A atual pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 veio impor a introdução de profundas alterações na organização e no funcionamento do sistema de saúde, nomeadamente com a súbita interrupção da atividade clínica programada dos diferentes departamentos, criando circuitos de atendimento para doentes infetados (ou com suspeita de infeção) e para doentes com teste negativo para COVID-19, e reorganizando as enfermarias, os serviços de urgência e unidades de cuidados intensivos, no que se refere à redistribuição de recursos humanos e condições logísticas. A aplicação dum modelo focado na segurança de doentes e profissionais de saúde, dotado de equipamentos de proteção individual adequados e de condições funcionais dinâmicas, capazes de responder a um surto que se estimou ser de grande expansão, implicou transformações abruptas em hospitais públicos e privados. Estas medidas associaram-se a regras de contenção da propagação da infeção, que incluíram o distanciamento social e confinamento, a desinfeção regular das mãos e superfícies de contacto, mas também o cancelamento da atividade eletiva nos cuidados de saúde. Este último, associado ao facto de muitos utentes evitarem recorrer às urgências hospitalares por receio de contaminação (com registo de reduções superiores a 50% no número de admissões), condicionou o atendimento médico em geral, com expectável repercussão na Cardiologia.
Na realidade, a divulgação de que a população com fatores de risco e patologias cardiovasculares, e outras comorbilidades crónicas, representa um grupo particularmente vulnerável no contexto da COVID-19, sobretudo quando idosos, tem sido considerado como um dos aspetos que, somado aos anteriores, teve maior impacto na diminuição temporária dos cuidados de saúde no âmbito das doenças cardiovasculares.
Os Hospitais CUF Infante Santo (HCIS) e CUF Porto (HCP), com características semelhantes no que se refere a multifuncionalidades no diagnóstico e tratamento das doenças do foro da Cardiologia, envolvendo equipas em disponibilidade permanente no âmbito da via verde coronária e cuidados intensivos, com acesso às diferentes técnicas invasivas e não invasivas desta especialidade, foram integrados durante o período da pandemia COVID-19 no grupo de centros com internamento para doentes infetados pelo vírus SARS-CoV-2. Neste contexto, a atividade programada foi transitoriamente cancelada, com impacto no número de consultas e procedimentos efetuados. Nesta fase, em que se processa a retoma gradual do atendimento eletivo, analisámos a atividade clínica dos centros de Cardiologia destes hospitais durante o período de estado de emergência nacional.
Foram considerados: o número de consultas presenciais, visitas de cardiologista a doentes admitidos (atendimento permanente, internamento, unidade de cuidados intensivos), número de teleconsultas (modalidade iniciada em abril), eletrocardiogramas (ECG), provas de esforço, ecocardiogramas, registo de Holter, monitorização ambulatória da pressão arterial (MAPA) e procedimentos no laboratório de angiografia (coronariografias, angioplastias, dispositivos eletrónicos cardíacos implantáveis, ablações).
CARDIOLOGIA HCIS | março 2020 | abril 2020 | março/abril 2020 | março 2019 | abril 2019 | março/abril 2019 | var abs | var % |
Nº Consultas Presenciais | 337 | 48 | 385 | 749 | 645 | 1394 | -1009 | -72% |
Nº Teleconsultas | - | 79 | 79 | - | - | - | - | - |
Visitas de Especialista (AP, INT, UCIP) | 14 | 3 | 17 | 9 | 10 | 19 | -2 | -12% |
Nº ECG | 651 | 320 | 971 | 1323 | 1220 | 2543 | -1572 | -62% |
Nº ECO | 337 | 48 | 385 | 632 | 662 | 1294 | -909 | -70% |
Nº Holter | 59 | 6 | 65 | 131 | 114 | 245 | -180 | -64% |
Nº MAPA | 30 | 0 | 30 | 73 | 54 | 127 | -97 | -76% |
Nº PE | 103 | 0 | 103 | 224 | 210 | 434 | -331 | -76% |
AP=atendimento permanente; INT=internamento; UCIP=unidade de cuidados intensivos polivalente; ECG=eletrocardiogramas; ECO=ecocardiogramas; Holter=registos de Holter; MAPA=monitorização ambulatória da pressão arterial; PE=provas de esforço; var abs=variação absoluta; var %=percentagem de variação.
CARDIOLOGIA HCP | março 2020 | abril 2020 | março/ abril 2020 | março 2019 | abril 2019 | março/abril 2019 | var abs | var % |
Nº Consultas Presenciais | 203 | 21 | 224 | 401 | 377 | 778 | -554 | -71% |
Nº Teleconsultas | - | 30 | 30 | - | - | - | - | - |
Visitas de Especialista (AP, INT, UCIP) | 4 | 0 | 4 | 3 | 9 | 12 | -8 | -67% |
Nº ECG | 702 | 295 | 997 | 974 | 880 | 1854 | -857 | -46% |
Nº ECO | 229 | 67 | 296 | 385 | 376 | 761 | -465 | -61% |
Nº Holter | 37 | 8 | 45 | 79 | 83 | 162 | -117 | -72% |
Nº MAPA | 28 | 6 | 34 | 49 | 41 | 90 | -56 | -62% |
Nº PE | 70 | 5 | 75 | 144 | 114 | 258 | -183 | -71% |
AP=atendimento permanente; INT=internamento; UCIP=unidade de cuidados intensivos polivalente; ECG=eletrocardiogramas; ECO=ecocardiogramas; Holter=registos de Holter; MAPA=monitorização ambulatória da pressão arterial; PE=provas de esforço; var abs=variação absoluta; var %=percentagem de variação.
CARDIOLOGIA HCIS | janeiro 2020 | fevereiro 2020 | janeiro/fev 2020 | março 2020 | abril 2020 | março/abril 2020 | var abs | var % |
Nº Consultas Presenciais | 763 | 670 | 1433 | 337 | 48 | 385 | -1048 | -73% |
Nº Teleconsultas | - | - | - | - | 79 | 79 | 79 | - |
Visitas de Especialista (AP, INT, UCIP) | 8 | 14 | 22 | 14 | 3 | 17 | -5 | -23% |
Nº ECG | 1367 | 1407 | 2774 | 651 | 320 | 971 | -1803 | -65% |
Nº ECO | 708 | 682 | 1390 | 337 | 48 | 385 | -1005 | -72% |
Nº Holter | 143 | 132 | 275 | 59 | 6 | 65 | -210 | -76% |
Nº MAPA | 49 | 59 | 108 | 28 | 6 | 34 | -74 | -68% |
Nº PE | 251 | 234 | 485 | 103 | 0 | 103 | -382 | -79% |
AP=atendimento permanente; INT=internamento; UCIP=unidade de cuidados intensivos polivalente; ECG=eletrocardiogramas; ECO=ecocardiogramas; Holter=registos de Holter; MAPA=monitorização ambulatória da pressão arterial; PE=provas de esforço; var abs=variação absoluta; var %=percentagem de variação.
CARDIOLOGIA HCIS | janeiro 2020 | fevereiro 2020 | janeiro/fev 2020 | março 2020 | abril 2020 | março/abril 2020 | var abs | var % |
Nº Consultas Presenciais | 463 | 441 | 904 | 203 | 21 | 224 | -680 | -75% |
Nº Teleconsultas | - | - | - | - | 30 | 30 | 30 | - |
Visitas de Especialista (AP, INT, UCIP) | 11 | 14 | 25 | 4 | 0 | 4 | -21 | -84% |
Nº ECG | 943 | 927 | 1870 | 632 | 290 | 922 | -948 | -51% |
Nº ECO | 495 | 431 | 926 | 229 | 67 | 296 | -630 | -68% |
Nº Holter | 96 | 83 | 179 | 37 | 8 | 45 | -134 | -75% |
Nº MAPA | 49 | 59 | 108 | 28 | 6 | 34 | -74 | -69% |
Nº PE | 159 | 146 | 305 | 70 | 5 | 75 | -230 | -75% |
AP=atendimento permanente; INT=internamento; UCIP=unidade de cuidados intensivos polivalente; ECG=eletrocardiogramas; ECO=ecocardiogramas; Holter=registos de Holter; MAPA=monitorização ambulatória da pressão arterial; PE=provas de esforço; var abs=variação absoluta; var %=percentagem de variação.
As Tabelas 1 e 2 mostram a comparação dos meses de março e abril de 2020 com o período homólogo do ano anterior, no que se refere ao número de consultas e exames não invasivos de cardiologia para os hospitais HCIS e HCP. Os dados mostram reduções superiores a 70% para as consultas presenciais, e superiores a 60% para a quase totalidade dos exames (com exceção dos ECGs que diminuíram 46% no HCP).
No HCIS, manteve-se uma escala presencial de cardiologistas em regime de serviços mínimos, tendo-se verificado uma diminuição mais ligeira (12% face a igual período de 2019) no número de visitas médicas solicitadas para doentes internados (com suspeita de ou com infeção COVID-19).
Quando olhamos para a evolução dos números no primeiro quadrimestre de 2020 (Tabelas 3 e 4), o padrão de redução foi muito acentuado, com uma queda ainda mais marcada no mês de abril (que decorreu todo durante o período de estado de emergência), onde a atividade nestes centros de cardiologia foi direcionada somente para doentes internados e para situações urgentes ou prioritárias.
Relativamente aos procedimentos invasivos, envolvendo cateterismos cardíacos, e angioplastias e intervenção estrutural, estudos eletrofisiológicos, ablações e implantação de dispositivos eletrónicos cardíacos, as Fig.s 1 e 2 mostram a evolução dos números no período de janeiro a abril de 2020, em ambos os hospitais. Verificou-se uma redução acentuada em março e abril (ligeira no HCIS para a hemodinâmica durante o mês de março), com as intervenções urgentes no contexto de síndroma coronária aguda a manterem-se sem variação significativa face aos dados do mesmo período de 2019 (Fig. 3), com um total de 4 enfartes do miocárdio para cada um dos períodos no HCP, e de 16 enfartes para março e abril de 2020 versus 15 casos no período homólogo de 2019.
Estes dados confirmam uma redução muito acentuada da atividade dos Centros do Coração de dois hospitais de referência no diagnóstico e tratamento de patologias do foro da medicina cardiovascular, mostrando que, o mês de abril de 2020, que decorreu na sua totalidade em estado de emergência, apresentou uma queda ainda mais marcada que o mês de março, mercê do cancelamento de toda a atividade eletiva. Esta redução para valores mínimos, apenas compensada parcialmente pela introdução de várias dezenas de teleconsultas em abril, e pelo apoio mantido, não quantificado, a doentes e a outros especialistas através de contacto telefónico, deixa antever um aumento da procura de remarcações após o desconfinamento e retoma gradual da normalidade, com aparecimento crescente de doentes com descompensação da sua situação clínica.
Neste contexto, que se antevê difícil de gerir, há que olhar atentamente (e repensar) o modelo de funcionamento da nossa atividade hospitalar.
Além da necessidade de manter regras de segurança para doentes e profissionais de saúde, não abdicando de equipamentos de proteção adequada nem das normas de distanciamento e higienização, deveremos incentivar o recurso crescente à telemedicina e monitorização à distância, valorizando a estratificação de risco e o seguimento dos doentes, com utilização de ferramentas que permitam obter registos de variáveis como a tensão arterial, ritmo cardíaco, peso, oximetria ou atividade física, sem a necessidade de recorrer a frequentes consultas presenciais com os custos e outros fatores inerentes.
As equipas têm de estabelecer prioridades e melhorar a planificação do seu trabalho multidisciplinar com maior envolvimento e responsabilidades atribuídos a enfermeiros e cardiopneumologistas. Neste campo, o conceito de hospitalização domiciliária, permitindo cuidados assistenciais “home-based” em casos selecionados, pode vir a assumir grande utilidade, sobretudo em idosos com insuficiência cardíaca crónica.
No que se refere ao risco de infeção COVID-19, há que recuperar a confiança da população nos hospitais, procurando evitar danos cardiovasculares colaterais com atrasos nos diagnósticos e perda de tratamentos atempados. As sociedades civil e científica têm aqui um papel de grande importância na divulgação da informação apropriada relativamente às urgências e intervenções cardiovasculares, usando os diferentes canais de comunicação.
Por outro lado, a atividade clínica em Cardiologia vai debater-se também com listas de espera, difíceis de recuperar, tendo em conta que as regras da normalização gradual implicam um número de atos médicos abaixo do habitual. Haverá, pois, pressão crescente a vários níveis sobre os profissionais de saúde, o que condicionará mais dificuldades na gestão do nosso tempo e implicará, necessariamente, bom senso nas diferentes situações com que, certamente, seremos confrontados na nossa prática diária.
Finalmente, o risco de que a acentuada redução da atividade clínica em Cardiologia durante o período da pandemia COVID-19 se possa associar a um impacto desfavorável na evolução dos doentes do foro cardiovascular, com mais complicações, morbilidade e mortalidade é real e implica a definição de estratégias concertadas para ultrapassar esse problema. Os modelos de financiamento devem contemplar a recuperação da saúde cardiovascular com projetos de telemedicina avançada, assistência domiciliária, reorganização do funcionamento das equipas hospitalares, dotando-as de mais profissionais com diferenciação em áreas que se complementem, para melhorar a dinâmica multidisciplinar na prestação das várias componentes da assistência em Cardiologia. 1-4