1. Introdução
Os meios de comunicação social nascem de diferentes necessidades, contextos e até comunidades, operando em cenários sociais, políticos e econômicos diversos e, por vezes, complexos, como é o caso de Portugal atualmente. Com a escalada dos discursos anti-imigração e a ascensão política de partidos de extrema-direita no país (Lusa, 2023; Nunes, 2024; Zanetti & França, 2023), fronteiras territoriais e simbólicas são reforçadas em relação a vários grupos sociais. Além disso, diversos estudos têm evidenciado a persistência do mito lusotropicalista na sociedade portuguesa e a sua relação com as expressões de racismo e xenofobia (e.g. Brasil & Cabecinhas, 2019; Ramos et al., 2020), tal como a resistência em incluir a questão étnico-racial nos levantamentos estatísticos em Portugal (Posch, 2022).
Não obstante essa conjuntura, grupos sociais historicamente marginalizados desenvolvem estratégias para fazerem-se ouvir, expressando experiências que fomentam a descolonização do conhecimento e questionam o imaginário nacional dominante (Anderson, 1983). Isso condiz com um momento de fortalecimento da luta antirracista em Portugal, que inclui pessoas migrantes e especialmente as racializadas, que se fazem presentes progressivamente no espaço público e nas mídias, adotando várias estratégias com o objetivo de trazer representatividade negra às mídias portuguesas, como entrevistas, declarações públicas, colunas de opinião, ou mesmo criando os seus próprios canais de comunicação. Desta forma, vários dos meios de comunicação considerados alternativos buscam visibilizar as narrativas de grupos sociais excluídos e colocar em evidência os interesses, preocupações e reivindicações de comunidades marginalizadas (Ihlebæk et al., 2022).
Em Portugal, apesar das mídias alternativas estarem a ganhar destaque na academia com estudos de caso que propõem aprofundar a compreensão das implicações discursivas e políticas da sua atuação em determinados contextos sociais (e.g. Antunes, 2023; Fernandes, 2019), ainda são poucos os estudos que abordam a questão a partir de recortes que incluem problemáticas e demandas de grupos sociais marginalizados no ambiente midiático, como é o caso das pessoas migrantes e/ou racializadas. De modo a preencher essa lacuna, este artigo debruça-se sobre o panorama midiático alternativo em Portugal, que vem crescendo e ganhando cada vez mais visibilidade no ecossistema midiático português, abrindo espaço na esfera pública midiática para perspectivas emergentes sobre pautas necessárias e urgentes de grupos sociais marginalizados. Está focado nas mídias alternativas digitais que são compostas (ou que tenham na sua equipe editorial) pessoas migrantes ou racializadas, bem como aquelas que abordam as suas vivências como temática central. Assim sendo, este trabalho apresenta a análise de um mapeamento de mídias alternativas digitais em Portugal publicado por Correia Borges et al. (2024).
As reflexões permitem aprofundar os conhecimentos em relação às mídias alternativas digitais no que toca as pessoas migrantes e/ou racializadas. Assim, visa contribuir para o debate acerca do papel e importância da participação de pessoas migrantes e racializadas nas mídias em Portugal, de forma a fomentar um ecossistema midiático mais inclusivo, heterogêneo e representativo da diversidade social e cultural do país.
2. O Ecossistema Midiático Alternativo Digital e as Pessoas Migrantes e/ou Racializadas em Portugal
A literatura que aborda a relação entre as mídias1 e as migrações é vasta, sendo possível encontrar publicações em torno de conceitos como “média diaspóricos” (Bozdag et al., 2012), “média étnicos” (e.g. Cabecinhas, 2008) ou “média de minorias migrantes” (Navaz & Ferrer, 2012). Em Portugal, apesar da compreensão da relação entre esses dois temas ter sido uma preocupação desde as últimas décadas, ainda são escassos os estudos a partir do recorte das migrações e/ou pessoas racializadas no país. As publicações sobre a temática consistem, em sua maioria, em estudos de caso sobre algumas das mídias alternativas digitais de maior destaque dentro dessas temáticas (e.g. Fernandes, 2015), sendo ainda recorrentes os trabalhos que se debruçam sobre o tema a partir de pontos de vista teoricamente específicos, como o do jornalismo empreendedor (e.g. Bonixe, 2022) ou das start-ups (e.g. Crespo et al., 2020). Em contrapartida, ainda são escassos os estudos que permitam ampliar a compreensão dessa relação a partir de uma caracterização dessas mídias alternativas digitais e traçar um panorama mais amplo sobre a criação e a prática jornalística dos mesmos no ecossistema midiático português e global. Como resultado, pouco se sabe sobre os discursos e narrativas veiculados por esses meios, assim como sobre a participação dos grupos sociais em questão nesse processo. Os estudos têm centrado a atenção na associação entre mídias alternativas e narrativas contra hegemônicas de uma forma mais genérica (e.g. Carneiro, 2017).
Apesar dessas lacunas, de um modo geral, as mídias alternativas digitais têm vindo a ganhar, há alguns anos, uma posição de destaque no ecossistema midiático e na academia. Sobretudo nas últimas décadas, em que Portugal tem passado por um processo de transição no qual os meios de comunicação tradicionais2 têm aberto espaço para a Internet e as plataformas digitais sociais online nas dinâmicas de produção e consumo de informação (Moreno-Castro & Paisana, 2022). Em particular, junto aos mais jovens (Newman et al., 2023), observa-se um crescimento acentuado na fundação de mídias alternativas digitais (Teixeira & Jorge, 2021).
Ao se colocar em foco os diferentes aspetos das mídias alternativas, é possível encontrar diferentes conceitos. Por exemplo, a ideia de radical media em Downing (2001), community media, civil society media, rhizomatic media em Bailey et al. (2008), e participatory media em Carpentier (2011). Dentro do recorte das mídias alternativas de caráter jornalístico, novas nomenclaturas surgem, como o reparative journalism e a sua ligação com o trauma em Rentschler (2010), o jornalismo empreendedor que é liderado por jornalistas em Vos e Singer (2016) ou, no âmbito do jornalismo em língua portuguesa, o jornativismo em Prudencio (2006) e peripheral media em Levy (2018).
Não obstante a multiplicidade de conceitos possíveis para descrevê-los, considera-se mídias “alternativas” os órgãos de comunicação que se empenham em fornecer alternativas às construções simbólicas hegemônicas produzidas e partilhadas no mainstream3, sendo embasados por estruturas e valores de produção e acesso às notícias distintos das mídias tradicionais (Atton, 2002). São iniciativas capazes de reconfigurar as tecnologias da comunicação e (re)mediar a prática comunicativa em termos de expressão, interação, relações sociais e significado (Lievrouw, 2011). Considerando que priorizam novas tecnologias de distribuição e divulgação de conteúdos criados em estruturas jornalísticas reduzidas (Teixeira & Jorge, 2021), essas mídias são criadas e geridas sob uma lógica participativa com atores da sociedade civil (Bailey et al., 2008)4, com narrativas e formatos disruptivos e com foco em pautas importantes para comunidades minorizadas (Crespo et al., 2020). Em termos de discurso, as mídias alternativas contribuem para deslocar o centro da produção da notícia no mercado da informação para o público e as comunidades, forjando espaços para se contar histórias a partir de novos pontos de vista e narrativas (Chaparro-Escudero et al., 2020). Esses novos posicionamentos surgem, por vezes, dos mais diversos quadrantes da sociedade, permitindo que pessoas com trajetórias profissionais diferentes na área da comunicação social exerçam um papel midiático.
O crescimento da presença dessas mídias nos ecossistemas midiáticos mundialmente se inscreve em um contexto que tem sido interpretado como uma crise do jornalismo. Potencializada pelos avanços tecnológicos, pelo encurtamento do tempo de atenção dos espectadores e a perda de credibilidade das audiências nas mídias tradicionais (Fuller, 2010), esta crise tem gerado revisões em diversas dimensões do jornalismo, que vão desde o modelo de negócio às formas de fazer jornalismo (Fuller, 2010). Em termos de modelo de negócio, enquanto as mídias tradicionais adotam modelos de negócio orientados para a concentração e acumulação de riqueza nas mãos de algumas poucas organizações ou conglomerados jornalísticos, sendo a propaganda a sua principal fonte de captação de financiamento (Herman & Chomsky, 2002), as mídias alternativas substituem as condições econômicas adotadas nesse paradigma pela estruturação de novos modelos de negócios que estejam orientados para a integração das atividades econômicas de produção da informação na vida daqueles que estão envolvidos no seu processo (Atton, 2002). Se enquadram, portanto, no conceito de “mídias autogerenciadas” (Downing, 2001), que operam e sobrevivem, ao longo do tempo, com baixos orçamentos e com uma estrutura de negócio gerenciada pela própria equipe.
Nesse ecossistema midiático, se torna basilar entender como as iniciativas alternativas ao mainstream se relacionam com as causas e os movimentos sociais, como as das pessoas migrantes e/ou racializadas. Segundo a International Organization for Migrations (Organização Internacional Para as Migrações; s.d.), uma pessoa migrante é aquela que “se afaste do seu local de residência habitual, quer no interior de um país, quer através de uma fronteira internacional, temporária ou permanentemente, e por uma variedade de razões”. Quando essa deslocação acontece entre territórios culturalmente diversos, são frequentes os casos em que a pessoa migrante passa por processos socioculturais nos quais se operam dinâmicas de racialização, que funcionam como mecanismos de manutenção das hierarquias de poder social. Em Portugal, com exceção das pessoas Roma, a maior parte das pessoas que autodeclararam5 pertencer aos grupos étnicos negro, asiático, “cigano” ou origem ou pertença mista em 2023 possuíam “background imigratório”6, sendo 90,3% das negras, 83,7% das asiáticas e 69,2% das com origem ou pertença mista (Instituto Nacional de Estatística, 2023).
Quando são as pessoas migrantes e/ou racializadas que estão em pauta, as práticas de comunicação empreendidas pelas mídias alternativas pretendem contribuir, de um modo mais recorrente que as mídias mainstream, para o empoderamento e o aumento do envolvimento civil de comunidades de pessoas que se encontram, não raro, excluídas ou marginalizadas da sociedade. Segundo Anthias (1998), a divisão social baseada no conceito de “raça” contempla uma dicotomia construída ao redor da oposição “white/black”, dando a entender que “todas as pessoas brancas são uma coisa e todas as pessoas negras são outra” (p. 516). Contudo, nos dias atuais, as dinâmicas de racialização ultrapassam essa visão exclusivamente binária, sendo necessário explorar não só como a diferença com base na noção de “raça” é construída, mas também os significados lhe são atrelados e de que forma é usada para criar e reproduzir o racismo (Gonzalez-Sobrino & Goss, 2019).
De acordo com van Dijk (1991), as mídias em sociedades compostas maioritariamente por pessoas brancas participam na reprodução do racismo, perpetuando, em diferentes graus, estereótipos e preconceitos sobre grupos minoritários. No ecossistema midiático português, a racialização (e a representação) de grupos sociais minoritários e marginalizados, como é o caso das pessoas racializadas e das pessoas migrantes, segue a perspectiva negativa e estereotipada que tem sido o padrão da imprensa mundial: são vistos como um problema ou ameaça e associados, frequentemente, com campos discursivos pautados por crime, violência e conflito (van Dijk, 1991).
De forma generalizada, as mídias mainstream e hegemônicas portuguesas têm vindo a perpetuar, por meio dos seus discursos, a construção e representação de identidades que cristalizam perfis negativos sobre pessoas migrantes e/ou racializadas7. Há pouco mais de dez anos, Borges (2011) referia que “os jornais em Portugal parecem não ter, ainda, uma compreensão nítida das questões que perpassam a imigração e sequer a consciência das possíveis leituras preconceituosas e discriminatórias que determinados enquadramentos de matérias jornalísticas acabam por adquirir”. Estudos apontam para a aplicação, nos conteúdos produzidos pelas mídias mainstream, de dinâmicas de in/ visibilização (e.g. Posch & Cabecinhas, 2023). Adicionalmente, ainda prevalece uma tendência de etnicização da imagem de migrantes, como as pessoas negras, por exemplo, as oriundas dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, ou pessoas das comunidades Romani (mesmo as de nacionalidade portuguesa), na medida em que são definidas como “outras” ou “forasteiras” (Borges, 2008; Brasil & Bonomo, 2021), cenário que se agravou com a crise da pandemia da COVID-19 (Santos & Santos, 2021).
Apesar dos condicionalismos que se colocam no estudo da questão da imigração em Portugal, dentre os quais estão os dados estatísticos genéricos sobre as pessoas migrantes, a atenção que o tema tem recebido não só da academia, mas também das mídias e da sociedade civil, não é recente, tendo se intensificado a partir de momentos históricos em que as implicações socioculturais decorrentes da presença de uma população migrante multicultural na sociedade portuguesa se tornavam mais evidentes (Padilla et al., 2015). A população migrante tem um papel fundamental nas dinâmicas sociais, culturais e econômicas do país, que atravessa o que, em 2022, Isabel Almeida Rodrigues (2022), então secretária de Estado das Migrações, chamou de “inverno demográfico” português, referindo-se ao saldo populacional negativo registado no país no ano anterior. Em um país em que 1,4 milhões de pessoas têm um passado imigratório (Instituto Nacional de Estatística, 2023), essa questão está enredada numa trama complexa que envolve vários fatores, entre os quais o passado histórico colonial e as relações econômicas e culturais a nível global.
3. Caracterização das Mídias Alternativas em Portugal Relacionadas às Pessoas Migrantes e/ou Racializadas: Análise e Discussão
A seguir, apresentamos discussões que nasceram a partir da análise quantitativa de alguns dos aspectos apresentados no mapeamento das mídias alternativas digitais portuguesas relacionadas às pessoas migrantes e/ou racializadas desenvolvido por Correia Borges et al. (2024) em outubro de 2022. Este mapeamento resulta de uma pesquisa por mídias alternativas digitais listadas em diferentes websites indexados no Google e listas dedicadas ao tema, e faz parte de uma extensa pesquisa com o objetivo de se estabelecer uma base de dados referente aos órgãos de comunicação alternativos portugueses que abordam a temática das migrações, especificamente aqueles que se apresentam com uma abordagem decolonial. Os aspectos analisados foram: ano de fundação, bases geográficas de atividades, tamanho da equipe, fontes de financiamento, principais temáticas abordadas e presença nas redes sociais Facebook, Instagram e X, bem como o número de seguidores nas mesmas.
Um primeiro aspecto que importa ressaltar é que a maioria das mídias alternativas mapeadas não estão regulamentadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, o que poderá ser interpretado com uma intenção dessas mídias de assegurar a sua total independência ao não se vincularem com outras instituições reguladoras. Oito das mídias alternativas mapeadas possuem registro de publicações periódicas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (A Batalha, Revista Gerador, Shifter, Divergente e Afrolis, sendo que esta última possui à data o registro suspenso) e três possuem registro em operadores radiofônicos (RUM - Rádio Universitário do Minho, RUC - Rádio Universitária de Coimbra e a RUA FM - Rádio Universitária do Algarve; Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 2024).
Ao analisarmos as mídias em relação ao ano de fundação, observamos que a mídia mais antiga que nos apresenta o mapeamento é A Batalha, fundada em 1919. Sendo um jornal que aborda assuntos como política, anarquismo, justiça social, manteve-se como a única mídia alternativa no país por mais de sete décadas, o que terá sido fortemente influenciado pelas limitações impostas pelo regime do Estado Novo (Cabrera, 2022). Na segunda metade da década de 80 do século XX, a fundação de iniciativas midiáticas alternativas foi liderada pelo associativismo acadêmico em estreita coordenação com as direções das universidades locais (Teixeira & Silva, 2009). Em 1986, é fundada a RUC - Rádio Universitária de Coimbra, tendo sido a primeira a formar-se num Portugal democrático e precisamente no ano da entrada do país na União Europeia, então denominada como Comunidade Econômica Europeia, sendo seguida pela fundação do Jornal Universitário do Porto (1987). Ainda em ambiente acadêmico, em 1989, seguiu-se a criação da RUM - Rádio Universitária do Minho.
A entrada no novo século trouxe novos meios de comunicação, o início da “blogosfera” em 1999, a democratização da internet (Kim, 2005) e novos desafios sociais advindos de um mundo ligado à internet que tiveram impacto nas mídias, como, por exemplo, a crise da grande recessão, iniciada nos Estados Unidos da América com a crise do subprime (Pereira, 2021). Com esta conjugação, perdeu-se a exclusividade institucional, o que levou à criação de plataformas autônomas, independentes e de manutenção de baixo custo, como teorizou Sandvoss (2010). Também esta década foi determinante para a transição digital dos conteúdos midiáticos no país, o que se reflete em várias das mídias alternativas mapeadas, que não apresentam informação sobre base geográfica física, e sugerem um funcionamento totalmente digital. Em Portugal, em 1999, surgiu o Centro de Média Independente, pertencente a uma rede internacional de comunicação alternativa sem fins lucrativos, com o sistema de open publishing (Platon & Deuze, 2003). Em 2002, foi fundada a RUA FM - Rádio Universitária do Algarve e, mais tarde, em 2008, a Rádio Zero é fundada pela Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, essas últimas também no seio universitário.
Em 2010, surgiram, pela primeira vez, duas plataformas no mesmo ano, Buala e Dezanove. Ao se especializar na dimensão afrodescendente, Buala recupera uma tradição que havia sido interrompida com o Estado Novo, sendo uma das primeiras a ser produzida com conteúdo lusófono afrodescendente8. A Dezanove, uma das primeiras plataformas LGBTQI+, não tem uma base geográfica de atividade. Em 2012, surgem o Jornal Anarquista, de Évora, e o Jornal Mapa, de cobertura nacional.
O crescimento exponencial ocorreu em 2013, com o surgimento de cinco plataformas: a Revista Manifesto e a Shifter, ambas de Lisboa, o PTrevolutionTV, Guilhotina. info, sem base de atividade física, e o Hedflow, que se apresenta como um canal internacional, tal como ocorria com o CMI, mas neste caso uma ponte digital entre Portugal e Brasil. Esta ascensão pode ser atribuída a vários fatores, tal como a disseminação de smartphones e consequente facilitação de acesso, produção e partilha de informação, como apresentam Harlow e Harp (2013). Outro fator é o apogeu da crise econômica vivida no país, sendo 2013 o ano em que mais pessoas saíram de Portugal (120 mil), um sintoma importante da crise (Pires et al., 2020). Para além da emigração e desemprego, se multiplicaram as manifestações de contestação pública às medidas de austeridade do governo (Accornero & Pinto, 2015). Esta relação torna-se mais plausível se considerarmos que as mídias fundadas na altura também possuem uma carga política contestatária em seus conteúdos, concordante com o ambiente político-social da época.
Podemos identificar, portanto, duas fases distintas das mídias alternativas em Portugal, pré e pós 2013. Com a crise econômica, as mídias mainstream foram consideravelmente afetadas com quebras publicitárias, desemprego generalizado e alta precariedade (Bastos, 2014). Entre 2014 e 2017, são fundadas 10 plataformas: Afrolis, Bantumen, Divergente, esQrever, Fumaça, Revista Gerador, Libertária, QiNews, Revista Rua e Tranquiflow. Observa-se uma expansão dentro da área metropolitana de Lisboa até áreas onde existe uma prevalência de pessoas afrodescendentes, migrantes e/ou racializadas, como é o caso da Libertária em Almada. Em 2019, a estabilização do cenário socioeconômico em Portugal que levou a uma melhoria de condições de vida das pessoas, refletiu-se no caráter temático das mídias, que começam a endereçar dimensões mais específicas e diminuem a sua carga, até então, majoritariamente, ativista e de contestação. Neste ano, são fundadas quatro plataformas: Afrolink, Comboio Suburbano, Crónico e O Lado Negro da Força. Destas, apenas a Afrolink vinca o seu lugar de pertença, Lisboa, o que confirma o padrão do digital em detrimento ao local físico.
Em 2020, foram fundadas apenas três mídias: Duas Linhas, Interruptor (Queluz) e Mensagem. Esta última produz conteúdo em “crioulo” caboverdiano e se apresenta como um jornal digital de Lisboa, situando-se assim em um ponto de interseção entre o alcance global através da comunicação em diferentes idiomas e as pautas que se debruçam em exclusivo sobre a realidade lisboeta. Em 2021, dois portais foram fundados: Página Um e o Setenta e Quatro, ambos de Lisboa. Pelo facto de o tema da pandemia da COVID-19 estar presente em, pelo menos, três primeiras publicações de cada um destes canais, pode-se relacionar esses novos canais com a necessidade da pluralização de discursos desencadeada com a pandemia.
Ao observarmos a base de atividade das mídias mapeadas, atestamos que apenas seis dos 18 distritos de Portugal Continental possuem este tipo de mídia. Das iniciativas que possuem base de atividade evidenciada, constata-se o distrito de Lisboa como preponderante (15), incluindo Amadora e Queluz, ambos com apenas uma plataforma. Évora (um) agrega aos mídia da zona sul do país, e a seguir temos o distrito de Braga (dois), Porto (um) e Coimbra (um). Importa ainda referir a ausência de mídias alternativas sediadas na Região Autónoma dos Açores e na Região Autónoma da Madeira.
Muitas das mídias mapeadas estão concentradas na Área Metropolitana de Lisboa, que reúne a maior densidade populacional de pessoas que se autodeclaram negras (69,9%), de origem ou pertença mista (48,8%) ou asiática (34,7%), sendo que o distrito de Lisboa concentra a maior densidade populacional migrante que reside de forma documentada no país (Lopes & Machado, 2023). Logo, se pensarmos que uma das características das mídias alternativas é justamente dar visibilidade a causas e pessoas minorizadas, é sintomático que quase metade das mídias mapeadas no estudo tenham como base de atividade a região mais multicultural de Portugal. É lá que surgem mais projetos, comunidades e iniciativas que visam criar contranarrativas capazes de heterogeneizar os discursos midiáticos. É interessante notar, também, que o sinalAberto, mídia com forte dimensão lusófona, com membros da equipe de vários países oficiais de língua portuguesa, tem como base Coimbra, uma região que sempre foi destino das então colônias por causa da sua universidade.
Em termos de tamanho da equipe, observou-se que 18 das 36 mídias alternativas mapeadas possuem equipes reduzidas, ou seja, com menos de 10 pessoas. Essa característica é comum quando se trata de mídias alternativas digitais por razões várias, entre elas o subfinanciamento e envolvimento pessoal e político acentuado que, em geral, impulsiona a criação de tais plataformas e a sua manutenção. Em Portugal, não raro, as mídias alternativas nascem a partir da iniciativa de jornalistas, como é o caso do Fumaça (Bonixe, 2022).
Ao se autodefinirem, muitas das mídias mapeadas remetem ao sentido de comunidade, de jornalismo político-cultural e autogestão. São formadas por pessoas engajadas socialmente, que acreditam na necessidade do jornalismo como voz crítica na sociedade, e cuja mão de obra é muitas vezes composta por trabalho voluntário e precário (Antunes, 2023). Neste contexto, uma equipe de trabalho reduzida pode significar que as escolhas editoriais sejam fortemente influenciadas pelo que as pessoas da equipe julgam, pessoalmente, mais interessante. Quando perguntada sobre o critério de escolha das pautas no Divergente, Sofia de Palma Rodrigues, jornalista e editora-executiva, afirmou que a escolha dos temas por parte da sua equipe reduzida é guiada, principalmente, por interesses pessoais, refletindo uma abordagem centrada nas preferências individuais, apesar de reconhecer a existência de um agenda-setting que define os temas de destaque abordados pelos meios de comunicação em geral (Antunes, 2023).
Outro aspecto analisado foi o que denominamos de presença nas redes sociais digitais, representada pelo número de seguidores das mídias alternativas nas redes sociais incluídas no mapeamento (Facebook, Instagram e X). A Internet permite, para além da representação e autorrepresentação que não é mediada pelas mídias mainstream, que redes dispersas de pessoas e ativistas se conectem diretamente e se organizem localmente ou além das fronteiras políticas nacionais (Bailey et al., 2008). Em Portugal, a comunicação por meio das plataformas digitais de redes sociais tem sido explorada pelas mídias de jornalismo pela possibilidade de maior interação com a audiência (Francisco, 2010), sendo também um dos caminhos pelos quais os movimentos sociais praticam o seu ativismo (Trindade & Luvizotto, 2022).
Das 36 mídias alternativas mapeadas, 33 possuem página no Facebook, 31 no Instagram e 26 no X. Considerando que as mídias alternativas possuem uma audiência nichada, o número de seguidores no conjunto dessas três plataformas é, em alguns casos, expressivo, chegando a ultrapassar os 50 mil seguidores (Mensagem, Fumaça, Gerador, RUM - Rádio Universitária do Minho e Shifter) ou mesmo 300 mil (Bantumen).
A presença digital nas redes sociais é percebida, atualmente, quase como imperativa - sobretudo pela pressão social contemporânea por uma presença digital que passa, impreterivelmente, por ter “perfis” nas plataformas de algumas das big techs pertencentes aos grandes oligopólios da tecnologia. Ao mesmo tempo em que essa presença permite uma maior proximidade e interação com as audiências, tais plataformas (re) produzem desigualdades sociais, por exemplo, através do que Silva (2022) conceitua como “racismo algorítmico”9. No contexto ocidental, a ideia de que “toda a gente” está nas redes sociais digitais alavanca a presença das mídias nestas plataformas em busca de alcance e audiência - ainda que, estruturalmente, representem valores ideológicos contrários aos que várias das mídias alternativas digitais propõem questionar. Além disso, o uso das redes sociais digitais está atrelado à captura de dados que, constantemente, atualizam e possibilitam formas de exploração, opressão e controle político, ideológico e subjetivo, entre outros impactos negativos do que Lippold e Faustino (2022) vão conceituar como “colonialismo digital”. O colonialismo digital, portanto, sustenta-se na acumulação de dados, reduzindo o nomeado “Sul global” a um território de extração de informações e consumo atrasado de tecnologia, enquanto o “Norte global” vende, armazena e processa tais dados em seu próprio benefício.
No que diz respeito ao financiamento destas iniciativas, embora a diversificação não seja comum para a maioria das mídias mapeadas, encontramos uma multiplicidade de vias por meio das quais estas mídias se sustentam financeiramente. Destaca-se o apoio dos leitores por meio de donativos (14), que se tornou uma via significativa de financiamento para mídias que oferecem narrativas independentes e alternativas (Vara-Miguel et al., 2021). As demais vias mais representativas de captação de recursos das mídias alternativas mapeadas são a publicidade (seis), o financiamento europeu (cinco), a organização de eventos (quatro) e a venda direta (quatro). Espera-se que o financiamento europeu seja uma modalidade de financiamento em crescimento, sustentada por um esforço proativo da União Europeia em desenvolver iniciativas de apoio às mídias jornalísticas no espaço europeu, como aquelas incluídas no Plano de Ação Para os Média e o Audiovisual, publicado em 2020, e a atribuição de bolsas que contemplam uma cláusula de independência editorial dos beneficiários (European Comission, 2024), de modo resguardar a relação que autores como Dragomir (2018) estabelecem entre financiamento e agenda-setting.
Interessa ainda notar que a publicidade é uma das principais fontes de financiamento de algumas das mídias alternativas (seis), o que poderá indicar a manutenção, pelo menos por parte de algumas das iniciativas mapeadas, do modelo de negócio tradicional do jornalismo - modelo esse que é problematizado pela sua interseção com aspectos como a independência e liberdade editorial (Bailey et al., 2008; Teixeira, 2022). Também importa abordar o financiamento de cinco dessas mídias por empresas do setor privado como Google, Facebook e Wordpress. Apesar de essa ser uma importante via de capitalização no jornalismo nas últimas décadas, alguns autores entendem essa relação como uma forma de “captura” do jornalismo alternativo pelas grandes corporações (Bell, 2021) ou uma tentativa de “plataformização” do mesmo (Jurno & D’Andréa, 2020), caracterizando-se como um esforço da iniciativa privada em se inserir na maior quantidade de níveis possíveis dentro do ecossistema da indústria da informação (Papaevangelou, 2024).
Sobre as temáticas centrais10 abordadas nas mídias alternativas, a categoria arte e cultura aparece com maior destaque (30), o que pode estar relacionado ao fato do mapeamento incluir tanto mídias generalistas quanto aquelas que se dedicam a algumas temáticas em específico, mas também a uma estratégia de agenda accomodation das mídias alternativas para se legitimarem como concorrência das mídias mainstream (Freudenthaler & Wessler, 2022). Em seguida está um grupo de três temáticas igualmente importantes para as mídias alternativas mapeadas, que são justiça social (17), política (16) e atualidades (15), o que corresponde à natureza das mídias alternativas de contestar construções sobre temas e sujeitos criadas pela mídia mainstream e aqueles que detêm poder social em uma sociedade, seja endereçando críticas a essas representações ou oferecendo novas versões a partir de um repertório de valores, contextos, acesso ao campo e procedimento de captura de notícias diferenciados (Atton, 2002). A evidência desses temas também está em sintonia com as particularidades das audiências de mídias alternativas, que se autodeclaram como “pensadores críticos” (Schwarzenegger, 2023, p. 858). Em geral, são pessoas que advogam por narrativas imparciais e pela clara separação entre fato e opinião (Schwarzenegger, 2023), além de ter o senso crítico apurado sobre as mídias mainstream e serem descrentes do jornalismo feito no mainstream, recorrendo a mídias alternativas de modo a saber mais e “saber melhor” (p. 858).
Apesar de as mídias mapeadas abordarem causas sociais com uma postura crítica e com um sentido de urgência, observa-se que temas diretamente ligados às pessoas migrantes e às pessoas racializadas não são abordados pela maioria das mídias - o tema “Experiência Negra”, por exemplo, é endereçado por apenas seis delas. Essa lacuna pode indicar a existência de uma percepção que não relaciona o passado colonial com as questões migratórias e raciais da atualidade em Portugal, bem como com os processos de formação e negociação identitária de determinados grupos sociais na sociedade portuguesa.
Por outro lado, nas plataformas em que o conteúdo é vocacionado para temáticas específicas das pessoas racializadas, como é o caso do Afrolis, Afrolink e Buala, a audiência pode não contemplar vários grupos sociodemográficos. Assim como acontece nas mídias mainstream, as mídias alternativas codificam as suas mensagens (Hall, 2005) de acordo com discursos contra-hegemónicos. Quando há uma falta de equivalência entre os códigos das mídias alternativas e da sua audiência, podem acontecer “distorções” interpretativas sobre o seu conteúdo (Hall, 2005), comprometendo a compreensão da mensagem veiculada. Além disso, deve-se considerar ainda os hábitos de consumo de notícias da população portuguesa. De acordo com Cardoso et al. (2023) no Digital News Report 2023, 15,7% dos portugueses evitam ativamente o tema “causas identitárias (e.g. questões raciais, de género, etc.)”. Mídias como esses, portanto, praticam uma comunicação orientada para um nicho temático ainda mais especializado que aborda, majoritariamente, questões raciais.
4. Conclusões
Este artigo apresenta uma análise das mídias alternativas digitais relacionadas às migrações e/ou pessoas racializadas em Portugal. Constatou-se que a fundação das mídias alternativas digitais mapeadas encontra-se enquadrada em conjunturas mais amplas, não podendo ser dissociada de contextos como a ditadura salazarista, o associativismo acadêmico e o surgimento de novas tecnologias da informação e da comunicação, nomeadamente da Internet. Também não se furta da crescente visibilidade de pautas sociais, étnicas e raciais associadas ao aumento da imigração em Portugal e à independência das antigas colônias portuguesas em África no século XX.
Apesar de as bases geográficas de atividades das mídias refletirem as assimetrias demográficas das pessoas migrantes e/ou racializadas em Portugal, a constatação de que muitas dessas mídias operam com equipes pequenas ressalta tanto os desafios enfrentados por essas iniciativas quanto a oportunidade de proporcionar uma maior diversidade de vozes e lugares de fala (Ribeiro, 2017) no ecossistema midiático português. Essa característica se reflete nas temáticas endereçadas pelas mídias alternativas mapeadas, que se concentram, principalmente, em temas ligados à cultura, incluindo a contracultura, e causas sociais. Por outro lado, os temas relacionados com as vivências de pessoas migrantes e/ou racializadas, sobretudo quando relacionados às relações histórico-culturais do colonialismo, recebem pouco destaque em geral, refletindo as dificuldades ainda encontradas na sociedade portuguesa no fomento e difusão de debates críticos sobre tais questões.
Quando o tema é a presença nas redes sociais digitais, considerando que é no X em que os portugueses mais consomem notícias de marcas ou jornalistas alternativos (OberCom, 2023), o fato do Facebook ser a rede social com maior presença das mídias alternativas digitais mapeadas suscitou reflexões sobre as estratégias de comunicação adotadas, nas quais se inscreve ainda a problematização sobre o “racismo algorítmico”. Observou-se ainda que as mídias alternativas digitais mapeadas captam financiamento de uma variedade de fontes, embora poucas recorram a múltiplas fontes concomitantemente. Assinalam-se as preocupações sobre a relação entre financiamento, autonomia e ativismo das mídias, assim como sobre a influência e o papel das big techs no jornalismo.
A interpretação dos resultados da análise e as conclusões que aqui apresentamos devem levar em consideração as limitações do estudo, que esteve focado em aspectos específicos do mapeamento em questão, e sendo este realizado em outubro de 2022, não contempla mídias que tenham sido fundadas desde então. Outros eixos podem vir a ser explorados, como a inclusão das pessoas migrantes e/ou racializadas nas mídias alternativas digitais que foram fundadas em períodos em que a imigração e a percentagem de pessoas racializadas em Portugal era residual, sobretudo até meados do século XX (Buettner, 2020). Também será importante acompanhar a relação entre o financiamento e a prática ativista das mídias alternativas digitais. No que se refere à presença digital, estudos futuros focados no conteúdo publicado pelas mídias em questão poderão revelar como abordam os interesses das pessoas migrantes e/ou racializadas e que linguagens utilizam para o fazer, o que contribuirá para se entender a relação entre os conteúdos partilhados nessas redes sociais e lógicas de colonialidade e racismo que operam sobre eles.