Introdução
A infeção por SARS-CoV-2 teve início na China, na província de Wuhan no final de 2019. Sendo uma nova doença, é ainda escasso o conhecimento científico relativo à sua abordagem, apresentando um largo espectro de manifestações clínicas que podem incluir tosse, febre, mialgias, sintomas gastrointestinais e anosmia.1
O diagnóstico é efetuado pela presença de clínica sugestiva associada muitas vezes às alterações imagiológicas típicas da pneumonia viral no exame de tomografia computorizada (TC) de tórax e pelo teste de deteção do SARS-CoV-2 por biologia molecular (RT-PCR) que detetam o RNA do vírus, em zaragatoa nasofaríngea.
Os casos de COVID-19 foram alastrando a vários países, levando à declaração de emergência de saúde pública a 30 de janeiro de 2020 pela Organização Mundial da Saúde e à situação de pandemia a 11 de março de 2020.2
O primeiro caso de infeção por SARS-CoV-2 foi confirmado em Portugal no dia 3 de março, de 2020.3 Com a pandemia a atingir o nosso país, os hospitais portugueses tiveram de se reestruturar rapidamente de forma a enfrentar esta nova realidade.
Reestruturação do atendimento permanente do hcis e início da abordagem dos doentes com covid-19
O Hospital CUF Infante Santo (HCIS) demonstrou uma particular capacidade de adaptação e o Atendimento Permanente (AP) foi, inclusivamente, uma das primeiras urgências da Grande Lisboa a implementar de forma eficaz dois circuitos distintos para doentes suspeitos COVID-19/não suspeitos, com segurança, tanto para os profissionais como para os doentes.
O primeiro doente com infeção por SARS-CoV-2 no HCIS foi diagnosticado no dia 11 de março, devido à persistência da equipa médica, uma vez que na altura não foi considerado como caso suspeito pela Direção Geral da Saúde (DGS). Tratava-se de um homem de 43 anos, com viagem recente aos Alpes Franceses nas férias de Carnaval, na região de Val-d’Isère, junto à fronteira com o Norte de Itália. Tinha recorrido ao AP dois dias antes com um quadro de febre, cansaço e sintomatologia respiratória e análises laboratoriais compatíveis com infeção viral, mas não houve possibilidade de prosseguir para o teste de diagnóstico, uma vez que não preenchia todos os critérios epidemiológicos em vigência (França não era, à data da manhã de 9 de março, considerada como zona de risco).4 O doente teve alta, mas a equipa médica do AP manteve um contacto diário e regressou ao HCIS no dia 11 de março. Nesta altura, após tomografia computorizada (TC) sugestiva (Fig. 3) e discussão com a equipa da linha de apoio ao médico (LAM), suportados pelo Laboratório Germano de Sousa, foi autorizada a realização do primeiro teste de RT-PCR para SARS-CoV-2 no HCIS, que se verificou positivo. Não existindo ainda autorização para internamento destes doentes em hospital privado, foram feitos os contactos necessários, e o doente foi transferido, clinicamente estável, para o Hospital Curry Cabral, com boa evolução clínica posterior.
Nesta altura, e desde o dia 9 de março, estavam implementados os dois circuitos que faziam a separação de doentes suspeitos/não suspeitos a partir de uma pré-triagem inicial que incluía a presença de febre, tosse, dispneia ou contacto com pessoa infetada. Esta separação foi imprescindível para o controlo de infeção dentro do hospital, permitindo trabalhar num ambiente mais seguro e com maior eficiência em gestão de recursos e equipamentos.
A 23 de março, após decisão da Comissão Executiva do Grupo José de Mello Saúde, o HCIS foi submetido a nova reestruturação, de forma a tornar-se no hospital de referência da rede CUF na Grande Lisboa para admissão e tratamento de doentes com diagnóstico de infeção por SARS-CoV-2.5 Para aumento de segurança de doentes e profissionais, todas as pessoas que se dirigiam a uma urgência CUF tinham de ser submetidas a uma pré-triagem no HCIS, sendo que os não suspeitos COVID-19 eram posteriormente encaminhados para o Hospital CUF Descobertas, enquanto os suspeitos permaneciam no HCIS para observação. Foram criados protocolos em articulação com as equipas do internamento geral e Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente (UCIP) e com um importante apoio das equipas da CUF Almada, Sintra e Cascais, que vieram reforçar a estrutura clínica. No dia 25 de abril, com a redução progressiva do número de infetados, a rede CUF reabriu o AP do Hospital CUF Descobertas nos moldes anteriores e, no início de maio, foram também reabertos os AP da CUF Almada e Sintra, mantendo-se o HCIS como hospital de referência para doentes COVID-19.
Equipamentos de proteção individual e treino da equipa
Durante todo este processo foi mantida a segurança dos doentes e profissionais, e generalizou-se o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados para todo o hospital (Fig. 4).6 No início de março, com os números de doentes infetados ainda baixos, a equipa usufruiu de algum tempo importante para o treino da utilização correta dos EPIs (colocação e retirada), minimizando os riscos de contágio. Foram elaborados vídeos internos e sessões de formação aos colaboradores, em conjunto com a equipa do Programa Nacional de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência a Antimicrobianos (PPCIRA). A gestão da equipa médica foi feita de forma a existir uma minimização do risco em função da idade com formação permanente a todos os elementos. Mesmo sendo um “Hospital COVID-19”, a taxa de infeção nos profissionais de saúde do AP do HCIS foi baixa, com apenas 3 profissionais a contraírem infeção do total de colaboradores do AP até à data (médicos, enfermeiros e auxiliares de ação médica). A PPCIRA local esteve sempre presente na tomada de decisão, dando apoio nas várias medidas a implementar no âmbito da infeção e segurança.
Diagnóstico e follow-up
Todos os doentes observados no AP do HCIS e que foram submetidos ao teste por RT-PCR para SARS-CoV-2 foram inscritos numa plataforma inicial criada pela equipa do AP. Nesta plataforma eram registados os resultados do teste, geralmente no dia seguinte e contactados todos os doentes via telefónica, independentemente do resultado, tranquilizando-os e dando alguma informação que fosse considerada necessária. Com o aumento significativo do número de testes realizados e de forma a mantermos um seguimento rigoroso destes doentes, foi criada uma equipa constituída por médicos, enfermeiros e alunos da NOVA Medical School no Hospital CUF Sintra, liderada pela Dra. Patrícia Mora, que, a partir de 31 de março de 2020, assumiu a responsabilidade dos registos SINAVE de todos os casos suspeitos testados no HCIS e o respetivo follow-up, criando uma rede de apoio estruturada ao cliente CUF, sempre em articulação com o AP.
O objetivo deste trabalho é fazer uma análise casuística dos doentes que recorreram ao AP do Hospital CUF Infante Santo no período correspondente ao pico da pandemia COVID-19 no nosso país. São analisadas as suas características demográficas, sintomas associados e gravidade da doença, refletindo também sobre as adaptações necessárias, quer da estrutura física hospitalar quer dos recursos humanos, de forma a tornar possível a observação destes doentes e o seu seguimento, mantendo estritas regras de segurança.
Material e métodos
Os dados apresentados foram colhidos entre 13 de março e 25 de abril, de 2020.
Foi criada uma base de dados em formato Google Sheets (Follow-up_COVID19) que permitiu a partilha da mesma por todos os médicos envolvidos na observação de doentes com suspeita de COVID-19, bem como a sua atualização em tempo real.
Todos os doentes que recorreram diretamente ao AP ou foram encaminhados de outras unidades do grupo CUF, foram introduzidos na base de dados, incluindo sexo, idade, sintomatologia, data da colheita e estado da análise de RT-PCR para SARS-CoV-2.
No final do período definido, os dados foram submetidos a análise estatística através de ferramentas Google Sheets.
Resultados
Desde o início da pandemia, até ao dia 25 de abril, o HCIS realizou 1365 testes de RT-PCR para SARS-CoV-2.
A idade média global da amostra foi de 48,46 anos, 55,8% dos doentes eram do sexo feminino, e os restantes 44,2% do sexo masculino.
Mais de 92% dos testes foram realizados no AP (1267 testes) - Fig. 1. Destes, 120 testes foram positivos (9,5%) e 24 inconclusivos (1,9%), sendo os restantes negativos. A idade média dos doentes com teste positivo era superior em cerca de 3 anos (51,4 anos), relativamente aos doentes com teste negativo (48,2 anos).
Cerca de 26% dos doentes com infeção confirmada por SARS-CoV-2 necessitaram de internamento no HCIS (31 doentes) e 70% tiveram alta para o domicílio. Verificaram-se 3 transferências para Hospital do Serviço Nacional de Saúde e apenas 1 óbito.
Dos doentes com teste positivo, o sintoma mais frequentemente referido foi a febre (definida como temperatura timpânica superior a 37,8ºC), presente em quase 1/4 dos doentes, seguida pela tosse (15%) e dispneia (11%) - Fig. 4.
Cerca de 13% dos doentes com teste positivo apresentavam-se assintomáticos, tendo sido referenciados para a realização de teste por contacto confirmado com doente portador de SARS-CoV-2.
Foi entre os dias 24 e 31 de março que se verificou o pico de casos positivos, representando mais de 1/3 do total de casos diagnosticados (37%) - Fig. 5.
Discussão
O Atendimento Permanente do HCIS foi sofrendo reestruturações consecutivas durante o período da pandemia COVID-19, de forma a estar preparado para enfrentar uma doença desconhecida até então. Houve, inicialmente, alguma generalização da pesquisa de SARS-CoV-2 por RT-PCR aos doentes que recorriam ao AP, contribuindo para o aumento do número de testes a nível nacional e afinando a capacidade de diagnóstico destes doentes. A percentagem global de 9,5% de positivos no total de testes realizados foi, no entanto, bastante superior à percentagem nacional que é inferior a 5%.7
A distribuição por género, dos doentes infetados, foi semelhante à descrita pela DGS a nível nacional com maior preponderância para o sexo feminino embora com valores ligeiramente menores (58% a nível nacional de mulheres infetadas e 55,8% no HCIS). Em relação à ida de média dos doentes com COVID-19, verificou-se ser sobreponível ao valor nacional (51 vs 51,4 anos).8
A percentagem de doentes internados (26%) está também em consonância com os números nacionais.8 No AP, durante este período, houve apenas um óbito associado à COVID-19 de uma doente de 75 anos que apresentava patologia respiratória e cardiovascular grave.
Os sintomas apresentados pelos doentes também estão em relativa concordância com dados nacionais da DGS até dia 25 de abril, em que os dois sintomas mais frequentes foram a tosse (50%) e febre (36%),9 embora no caso do HCIS com uma maior variabilidade de sintomatologia inaugural (Fig. 2). A tosse, apesar de ser o segundo sintoma mais frequente, aparece apenas em 15,38% dos casos como manifestação inicial de infeção por SARS-CoV-2, sendo a febre o sintoma mais frequente, presente em 23,85% dos casos. Dispneia, sintomas gastrointestinais e anosmia foram também frequentes.
Existiu ainda um número significativo de doentes assintomáticos (13,08%) que são explicados pelo próprio contexto de urgência em hospital privado, que recorrem por receio de infeção após contacto com doentes com COVID-19. Este facto apoia uma maior generalização dos testes, uma vez que 11 doentes que recorreram ao AP apenas por contacto com doente infetado, sem sintomatologia associada, eram positivos.
O pico do número de casos positivos no HCIS ocorrido entre os dias 24 e 31 de março é também coincidente com os dados a nível nacional, com um decréscimo gradual posterior.8
Conclusão
A adaptação à realidade da COVID-19 foi complexa por inúmeras razões: desde a carga emocional ligada ao próprio contexto da pandemia até à necessidade de utilização dos EPI, difíceis de suportar fisicamente durante muitas horas, e à experiência de criação de circuitos, por vezes com alterações posteriores de forma a encontrarmos a melhor solução possível. O AP do HCIS, em conjunto com a equipa de follow-up do Hospital CUF Sintra, conseguiu diagnosticar e manter o seguimento de 120 doentes com infeção por SARS-CoV-2, tendo realizado um total de 1267 testes no período de 13 de março e 25 de abril, dando um importante contributo da Medicina privada portuguesa para o tratamento de doentes com COVID-19.
A rápida transformação do HCIS só foi possível graças ao envolvimento contínuo da Administração, PPCIRA, Direção de Produção, de Enfermagem e Clínica em todo o processo, que juntamente com os profissionais no terreno, permitiu repensar todo o hospital com soluções dinâmicas e eficazes. Otimizou-se a comunicação entre todos os elementos referidos através da criação de um grupo Whatsapp® e foram implementadas reuniões diárias de ponto de situação envolvendo também a equipa de internamento e UCIP.
Como referiu William Osler, pai da Medicina Interna: “The best preparation for tomorrow is to do today’s work superbly well”. Apesar das contingências do momento e da antiguidade da própria instituição, o HCIS soube assim responder à árdua tarefa exigida, com excelentes resultados no tratamento dos seus doentes com infeção por SARS-CoV-2, mantendo simultaneamente e de forma consistente a segurança de todos os profissionais envolvidos.