no impacto do lixo nos oceanos, nos espaços urbanos e na vida humana e não-humana no planeta. Todos estes pontos estão diretamente implicados nas alterações climáticas.
Em termos da atividade de produção cultural, verificou-se um conjunto de particularidades que definem a natureza ambientalmente sustentável da obra. Contudo, o conceito estético e a estratégia criativa da obra, bem como a causa ambiental associada, são decisivos no impacto para a consciência ambiental. Neste sentido, os projetos de cunho participativo e territorial podem mobilizar públicos, entidades, associações e autarquias em função de desafios ambientais locais.
Por fim, é importante reforçar o argumento sobre a necessidade de políticas culturais que percebam o caráter processual, temporal e dialógico da arte ecológica, sobretudo de projetos que se proponham a acompanhar os efeitos das alterações climáticas e a destacá-los nas suas obras de arte. Para tanto, as linhas de financiamentos e a orientação das políticas públicas necessitam ser abrangentes a ponto de considerarem a experiência estética, a longo prazo, como um aspeto tão fundamental quanto o consumo de oferta cultural. O acesso dos públicos aos processos criativos, e não somente ao produto final, pode ser uma estratégia produtiva para a formação da consciência ambiental. Estamos a falar de maneiras mais participativas e contextualizadas de apreensão de bens culturais por parte do indivíduo e, sobretudo, do envolvimento dos agentes públicos governamentais e do setor privado. Os projetos de arte ecológica têm a missão de envolver diferentes agentes sociais e promover o desenvolvimento de conhecimentos e de práticas ambientalmente sustentáveis geradoras de impacto nos processos de educação, sensibilização e ação diante dos desafios ambientais.