1. Introdução
“Diante do anúncio do dilúvio ecológico, muitos são os que se precipitam em direção a uma arca de Noé, pouco preocupados com os abandonados no cais ou com os escravizados no interior do próprio navio” (Ferdinand, 2022, p. 22). A crítica de Ferdinand dirige-se a um ambientalismo que continua a ignorar que as destruições do chamado mundo natural não atingem todo mundo da mesma maneira, além de não incluir nos debates os esmagamentos sociais e as políticas de exclusão vigentes ainda hoje no Caribe - território de vida do autor - mas que aqui assumimos como situações extensivas a toda América Latina. A ampliação deve-se a um passado colonial com muitos pontos em comum, o que nos faz concordar com o autor quando esse assume, como ponto de partida para se elaborar uma nova forma de enfrentar a crise ambiental, incluir a fratura colonial como “a questão central da crise ecológica” (Ferdinand, 2022, p. 201).
Seguindo a construção argumentativa do pesquisador caribenho, cuja proposta se sustenta em um diagnóstico que aponta a ecologia decolonial como um prolongamento de críticas anteriores à fratura colonial e é classificada por ele em quatro tipos1, o objetivo deste artigo é discutir as possíveis contribuições que os documentários Hija de la Laguna (2015; direção do peruano Ernesto Cabellos) e A Mãe de Todas as Lutas (2021; direção da brasileira Susanna Lira), trazem para a constituição de uma nova sensibilidade em relação à natureza, distinta tanto do logos europeu, como do discurso ambiental a que se refere negativamente o citado Malcom Ferdinand. Essa hipótese resulta de uma investigação2 que reconhece tanto o poder do cinema como capaz de constituir um “repertório simbólico carregado de significações culturais” (Bragança, 2011, p. 169) como a intensidade da retomada da produção documentária “nos últimos anos, novamente em sintonia com o seu tempo” (Ramos, 2005, p. 14).
Tal sintonia dialoga com o diagnóstico de John A. Duvall (2017), que localiza, nas primeiras décadas do século XXI, uma explosão da produção de filmes e vídeos que têm focado os diversos aspectos da crise ambiental3, e que apresentam representações e retóricas amplas e variadas. Olhar para esta produção exige, conforme pretendemos demonstrar aqui, a inclusão de discussões e debates que não desprezem as lutas contra a manutenção dos processos de expropriação violentos a que ainda estão submetidos todos os povos e comunidades que foram integrados à lógica colonial empreendida pelos europeus (Aráoz, 2020; Ferdinand, 2022; Quijano; 2019; Segato, 2021; Zibechi, 2022). Trata-se, portanto, de ressaltar o imbricamento das resistências a produções expressivas: neste texto, focamos os dois documentários que se debruçam sobre a concretude dos embates entre a lógica predatória do capital e de quem não se dobra a ela.
Essa posição evoca o pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, que afirma há quase uma década que os povos afro-pindorâmicos (ameríndios e afro-brasileiros) sempre desenvolveram estratégias de contracolonização para defender seus territórios, seus símbolos e modos de vida que os vinculam às suas memórias (Santos, 2015). Para ele, palavras como desenvolvimento ou colonização acobertam processos violentos como as desterritorializações, as expropriações e o extrativismo, que são basilares à destruição do planeta e resultam em um mundo cosmofóbico e cruel. “O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta”, diz o autor (Santos, 2023, p. 12), ressaltando que investe em um jogo que busca contrariar as palavras coloniais como tática para enfraquecê-las.
A despeito de caminhos distintos, tanto Ferdinand (2022) como Santos (2023) apresentam argumentos que reconfiguram o olhar e os sentidos quanto às narrativas que trazem à tona as mais diferenciadas estratégias de sobrevivência nos ambientes consolidados esquematicamente pela modernidade como áreas de atraso, de vida miserável, de população ignorante dos conhecimentos científicos. Isto é, os autores delimitam territórios que se ressentem da urgência de justiça e interrupção da barbárie, configurados neste texto pelos dois documentários alinhados a um posicionamento crítico quanto ao uso dos recursos naturais nos países latino-americanos. Tal foco, como destacado há pouco, se sustenta pela hipótese de que a compreensão e discussão de termos amplos como “mudanças climáticas” e similares alocam a necessidade de fissuras por onde circulem as múltiplas e interligadas causas deste momento de crise ambiental. Esse enquadramento baliza a análise das obras recortadas aqui.
O documentário peruano tem como eixo narrativo acompanhar muito de perto a protagonista Nélida Ayay Chilon, que pertence à comunidade Quéchua de Cajamarca, cidade localizada na região norte do Peru, local onde Atahualpa4 foi preso e assassinado, o que a torna, ainda hoje, um dos centros turísticos do país. A luta de Nélida e de suas companheiras é pela preservação das lagoas locais ameaçadas pelo projeto Minas Conga. Este previa a exploração de ouro e cobre pela mineradora Yanacocha, um consórcio formado pela norte-americana Newpont (51 % das ações), a peruana Buenaventura (43 %) e a Corporación Financiera Internacional (5 %), que pertence ao Banco Mundial (André, 2012). O projeto havia sido suspenso em 30 de novembro de 2011 (Sul 21, 2011), segundo a Newpont, por exigência do então presidente Ollanta Humala, após seis dias de intensos protestos dos moradores da região. No entanto, essa suspensão não se perpetuaria, como o filme indica.
Já o brasileiro A Mãe de Todas as Lutas centra sua narrativa em duas protagonistas: Shirley Djukumã Krenak, ativista indígena que vive na região do Rio Doce, em Minas Gerais, e Maria Zelzuíta, uma das raras sobreviventes do Massacre de Eldorado dos Carajás, localizado no sudeste do Pará. Neste lugar, em 17 de abril de 1996, foram assassinados 21 trabalhadores rurais de um grupo de pouco mais de 1.500 pessoas que se deslocava para Belém. A marcha integrava a luta pela desapropriação da fazenda Macaxeira, ocupada por 3.500 famílias sem-terra naquele momento. Ao todo, foram 155 policiais bem armados que participaram no massacre. Destes, apenas os dois comandantes da operação foram condenados, mas cumprem a pena em liberdade (Barbosa, 2020).
Com o foco nestes dois documentários este texto cria um dístico - a defesa da água e da terra -, localizando-o como um circuito que deve ser incluído no esforço necessário para se garantir uma percepção mais ampliada das causas da crise climática. O objetivo integra o percurso da nossa pesquisa citada anteriormente, que considera incontornável desprezar as propostas e posições que defendem a luta ambiental descolada da rejeição irrestrita ao processo colonial e suas consequências vigentes ainda hoje, conforme propõe Ferdinand (2022). O desafio, no entanto, é demarcar distinções que friccionem platitudes do senso comum, tantas vezes fabulado pelo empilhamento de informações que mais anestesiam do que nos mobilizam a “ousar pensar ‘fora da caixa’” (Dilger & Pereira Filho, 2016, p. 13). Isto é, colocações que pouco contribuem para o debate sobre os modelos de desenvolvimento da América Latina que ainda mantêm o “continente” subordinado ao mercado global neoliberal (Acosta & Brand, 2018; Aráoz, 2020; Ferreira, 2011, 2012; Svampa, 2019). Assim, em termos metodológicos, a proposta aqui é constituir um percurso que procura demonstrar como as narrativas dos dois filmes entrelaçam informação e conhecimento subjetivo; indivíduo e coletivo; o local e o global; memória pessoal e arquivos públicos; entre outros marcadores argumentativos, evocando a emersão de uma ecologia decolonial, mesmo quando esta não é nomeada.
Deve ser frisado, ainda, que a escolha dos dois filmes, considerando a ampla produção existente, deve-se, primeiro, à categorização promovida anteriormente no escopo da pesquisa sobre documentário ambiental na América Latina, onde a luta pela terra, em especial no contexto brasileiro, continua sendo uma questão central5, e a da água pode ser identificada em diversos países dessa região (Castro et al., 2015). Depois, ao reconhecimento da importância das suas escolhas narrativas e estéticas, que os destacam em relação às chaves analíticas propostas. Por isso mesmo, a análise fílmica apresentada neste texto considera o que Aumont e Marie (2004) reforçam, quanto a não existir um método analítico único e universal, ao contrário, pois este depende dos pressupostos teóricos assumidos na elaboração do discurso sobre os filmes e dos processos de aproximação da obra e de como esta é considerada. Assim, como já apontado, é a partir da materialidade fílmica que estabelecemos um processo analítico que dialoga, de forma interdisciplinar, com os temas e questões que os filmes trazem à tona a partir de suas escolhas narrativas e plásticas.
Com tal disposição, recorremos a um arcabouço conceitual básico que tem como horizonte a proposta de demonstrar como esses documentários se alargam em um cenário midiatizado, amplificando as possibilidades de engajamentos à causa ambiental, na medida que suas narrativas ecoam suas lutas e, de certo modo, convocam adesão, mesmo que limitada à informação e/ou empatia. A hipótese também estabelece um lugar privilegiado para o audiovisual, particularmente o documentário, na formação de uma nova e necessária sensibilidade humana em relação à natureza, sendo essa posição sustentada pela problematização de um modo de vida que ainda se mantém estruturado pelo processo colonial. Em outros termos, significa concordar com o que coloca Maldonado-Torres (2023) quanto à necessidade de se investir em um processo que, para o autor, em diálogo com Franz Fanon (2005), implica considerar a luta pela descolonização como aquela em que o/a colonizado/a emerge como pessoa criadora, ativista e pensadora, e onde as comunidades compreendam que a descolonização é um projeto não concluído. Demonstrar que os documentários tornam possíveis essas posições é o objetivo central do artigo.
2. Protagonismos Femininos
A primeira imagem que vemos em Hija de la Laguna é a de uma mulher pequena, inicialmente de costas para a câmera, à beira de uma lagoa. Ela se abaixa para pegar água e, em seguida, submerge nela, mantendo meio corpo acima da superfície. O enquadramento aberto deixa-a distante, enquanto uma voz feminina, facilmente identificada como a da mulher na tela, diz em off:
a água é o sangue da terra, e sem seu sangue, a terra não tem vida, nenhum vivente poderia viver sobre ela. E eu me pergunto e digo: quando destroem as lagoas, os donos das lagoas serão obrigados a viver, não as pessoas. Mas a loja dos elfos, porque eles estão lá cuidando de você, mãe água, mãe agora, e não pedem nada. Eles não nos pedem nada, não nos dizem ei ei, eu quero que cuidem de mim, eles simplesmente estão ali. E se destroem as lagoas, aonde eles irão viver? Não sei. (Nélida Ayay Chilón, em Hija de la Laguna)
O tom da voz é firme, sem grandes variações, mas carregado de uma interrogação dolorida. Trata-se da protagonista Nélida Ayay Chilón, que será acompanhada pela câmera em praticamente todo o documentário, quase sempre observada de longe, em sua movimentação pelas grandes áreas abertas que definem a geografia do lugar onde vive e no qual luta contra o projeto Minas Conga. Iniciado há cerca de doze anos, mas ainda suspenso pelo atual governo peruano6, o projeto carrega uma quantidade significativa de conflitos que geraram um acúmulo de reportagens e documentários curtos, realizados antes e depois do filme de Ernesto Cabellos. Em outras palavras, em termos temáticos, e pela extensão temporal dos embates, é muito difícil a população peruana, de modo geral, não identificar a luta que mobiliza a protagonista. Defendemos, portanto, que sua força se dá justamente porque não se prende à lógica panfletária7 que norteia muitos documentários alinhados aos movimentos sociais. É neste sentido que a obra, ao eleger Nélida como o eixo argumentativo central da narrativa, emula a contracolonialidade8 proposta por Santos (2023): “no lugar onde nasci e fui criado, temos uma relação orgânica com todas as vidas. Todas as vidas são necessárias, não importantes” (p. 26). Nélida não é importante: ela é necessária.
Não se trata de destacar sua liderança, mas de entender, ainda junto com Santos, a percepção de urgência de se reverter a ideia e imaginários que descolaram o humano da natureza, contrapondo a singularidade de uma sujeita que expõe seu mundo íntimo delicadamente, com suas crenças e valores amalgamados ao espaço e tempo em que vive. Um objetivo não tão fácil, até mesmo para ambientalistas como Enrique Leff, aberto à premência de se recompreender o que é “ambiente”. Próximo do campo teórico materialista e do pensamento crítico, Leff (2012) identifica o final dos anos 1960 como ponto de inflexão para que um giro epistemológico se configurasse em relação aos conceitos e reflexões que circunscreviam o saber ambiental a um território único. O que motivou tal deslocamento, ainda segundo o autor, foi a percepção palpável da grande crise ambiental já possível, naquele momento, de ser antevista. Uma situação que reconfigurou os estudos ambientais, reconhecendo-se que as abordagens trans e interdisciplinares eram caminhos indissociáveis se o objetivo fosse a construção de novos pilares para dar sustentabilidade à vida humana.
Se esta posição é bem-vinda na academia - e foi -, em paralelo, outros percursos políticos, éticos e artísticos, originados de resistências improváveis para os defensores do capitalismo predatório se configuraram. O processo não só ignorou as estratégias de disputa pelo conhecimento, estabelecidas pelo logos científico pós-iluminismo, como ampliou, de modo cada vez mais potente, vozes como a de Ailton Krenak, que questiona abertamente o conhecimento científico sobre os povos originários (indígenas), quase integralmente classificados por este “saber científico” como primitivos. “Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes?” (Krenak, 2019, p. 28). O alcance dessa e outras vozes em um cenário midiatizado como a sociedade contemporânea, como sabemos, está ligado à amplitude dos produtos midiáticos protagonizados por essas vozes, como já ocorre, por exemplo, na produção de uma cinematografia realizada por diversos diretores indígenas a partir de projetos como Vídeo nas Aldeias9.
É neste cenário que destaco o papel essencial da produção audiovisual na constituição de uma remoldagem sensível que não é mensurável objetivamente, mas é capaz de dar a ver um tecido ainda poroso, talvez esgarçado e frágil, entretanto perceptível o suficiente para evocarmos rastros e persistências por suas escolhas narrativas e estéticas. No filme peruano, o despojamento e a distância da câmera ressaltam a figura pequena e reflexiva de Nélida (Figura 1), localizando-a em meio a grandes espaços vazios e naturalizando ao máximo seu cotidiano, permeado por conversas aparentemente banais, onde se evidenciam laços afetivos consolidados pela partilha dos problemas.
Um dos momentos que exploram esse tom circunstancial se dá na conversa de Nélida com Máxima10. Ambas atravessam as áreas descampadas do lugar, captadas à meia distância pela câmera que as apresenta quase como silhuetas que se deslocam sem pressa ou tensão. À imagem distante se contrapõe a proximidade da conversa prosaica sobre bichos que procuram a água, tais como os patos. Não há nitidez dos rostos das mulheres. A sequência continua após um corte que desloca ambas para o espaço interno de uma casa onde, finalmente, o enquadramento é alterado, sendo agora bem fechado, mostrando que as duas conversam, cortam batatas e as jogam em panelas com água fervente. Neste momento íntimo, privado e amigável, finalmente os traços das que integram a cena podem ser percebidos. No entanto, pelos planos serem intercalados com o destaque a uma caminhonete que seguia pela estrada e depois é enquadrada parada, a montagem que investe nos contrastes novamente se impõe.
Trata-se, neste trecho, da materialidade fílmica expressar o plot dramático do antagonismo que sustenta um olhar objetivo sobre a obra: engendrado por uma trilha sonora espaçada e aguda que anuncia uma situação de perigo, de expectativa negativa, cria-se um jogo de plano e contraplano para colocar em tela a situação do conflito que mobiliza a personagem. A tensão provoca a suspensão de um cotidiano apresentado até ali em tom suave, e o espectador finalmente acessa o impasse que a comunidade enfrenta, isto é, o de não entregar as terras às mineradoras que agem para expulsar os moradores. A resistência é defendida por Nélida e delineia seu papel de liderança que envolve o sacrifício de mudar para a área urbana de Cajarmarca para cursar direito. A escolha ecoa uma das táticas contracoloniais assumidas por Santos (2023): “logo percebi que, para enfrentar a sociedade colonialista, em alguns momentos ‘precisamos transformar as armas dos inimigos em defesa’” (p. 13).
Com esse percurso que não se desvia tanto da fragilidade como da tenacidade de Nélida, o documentário expressa as ambiguidades e tristezas que envolvem lutar pela sobrevivência quando não há outra opção. Ao mesmo tempo, torna fluida e menos panfletária a presença de manifestações coletivas também inscritas no filme, cujos enquadramentos destacam cartazes, passeatas e palavras de ordem que a história de protestos no continente conhece bastante. Deste modo, fabula um amálgama entre a potência subjetiva de uma protagonista que dialoga com sua “mãe água”, a lagoa - esta que a acolhe e fortalece -, e as imagens e sons que se assentariam, com muita naturalidade, em noticiários informativos sobre movimentos sociais. Nestas sequências, a protagonista vagueia quase anônima, em estratégia cênica que enaltece o coletivo já que este é destacado em primeiros planos e planos detalhe que garantem faces, gestos e posições bem delineadas, nítidas. Ou seja, ao singularizar as faces de um aglomerado de pessoas anônimas, o filme torna inequívoco o envolvimento da população local na contestação ao governo e na luta pela água.
A despeito de outros dois arcos narrativos muito curtos que veremos adiante, este constelado com Nélida dialoga com a proposta de Julieta Paredes Carvajal, que, sem desqualificar o que fizeram as feministas ocidentais, propõe o feminismo comunitário, um conceito guarda-chuva, originado na Bolívia, em 2003, aquando da insurreição das mulheres deste país, na luta contra a privatização do gás e da água. “Não queremos nos pensar como mulheres perante os homens, mas nos pensar como mulheres e homens em relação a uma comunidade” (Carvajal, 2020, p. 197), reforçando que a reconceituação warmi-chacha (mulher-homem) tem como ponto de partida a comunidade. Essa comunidade é tanto rural como urbana, cultural, política, educativa, entre outras. O que a define, na verdade, é estar constituída do par mulher-homem como metades complementares e essenciais, “não hierárquicas, recíprocas e autônomas uma da outra, o que necessariamente não significa uma heterossexualidade obrigatória, porque não estamos falando de casal, mas sim de par de representação política, não estamos falando de família, mas sim de comunidade” (Carvajal, 2020, p. 200).
Este pertencimento a uma comunidade é assumido claramente pela ativista e artista plástica Shirley Krenak, primeira protagonista de A Mãe de Todas as Lutas. Sua aparição inicial no filme corrobora uma presença potente na tela, com a direção de Susanna Lira acentuando certos códigos imagéticos que dialogam com os elementos míticos da narrativa de Krenak. Trata-se de abrir brechas em uma iconografia clássica, determinada pela fotografia que embaralha as formas sem, no entanto, deixar de acompanhar, em enquadramento que vai se fechando cada vez mais no rosto da ativista, a segurança da sua narração: ela não só modula a voz, como assume os papéis diferenciados da sua narrativa sobre a relação do homem com a mãe-Terra, interpretando, corporalmente, as variações da sua fala, em sintonia ao que enfatiza. Seus movimentos são curtos e densos, mostrando que não há qualquer receio de que a câmera a perca (Figura 2).
Após o título da obra, segue-se, também em tela preta e grafismo similar a este, um destaque para o significado de Krenak: “cabeça da terra” - kren (cabeça), nak (terra). Com essa breve sequência, o documentário compartilha com o “outro”, o não-indígena, o acesso à língua que foi negada às etnias dos povos originários do Brasil, conforme projeto político de soterramento da identidade, dos valores, da cultura e do direito óbvio que eles têm de viver nas terras que ocupavam antes da invasão dos europeus. Traz à tela, portanto, um posicionamento político que dialoga com a dimensão que a disputa pela terra ocupa na história do país, desde o início do processo colonial. Cria, deste modo, um encadeamento da violência que atingiu, agora no passado recente, Maria Zelzuita, sobrevivente do Massacre de Eldorado, no Pará.
Assinalando o que pode ser percebido como segunda parte do filme, a narrativa utiliza a mesma estratégia de legenda em tela preta, destacando também o local em seu significado linguístico e histórico: “do castelhano ‘El Dorado”, termo que inspirou inúmeras lendas sobre uma terra repleta de riquezas”, grafa. A informação acentua a percepção do quanto a cupidez dos invasores brancos permanece quando o massacre é apresentado pelo corpo e voz de Zelzuita: ela surge de corpo inteiro (Figura 3) em uma paisagem nitidamente árida, com plantação ressecada, após uma sequência de seu cotidiano privado, quando em uma cozinha de uma casa muito simples descasca mandioca com gestos firmes, certeiros, mas também arriscados, em função do facão afiado.
O enquadramento em plano próximo acentua seus gestos naturais, comuns a muitas donas de casa que cozinham cotidianamente e integram a maior parte da população de menor renda do país. Tal naturalidade e simplicidade oferece-se como contraponto potente às visões dos e das integrantes do Movimento dos Sem-Terra, ao qual Zelzuita pertence. Esse movimento político, hoje provavelmente o mais longevo do país, continua sendo insistentemente apresentado pela mídia hegemônica como composto por criminosos que invadem terras que não lhes pertencem. Para se opor a esta versão, o documentário se vale de mais filmes de arquivo que recuperam diversos momentos da luta pela Reforma Agrária no Brasil, desde os anos 1960 até o massacre de Carajás. Cria, deste modo, uma ponte com o que ocorre hoje aquando da expansão do agronegócio, especialmente sobre a floresta amazônica, contribuindo para ampliar a gravidade da crise climática, em função das queimadas e pecuária extensiva que promove (Pompeia, 2021).
As trajetórias de Nélida, Shirley e Maria evidenciam que a luta por mudanças sociais se dá também sob a ótica feminina, em uma perspectiva que faz soar mais forte o que diz Lélia Gonzalez (2020) sobre a realidade histórica das resistências na América Latina, que se desviavam das questões étnicas e de gênero: “vale notificar que mesmo as esquerdas absorveram a tese da ‘democracia racial’, na medida em que suas análises sobre nossa realidade social jamais conseguiram vislumbrar qualquer coisa além das contradições de classe” (p. 45). María Lugones (2020), ao discutir o conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, apresenta reflexão similar em torno do gênero, destacando que no quadro elaborado pelo autor “existe uma descrição de gênero que não é questionada, e que é demasiadamente estreita e hiperbiologizada - já que traz como pressupostos o dimorfismo sexual, a heterossexualidade, a distribuição patriarcal do poder e outras ideias desse tipo” (pp. 60-61).
As duas posições reforçam que no atual contexto há a “potencialização política e estratégica das vozes dos diversos segmentos feministas interseccionais e das múltiplas configurações identitárias e da demanda por seus lugares de fala” (Hollanda, 2020, p. 12). Neste cenário e sem incluírem diretamente essas reflexões em suas narrativas, os dois documentários que se constituem a partir das histórias dessas protagonistas, acabam por também se integrarem aos movimentos que projetam o reconhecimento das mulheres como parceiras. Isto é, ao promoverem um deslocamento da centralidade masculina na condução dos embates pelos direitos sociais, econômicos e culturais, ampliam as fissuras que inquietam verdades cristalizadas por um saber histórico que quase nunca reconheceu o gênero feminino como capaz destes papeis.
3. Embates Contra o Extrativismo
Após apresentar Nélida na sequência inicial do filme já descrita, na qual ela revela sua relação com a “mãe água”, Hija de la Laguna encadeia uma forte explosão (Figura 4) que toma dramaticamente a tela e ocupa a diegese por alguns segundos, sonora e plasticamente. Até aqui, ainda não é possível compreender com clareza os acontecimentos que serão mostrados durante a narrativa. Assim, quem não tem referências extra-fílmicas fica à espreita, procurando pontes para interligar uma cena à outra, compreender que espaços são estes, tentar estabelecer os elos que a retórica inicial de Nélida indicava. No entanto, essa explosão inicial no filme peruano só ganhará sentido pleno ao longo da obra quando pode ser compreendida como principal eixo argumentativo para o estabelecimento de sua contranarrativa. Neste sentido, a inserção da imagem na sequência inicial complementa o prólogo, delimitando uma antagonista (a empresa de mineração) cuja materialidade diegética se dará pelas inserções simbólicas, como essa explosão, ou mencionada na retórica de Nélida.
Essa configuração simbólica se processa de modo distinto em A Mãe de Todas as Lutas, que também insere uma explosão muito similar em termos plásticos (Figura 5) às imagens apresentadas no filme peruano, porque, apesar de ambas serem inseridas nas sequências iniciais dos filmes, no caso do documentário brasileiro as marcas de temporalidade alocam as imagens em um momento estrangeiro à realização da obra. Isto é, na sequência existe a informação inscrita de que o cinejornal foi realizado em 1975. Outra diferença marcante está no áudio, pois enquanto no filme peruano a banda sonora amplifica o som da explosão, no brasileiro este é abafado para destacar a narração de uma voz masculina que exalta tanto a exploração de minério em Minas Gerais, um dos estados da região sudeste do país, como o papel positivo da empresa Vale do Rio Doce que, na época, pertencia ao governo federal e era responsável pela extração de minério. Em outros termos, o uso dos materiais de arquivo, neste e em outros momentos do documentário brasileiro, estabelece duas camadas narrativas, criando um diálogo temporal que imbrica na tela passado e presente das duas regiões onde vivem suas protagonistas. No caso da explosão, a referência remete, como colocado, à geologia de Minas Gerais, estado que vivenciou nestes últimos anos duas das maiores catástrofes ambientais da história do Brasil, promovidas por um extrativismo predatório sem fim que, nesta sequência, é exaltado pelo governo ditatorial da época das filmagens: “graças a Minas, o Brasil exporta mais de 125 milhões de toneladas de minério por ano”, exalta a voz masculina do narrador.
Produzidas, portanto, em tempo e geografias distintas, as explosões circunscrevem o extrativismo de ontem (Acosta, 2016; Aráoz, 2020), persistente no neoextrativismo de agora, este que encobre, conforme Maristella Svampa (2019), a manutenção da lógica da colonialidade na América Latina. Para a autora, o grande desafio colocado pelo neoextrativismo é que a ideologia do desenvolvimento embaralha, muitas vezes, políticos de matizes ideológicas distintas e antagônicas. Tal se dá, em termos recentes, graças às condições econômicas iniciadas entre 2000-2003, quando ocorre o consenso das commodities, resultante dos “altos preços internacionais dos produtos primários (commodities), que tiveram reflexo nas balanças comerciais e no superávit fiscal” (Svampa, 2019, p. 36).
Acosta e Brand (2018) fazem o mesmo diagnóstico, destacando que, até 2014, a ideia de recessão passava ao largo dos países latino-americanos, que ainda se beneficiavam da ampliação dos rendimentos originados das exportações dos produtos primários. Esse cenário trouxe à tona contradições evidentes: países como Equador e Bolívia, que incorporaram em suas legislações o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos11, mantiveram suas políticas extrativistas, participando, assim, de um conjunto que se negou a discutir as consequências ambientais desses investimentos. Por outro lado, na visão de Svampa (2016, 2019), como essas atividades implicam ocupação intensa, contínua e extensiva do território pelos mais diversos meios (incluindo a grilagem de terras), de modo a viabilizar investimentos ligados à monocultura, acabaram também ampliando as resistências, mesmo as que se colocavam como aliadas dos governos de centro-esquerda que mantiveram posições ambíguas em torno do agronegócio.
Essa análise é corroborada pela luta empreendida explicitamente em Hija de la Laguna, particularmente nas sequências em que o documentário se debruça sobre os protestos mobilizados pela proteção às lagoas e nos diálogos que Nélida trava com o Padre Marco, quando se expõe, frágil e exausta de participar de uma disputa que parece nunca ter fim. Esses embates sustentam a tese de Svampa (2019) quanto ao “giro ecoterritorial” (p.147) cuja origem estaria, segundo ela, nas noções de justiça ambiental formulada nos anos 1980 nas comunidades negras dos Estados Unidos e que se estenderam para outros países. Genericamente, a proposta é formulada considerando o direito à vida em um meio ambiente seguro para todas as populações, em especial as dos povos originários. Na América Latina, um dos conceitos que balizam esse giro é o bem viver, que se apresenta como uma estratégia de alcance global, que tem como premissa se colocar como antagonista radical ao modo de vida ocidental, em contundente crítica ao eurocentrismo e sua concepção de desenvolvimento econômico e social.
Apresentada por seus adeptos como uma ideia em construção, ampla e com limites conceituais fluídos, a proposta política bem viver ganhou fôlego no continente latino-americano por assumir inspiração e reverência aos conhecimentos dos seus povos ancestrais que “mesmo tendo sido inviabilizados, marginalizados ou abertamente combatidos, seus valores, experiências e práticas atravessaram toda a Conquista, a Colônia e a República. E continuam presentes, com força renovada”, aponta Alberto Acosta (2016, p. 73). De modo próximo, Svampa (2019) avalia que há hoje, na América Latina, um marco comum de significações que articula lutas indígenas e novas militâncias territoriais/ecológicas e feministas, sendo que estas últimas, segundo a autora, apontam para a expansão das fronteiras do direito, em clara oposição ao modelo dominante. Um foco que é assumido em investimentos plásticos e narrativos distintos em Hija de la Laguna e A Mãe de Todas as Lutas, isto é, a partir de operações de mise-en-scène que demarcam ritmos diferentes quanto à possibilidade de se criar pontes entre o que se passa na tela e o cenário de crise ambiental desenhado midiaticamente em amplos temas, como ocorreu com a contenção das armas nucleares nos anos 1980 e, agora, com a crise climática, colocada de forma massiva pelo óscar dado ao filme-palestra de Al Gore, Uma Verdade Inconveniente (Guggenheim, 2006).
Este, justamente criticado pelas simplificações que apresenta, tem o inegável mérito de popularizar a questão. No entanto, ao responsabilizar o indivíduo e colocar o enfrentamento do aquecimento global como um imperativo moral e não político, não questiona “o consumo, os padrões de desenvolvimento, o paradigma econômico vigente” (Dias, 2007, p.3), mantendo os mecanismos narrativos que continuam legitimando os impérios ocidentais modernos, como são os Estados Unidos. “Em resumo, levantar a questão do colonialismo perturba a tranquilidade e a segurança do sujeito-cidadão moderno e das instituições modernas”, aponta Maldonado-Torres (2023, p. 33). Para este autor, frente às possibilidades de se escamotear o colonialismo e a descolonização hoje, é preciso distinguir que
colonialismo pode ser compreendido como a formação histórica dos territórios coloniais; o colonialismo moderno pode ser entendido como os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo desde a ‘descoberta’; e colonialidade pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais (pp. 35-36).
Narrativamente, Hija de la Laguna assume essa compreensão criando um percurso narrativo que interliga a comunidade rural de Cajamarca a Totorola, região andina da Bolívia, a Amsterdã, nos Países Baixos. Os elos entre estes lugares, que têm tempo de tela diferenciado em função do protagonismo de Nélida, é a relação com o ouro, sendo que nos dois países latinos vive-se as consequências da sua exploração. Isto é, a terra árida, contaminada, que praticamente inviabiliza na Bolívia a produção da batata, principal produto alimentar da região e, em Cajamarca, onde além da perda das terras há a mortandade dos peixes, a escassez da água e o envenenamento pelo ar causado pelas grandes ventanias comuns em regiões altas, que levantam os dejetos que são depositados diretamente no solo (Alier, 2018, pp. 147-148). Já Amsterdã é inserida na diegese pela presença de uma designer de jóias, vista em seu local de trabalho e em seu espaço privado, quando brinca afetivamente com seu filho ainda bebê. São abordagens em que prevalecem os enquadramentos a média distância, que privilegiam os espaços e implicam em percepção emocional, especialmente pelos contrastes entre as mulheres do Peru e Bolívia e a que mora em Amsterdã, pois enquanto as primeiras vivem um cotidiano atravessado pela lida diária pela sobrevivência, a que está na Europa habita um lugar limpo e adornado com obras de arte, em que parece não haver conflito entre, por exemplo, a jornada de trabalho e a maternidade, uma realidade quase nunca possível às mulheres latino-americanas de baixa renda.
4. A Relação com o “Outro”
Se no documentário peruano a argumentação corrobora a permanência das marcas da colonialidade no tempo presente a partir das várias situações que mostram - por exemplo, a diferença de tratamento do mundo natural pelos povos originários e governos que privilegiam as grandes empresas -, em A Mãe de Todas as Lutas explicita-se essa continuidade pelo resgate dos citados materiais de arquivo, tanto fotos como trechos dos filmes institucionais. A opção torna tangível um engendramento narrativo que demonstra sua postura decolonial ao garantir a presença das epistemes indígenas, conformadas, nesta sequência da obra, pelo conjunto de dez fotografias. Estas representam situações variadas e expressam, ao mesmo tempo, como o branco observava e agia em relação aos povos originários em outras épocas, situação que é mantida até hoje, conforme retórica de Shirley Krenak que o filme apresenta. Neste sentido, incluir não só fotos posadas em que os indígenas olham diretamente para a câmera, mas também flagrantes do cotidiano, corrobora o imaginário perpetuado historicamente que acentua a distância entre as culturas, em processo de desvalorização da indígena, se considerarmos o quanto a ideia do desenvolvimento urbano e científico foram positivados linearmente. Não é à toa, portanto, que se tem nesta sequência uma dupla usando arco e flecha, uma mulher carregando uma criança nas costas, um pequeno grupo friccionando palitos de madeira para produzir o fogo (Figura 6). Essa última foto, aliás, é a única que tem uma legenda que identifica as pessoas como botocudos, denominação genérica dada pelos colonizadores a diferentes grupos indígenas pertencentes ao tronco macro-jê, também chamados de aymorés.
Todas essas imagens fotográficas deslizam lentamente pela tela ao som de chocalhos dos povos originários. O ritmo lento, a ausência de qualquer retórica explicativa e a dimensão temporal distante em função do preto e branco, criam um efeito dramático muito pungente, em especial pela evidente fragilidade física das crianças indígenas que aparecem em algumas fotos e evocam a situação recente dos Yanomami famélicos e doentes, em imagens que circularam mundialmente no início de 2023. Passado e presente inexoravelmente vinculados, modernidade e colonialidade imbricadas por esse material plástico que estava armazenado ao molde do colonizador, isto é, como arquivo de museu, e que se revela ainda mais potente no fluxo narrativo, justamente porque o roteiro e montagem dão a ver, na sequência, a voz e imagem do poder que continua criando artifícios para negar os direitos dos povos originários.
A engenhosidade narrativa se revela na insistência com que insere um dos símbolos mais marcantes da modernidade - um trem - que ainda está carregado de minérios. Faz-se, deste modo, a transição entre a representação indígena e a exaltação do discurso colonial, ampliado pela narração que engrandece o alferes francês Guido Manieri, apresentado no filme em áudio original12 como alguém “que acompanhou Dom João VI em sua vinda ao Brasil, e que mais tarde tornou-se uma figura ímpar, protetor de todos contra os silvícolas brasileiros, especialmente os famigerados botocudos do rio doce”. Este e outros trechos da película que foi integrada à narrativa do documentário, enaltecem as conquistas do homem branco destacando que “onde a onça campeava, pasta sossegadamente o zebu; onde o índio era um ser desprezível e bruto, hoje é uma enfermaria e uma escola; e o índio, sob a égide da lei, é um cidadão”. O discurso novamente contrasta vivamente com a memória oral de Shirley Krenak, estabelecendo um confronto de valores que exige um posicionamento do espectador em relação ao direito de os povos indígenas manterem suas terras, sua cultura. Ou seja, o cotejo que a montagem oferece traz à tona a forma como cada povo se relaciona com a natureza e um momento da história brasileira que não esconde como enxergava o considerado “outro”, o indígena.
O contraste mais evidente entre as culturas indígenas e não-indígenas, que incluem uma série de marcas culturais como as pinturas no corpo de Shirley Krenak e a manutenção do vestuário e determinados adereços e modos de se pentear de Nélida, é mais diluída em relação a Maria. Neste caso, são as marcas das diferenças sociais que irrompem na tela, traduzidas, especialmente, pela referência direta ao Movimento dos Sem-Terra, citado anteriormente: esse “outro” que é tratado quase hegemonicamente pela mídia como criminoso, como à margem de uma sociedade em que o direito à propriedade é colocado acima do direito à vida. Considerando, portanto, as escolhas narrativas, verificamos que as singularidades biográficas de Nélida, Shirley e Maria, confirmam as lúcidas consciências dessas sujeitas sobre a interioridade de seu ser, sobre a realidade mundo e sobre as condições ambientais, culturais e históricas que condicionam suas existências, inclusive de como o “outro” as reconhece. Isso porque, sem desarticularem a compreensão da complexidade do mundo, os dois documentários se desviam das tipologias sociais, revertendo a disjunção entre o objeto e o sujeito do conhecimento, fundação incontornável da modernidade eurocêntrica. Investindo em subjetividades configuradas pela violência do processo colonial que persiste, cada obra se mostra capaz de desvelar vivências emancipatórias, que forjaram cada protagonista e as pessoas em seu entorno.
O fato é que problematizar narrativas que buscam a emersão de outros vínculos com uma natureza que está distante da maior parte da população latino-americana - já que cerca de 81% destas pessoas vivem nas cidades -, significa, também, observar e acompanhar desdobramentos que estas obras trazem tanto em sua materialidade fílmica como nas travessias midiáticas que permitem empreender. Tal se dá, a nosso ver, porque no jogo discursivo desses projetos, a adesão às causas perpetradas está, como sempre, estabelecida em relação dialética, ou seja, sem a experiência mítica-profética da interação emocional e de sentido da vida integrada à natureza - somos parte, e não somos animais à parte da natureza - sempre haverá espaço para as ambiguidades que permitem a manutenção da opressão e o desejo do extermínio, como acompanhamos nestas obras em diversos momentos, alguns bem explícitos como as cenas de confronto dos movimentos sociais com a polícia tanto no documentário peruano como no brasileiro, este último resgatando o massacre de Carajá, como vimos.
5. Considerações Finais
A proposta deste artigo foi discutir as possíveis contribuições que os documentários Hija de la Laguna (Cabellos, 2015) e A Mãe de Todas as Lutas (Lira, 2021), trazem para a constituição de uma nova sensibilidade em relação à natureza, distinta tanto do logos europeu, como dos discursos ambientais a que se refere negativamente Malcom Ferdinand (2022), ao avaliar que estes tendem a apagar as diferenças sociais e políticas dos impactos causados pela destruição do planeta. Sob essa perspectiva e a partir da análise fílmica, o texto promoveu um cotejo entre o que aponta o movimento decolonial e as narrativas documentárias, observadas não só pelos temas abordados, mas pelas estratégias estéticas e estilísticas de que se valem. Para tanto, enfatizou a construção cênica e retórica das protagonistas, localizando-as no contexto do feminismo comunitário, uma das teorias que se coloca como integrada à luta decolonial; destacou a temática do extrativismo e neoextrativismo, vista por diversos autores (Acosta & Brand, 2018; Aráoz, 2020; Svampa, 2016, 2019), como basilar à vigência das relações originadas desde o período colonial e, ainda, demarcou a manutenção de um processo de diferenciação que constitui um “outro” marginal, seja uma indígena, ou uma trabalhadora rural sem-terra, situação que, quase sempre, normaliza relações de opressão e ausência de direitos, justificando ações de violência explícitas ou invisibilizadas.
Por considerar que a cultura audiovisual vigente hoje contribui, significativamente, para a produção de sentidos e percepções do mundo, a análise teve a pretensão de permitir não só uma melhor apreciação das obras, mas de localizá-las em um contexto de lutas e resistências às ações predatórias que impactam não só as protagonistas e suas comunidades, mas que podem se desdobrar por inferências. Uma delas, e que foi central ao foco nos dois documentários, é a da compreensão de que a crise climática deve ser entendida em um escopo amplo, incorporando a luta pela posse da terra e a forma como o humano se relaciona com ela - por exemplo, a sua não transformação em amplos pastos - bem como a luta pela manutenção de mananciais aquíferos, já que, por mais distantes que estes pareçam ser, seus desaparecimentos promovem desertificação, entre outras consequências.
É claro que, como destacado em outro momento, essas obras têm que ser percebidas como produtos culturais que fazem parte de um grupo maior, no caso, a intensiva realização de documentários (Ramos, 2008) e, dentre eles, os que focam a temática ambiental (Duvall, 2017). Tal cenário se dá pela ampliação dos movimentos ambientalistas e pela manutenção de um olhar que tem como um dos seus marcos a construção de “um cinema anticolonialista militante na forma de documentário” (Shohat & Stam, 2006, p. 373) que se constitui a partir de meados de 1960. Deste período até agora houve, obviamente, muitas mudanças e críticas. Destas, destacamos no texto, em sintonia ao que coloca Julieta Paredes Carvajal (2020) e já havia apontado anteriormente Lélia Gonzalez (2020), a crítica a um posicionamento político assumido no espectro da esquerda que se pautou, exclusivamente, pelas questões sociais e econômicas, ignorando as diferenças e desigualdades opressoras de gênero e étnicas. Por isso mesmo, evidenciamos, na análise, as contribuições dos dois documentários quanto a esse diagnóstico.
Consideramos necessário apontar ainda o quanto o movimento ou teoria decolonial - cabem as duas conceituações - acabam por convocar abordagens e propostas que se colocam atravessadas pela crítica à manutenção da colonização em várias dimensões a despeito do fim da colonização formal e da conquista da independência econômica e política dos países latino-americanos, como nos alerta Maldonado-Torres (2023). Sob essa ótica, os legados do colonialismo continuam existindo nos diversos níveis de organização social, o que coloca a decolonialidade como “uma luta viva no meio de visões e maneiras competitivas de experienciar o tempo, o espaço e outras coordenadas básicas de subjetividade e sociabilidade humana” (Maldonado-Torres, 2023, p. 29). É esse processo que permite o alinhamento com a proposta política bem viver, que reconhece, como referenciado no texto, sua matriz vinculada (mas não exclusiva) aos povos originários: suas cosmovisões, as relações que estabelecem com o mundo natural, o modo como mantêm suas tradições e conhecimentos. Isto é, uma posição que está presente nos dois filmes, mesmo que não nomeada literalmente.
Enfim, assumindo que também cabe à academia analisar os produtos expressivos e culturais do nosso tempo por reconhecer o quanto eles integram os imaginários cotidianos em uma sociedade midiatizada, investimos neste processo investigativo-analítico que reforça, em síntese, o pareamento de determinadas lutas como integradas às urgências ambientais. Essa posição implica também, em sintonia com os filmes, a busca por justiça social. Ou seja, sem justiça social não se supera nenhuma crise ecológica. Justiça social e histórica é o que reivindica Shirley Krenak. Personalidade solar, sua presença na tela reivindicando o que pertence a ela e seu povo escancara o genocídio dos povos indígenas, nunca interrompido no Brasil. Raramente foram ouvidos os que ainda convivem com promessas de acesso e propriedade da terra, situação que se realiza a conta-gotas e sob enfrentamento contínuo, sendo os sem-terra brasileiros tantas vezes criminalizados nas suas justas reivindicações, como ocorreu com Maria Zelzuita, que sobreviveu ao massacre e não desistiu. E, finalmente, é pelo direito à água, sem a qual não há vida, que Nélida, essa personagem lunar e resiliente, continua sua luta. Talvez por isso, o momento de comunhão mais potente do filme seja o plano em que ela faz uma homenagem aos cinco militantes assassinados pela polícia peruana na Marcha pela Água: lentamente, Nélida solta na lagoa uma foto de cada um e, em seguida, deposita flores que seguem, como as imagens, o fluxo das águas.