Introdução
O tempo entre o início de uma paragem cardiorrespiratória (PCR) e a prestação de cuidados é fundamental; encurtar esse tempo aumenta a probabilidade de sobrevivência da vítima.1 Os níveis de conhecimento de SBV da população portuguesa são baixos.2 Em Portugal, a taxa de sobrevivência perante uma paragem cardiorrespiratória extra-hospitalar (PCREH) é de 3%, o que pode estar associado à falta de preparação da sociedade civil para atuar.3
A American Heart Association (AHA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam o ensino de reanimação cardiopulmonar (RCP) nas escolas.4,5 Os alunos são o grupo de atuação preferencial, de fácil acesso e motivação. A implementação de um programa de formação em suporte básico de vida (SBV) nas escolas permitirá: a aprendizagem de um grande número de crianças, que, com o tempo, aumentará a proporção de adultos treinados; aumentar a consciencialização da importância de agir perante uma PCR; treino quando a aprendizagem é a principal atividade; exposição da informação a um segundo nível de aprendizes em casa.6
Os objetivos deste estudo foram desenvolver uma ação de formação sobre SBV, avaliar o seu impacto em alunos do 8º ano, estudar o seu efeito ao longo do tempo e comparar alunos que receberam formação com alunos que não receberam. Ainda não existe um programa estruturado para o ensino desta técnica em Portugal, pelo que este trabalho pretende contribuir para esse efeito.
Métodos
Este estudo é de tipo coorte prospetivo e foi desenvolvido na Escola Secundária Quinta das Palmeiras/3, na Covilhã, no ano de 2018. Procurou-se que os participantes tivessem entre 13-15 anos, pois o condicionamento físico já é suficiente para fornecer SBV.7 Os alunos incluídos no projeto pertenciam às turmas do 8º ano selecionadas pela escola. Foram divididos em dois grupos, um de 25 alunos que viria a receber formação em SBV e outro de 30 alunos que não viria a receber formação.
O protocolo de investigação foi aprovado pelo Conselho Diretivo da escola e pela Comissão de Ética da Universidade da Beira Interior. Apenas participaram no estudo alunos com consentimento informado assinado pelos encarregados de educação.
Para colheita de dados foi aplicado um inquérito com perguntas de escolha múltipla desenvolvido pelos investigadores. O inquérito continha 9 perguntas sobre conhecimentos teóricos de SBV. Às respostas certas foi atribuída a classificação de um ponto. A retenção do conhecimento teórico foi analisada através da soma dos pontos. As questões 10 e 11 abordavam a autoavaliação da capacidade de realização de SBV e o medo autopercebido de ser o primeiro a dar resposta perante uma PCR, respetivamente, e foram tratadas como variáveis em escala de Likert. Um teste piloto foi aplicado a cinco adolescentes, sendo efetuadas as adaptações necessárias. O grupo que participou na formação respondeu ao inquérito em três momentos: antes da sessão de treino (Qi), imediatamente após (Q2i), e um mês depois (Q2t). O grupo que não recebeu formação respondeu aquando de Qi e Q2t.
O conteúdo da formação foi baseado nas guidelines internacionais para esta matéria.8,9 A formadora foi uma estudante de medicina do 5º ano, autora do estudo. Cada sessão foi dividida numa componente expositiva teórica de 20 minutos e numa componente prática de 40 minutos. Os alunos treinaram o pedido de socorro, simulando uma chamada para o 112. Todos os alunos realizaram manobras de SBV num manequim. Procurou- -se dar feedback acerca do desempenho da RCP de cada um, nomeadamente ao nível da frequência e profundidade das compressões torácicas e retorno do tórax. Salientou-se o facto de as compressões serem decisivas, mesmo na ausência de ventilações.10,11
Análise estatística
Os dados foram analisados usando o software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 25.0. A significância estatística foi fixada em 5%.
Foi atribuído zero pontos aos itens de 1-9 não respondidos. Para analisar as variáveis nominais optou-se pelo teste do qui-quadrado. Para estudar a evolução do grupo que recebeu formação e comparar os grupos foi utilizado o teste não paramétrico de Mann-Whitney. Para relacionar a autoavaliação da capacidade de realização de SBV e o medo autopercebido de ser o primeiro a dar resposta perante uma PCR com a retenção dos conhecimentos foi aplicado o coeficiente de correlação de Pearson.
Resultados
O inquérito foi respondido por 24 alunos que receberam formação, 54% dos quais eram do sexo feminino, 92% tinham 14 anos e os restantes 8% tinham 15 anos. No grupo que não recebeu formação, o inquérito foi respondido por 28 alunos, dos quais também 54% eram do sexo feminino, 96% tinham 14 anos e os restantes 4% tinham 15 anos.
Verificou-se que, no início do estudo os dois grupos não apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre si, relativamente ao sexo, à idade, ao conhecimento teórico sobre SBV (com exceção da questão 6), à autoavaliação da capacidade de realização de SBV e ao medo autopercebido de ser o primeiro a dar resposta perante uma PCR.
Evolução do grupo que recebeu formação
Na distribuição do total de respostas corretas entre cada par de momentos, observa-se que a média do total de respostas corretas aumenta de Qi (M=4,29) para Q2i (M=7,63) de forma estatisticamente significativa (U=18,0; p<0,001), aumentando depois ligeiramente para Q2t (M=7,67) mas de forma não significativa (U=275,5; p=0,790).
A média das respostas a P10, aumenta de Qi (M=2,38) para Q2i (M=3,83) de forma estatisticamente significativa (U=67,5; p<0,001), diminuindo depois para Q2t (M=3,46) de forma também significativa (U=198,5; p=0,035).
A média das respostas a P11 diminui de Qi (M=2,70) para Q2i (M=2,08) de forma estatisticamente significativa (U=165,0; p=0,011), diminuindo depois ligeiramente para Q2t (M=1,96), mas de forma não significativa (U=249,0; p=0,523).
Comparação entre o grupo que recebeu formação e o grupo que não recebeu um mês após a sessão de treino
A média do total de respostas corretas é superior para o grupo que recebeu formação (M=7,67) face ao grupo que não recebeu (M=4,43) (Tabela 1), sendo as diferenças estatisticamente significativas (U=36,0; p<0,001).
Tabela 1: Estatística descritiva: Relações entre as questões P1 a P9 nos três momentos (Qi, Q2i e Q2t), para o Grupo que recebeu Formação.
Momento | N | % corretas | Desvio padrão | |
P1. Cadeia de sobrevivência | Qi | 24 | 87,5% | 33,8% |
Q2i | 24 | 16,7% | 38,1% | |
Q2t | 24 | 50,0% | 51,1% | |
P2. Avaliar as condições de segurança | Qi | 23 | 17,4% | 38,8% |
Q2i | 24 | 87,5% | 33,8% | |
Q2t | 24 | 83,3% | 38,1% | |
P3. Avaliar o estado de consciência | Qi | 24 | 62,5% | 49,5% |
Q2i | 24 | 91,7% | 28,2% | |
Q2t | 23 | 73,9% | 44,9% | |
P4. Permeabilizar a via aérea | Qi | 24 | 25,0% | 44,2% |
Q2i | 24 | 54,2% | 50,9% | |
Q2t | 24 | 66,7% | 48,2% | |
P5. Avaliar respiração | Qi | 23 | 69,6% | 47,0% |
Q2i | 24 | 95,8% | 20,4% | |
Q2t | 24 | 83,3% | 38,1% | |
P6. Quando ligar 112 | Qi | 24 | 20,8% | 41,5% |
Q2i | 24 | 87,5% | 33,8% | |
Q2t | 24 | 91,7% | 28,2% | |
P7. Realizar manobras de SBV | Qi | 23 | 4,3% | 20,9% |
Q2i | 24 | 87,5% | 33,8% | |
Q2t | 24 | 54,2% | 50,9% | |
P8. Manter SBV | Qi | 24 | 41,7% | 50,4% |
Q2i | 23 | 78,3% | 42,2% | |
Q2t | 23 | 78,3% | 42,2% | |
P9. Como ligar 112 | Qi | 24 | 83,3% | 38,1% |
Q2i | 24 | 100,0% | 0,0% | |
Q2t | 24 | 95,8% | 20,4% |
Perante a questão 10, 58% dos alunos do grupo que recebeu formação afirmaram estar preparados para agir, enquanto que apenas 14% do grupo que não recebeu formação deu a mesma resposta. A média das respostas nesta pergunta é superior para o grupo que recebeu formação (M=3,46) e inferior para o grupo que não recebeu (M=2,64), sendo as diferenças estatisticamente significativas (U=159,5; p=0,001).
Perante a questão 11, 26% dos alunos do grupo que recebeu formação afirmaram não ter medo de agir, enquanto que apenas 11% do grupo que não recebeu formação deu a mesma resposta. A média das respostas é inferior para o grupo que recebeu formação (M=1,96) e superior para o grupo que não recebeu (M=2,57), sendo as diferenças estatisticamente significativas (U=197,5; p=0,012).
Confiança e retenção dos conhecimentos
Na totalidade dos dados recolhidos, verifica-se que uma maior retenção dos conhecimentos está associada a uma melhor autoavaliação da capacidade de realizar SBV (r=0,504; p<0,001), sendo esta uma relação moderada positiva, e a um menor medo autopercebido de ser o primeiro a dar resposta perante uma PCR (r=-0,324; p<0,001), sendo esta uma relação baixa negativa.
Discussão
Conhecimento teórico
O conhecimento de SBV dos estudantes do ensino básico é baixo, o que reflete a incipiente cultura de emergência médica da população portuguesa em geral. Antes da sessão de treino, em 9 perguntas, a média de respostas corretas no inquérito do grupo que recebeu formação foi 4,29 e a média do grupo que não recebeu foi 4,61.
Uma sessão de treino de 60 minutos teve impacto em capacitar os alunos para agir corretamente perante uma PCR. O conhecimento dos alunos aumentou em todos os itens, tanto logo após a formação, como um mês depois, sendo superior comparativamente ao grupo que não recebeu, salvo no reconhecimento do primeiro elo da cadeia de sobrevivência, não podendo este facto ser fundamentado pelas características da investigação.
“Como ligar 112” teve uma taxa de acertados elevada, possivelmente devido ao nível de dificuldade de a pergunta ser baixo. Um mês depois, os alunos mantinham um bom nível de conhecimento em quase todos os itens analisados e conhecimento superior ao do grupo que não recebeu formação. Não houve alterações significativas nos itens analisados no grupo que não recebeu formação.
Confiança para agir perante uma PCR
Apesar de o medo e a autoconfiança não terem sido diretamente abordados na formação, os alunos relataram sentir-se melhor preparados para poder agir. Um mês depois, verifica-se que a capacidade de realizar SBV do grupo que recebeu formação aumentou e o medo diminuiu. A resposta mais prevalente foi “Estou bem preparado para poder agir”, embora a maioria assuma medo leve.
Bonh et al,12 numa revisão de literatura, identificaram como principais motivos para que os cidadãos não iniciem manobras de SBV: a falha no reconhecimento da PCR, a falta de conhecimentos sobre SBV, o medo de fazer algo errado e o medo de infeção. A possibilidade de treino em ambiente de simulação permite a diminuição da ansiedade face a uma situação real. Em idade escolar, as habilidades psicomotoras são adquiridas de maneira mais natural e fácil, o que permite reduzir o medo de cometer erros. Crianças em idade escolar têm uma abordagem menos inibida para o treino de RCP, neste sentido, o ensino de SBV permite-lhes aprender a ter sentido de responsabilidade social, assim como, adquirir competências sociais5. Por outro lado, a não obrigatoriedade de fazer ventilações tem um papel de relevo, na medida em que diminui a relutância em iniciar manobras de SBV em desconhecidos.
Impacto de um programa de formação em sbv nas escolas
Considerando o impacto da formação iniciada em crianças nos futuros adultos, podemos perspetivar uma sociedade repleta de cidadãos que dominam as habilidades relacionadas com RCP. Tal possibilitaria grandes ganhos em saúde ao nível da prevenção da morte súbita cardíaca. Em Portugal ocorrem cerca de 10 000 casos de PCR por ano,13 27 por dia. Entre 2013 e 2014 foram registadas 23 347 PCREH associadas a uma taxa de sobrevivência de 4,43%, enquanto que para o mesmo período, esta taxa foi de 21% na Holanda e 25% na Noruega.14 Esta elevada discrepância denuncia a necessidade de criação de programas de formação em SBV que sejam efetivos e acessíveis ao maior número de pessoas possível.
Implementação do ensino de sbv nas escolas
Uma curta sessão de treino de uma hora, como a que decorreu neste estudo, é suficiente para alcançar bons resultados ao nível da aquisição das habilidades e conhecimentos, sendo um período de tempo de fácil inclusão nos currículos escolares.
López et al15 consideram que formar os professores pode ser o primeiro passo para implementar o ensino de SBV nas escolas. Dotar as escolas de um corpo pedagógico capaz de ensinar SBV, tem sido considerado tão eficaz como o treino fornecido por profissionais de saúde.16 Outros estudos sugerem que os professores sejam treinados por estudantes de medicina.17
Neste estudo, a formação dada por uma estudante de medicina foi bem-sucedida. O ensino por estudantes de medicina poderia ser sustentável, mas seriam necessários estudos sobre a motivação destes.
Limitações do estudo
A comparação deste estudo com outros semelhantes é dificultada pelo número reduzido de participantes e o pouco tempo para medir os outcomes. Existe algum risco de viés de seleção, porque apenas foi estudada uma escola e um ano escolar.
O efeito a longo prazo de uma sessão de treino não foi avaliado. Também o tempo disponibilizado para a formação pode condicionar os resultados, pois 60 minutos representam metade do tempo recomendado pela OMS.6
O estudo apresenta falta de precisão para comparar se houve melhorias no domínio das habilidades práticas, nomeadamente da realização de compressões torácicas, uma vez que a valorização da aprendizagem se levou a cabo mediante um inquérito e não mediante um exercício prático. Não foi avaliada a fiabilidade e consistência do inquérito.