A pandemia COVID-19 condicionou a rápida e profunda introdução de modificações na organização e funcionamento do nosso sistema de saúde, impondo circuitos de funcionamento independentes para doentes com teste positivo para o coronavírus SARS-CoV-2 ou suspeitos de infeção, e para utentes com teste negativo, adaptando os diferentes setores de atividade na redistribuição de recursos humanos e condições logísticas a uma realidade de admissão em meio hospitalar que se projetava apresentar com grande crescimento. Estas súbitas transformações, que ocorreram em hospitais públicos e privados, associaram-se a medidas para conter a propagação da infeção, nomeadamente com o confinamento e distanciamento social, a desinfeção frequente das mãos ou a utilização de máscaras.1 Neste contexto, a recomendação para suspensão da atividade clínica eletiva veio influenciar, e muito, o atendimento prestado aos doentes em geral, mas com espectável repercussão na Cardiologia.
Na realidade, a divulgação de que a população com fatores de risco e doenças cardiovasculares significativas representa um grupo particularmente vulnerável no contexto da COVID-19, sobretudo quando idosa e com comorbilidades (como a diabetes, a doença pulmonar obstrutiva crónica e a imunossupressão), levou a que muitos destes utentes tenham evitado recorrer a urgências hospitalares por descompensação ou agudização da sua patologia, levando ao adiamento ou ausência de tratamentos considerados fundamentais.
A partir do mês de março, registou-se uma queda próxima de 50% na afluência às urgências. Se por um lado uma parte dos casos atendidos e tratados em regime de urgência não terão afinal problemas prioritários, por outro, muitos doentes com sinais de alerta para situações graves ficaram em casa, com receio de contágio pelo coronavírus SARS-CoV-2, mas também por não quererem sobrecarregar os serviços de urgência nesta fase pandémica.
A verdade é que, apesar dos centros hospitalares da rede da via verde coronária e da via verde do acidente vascular cerebral (AVC) continuarem a funcionar em disponibilidade permanente, assegurando proteção adequada a profissionais de saúde e doentes, verificou-se uma redução significativa no número de casos enviados para intervenção nas primeiras horas de evolução destes acidentes cardiovasculares, perdendo assim o maior benefício do tratamento.
É preciso acautelar que esta população com situações agudas não represente um dano colateral deste difícil combate. É que além da perda de terapêutica atempada, poderá não haver lugar à orientação clínica subsequente, com medicação adequada e cuidados diferenciados de prevenção secundária, nomeadamente com programas de reabilitação, muito centralizados na fisioterapia, cuja atividade se tem mantido suspensa neste período.
Além disso, a interrupção de consultas programadas e procedimentos eletivos do foro da cardiologia de intervenção, combinada com (des)informação inicial relativamente ao risco de complicações graves em doentes sob medicação crónica anti-hipertensiva e da insuficiência cardíaca (inibidores da enzima de conversão da angiotensina e antagonistas do recetor da angiotensina), pode ter contribuído para uma maior dificuldade na manutenção da medicação, levando à interrupção no tratamento de patologias cardiovasculares frequentes, com descontrolo das mais variadas situações.
No que diz respeito à infeção COVID-19, para além de desequilibrar patologias previamente compensadas, pode ser causadora de complicações cardíacas, que incluem a isquemia e enfarte do miocárdio, mesmo na ausência de doença aterosclerótica das coronárias, a miocardite, as arritmias, o tromboembolismo ou insuficiência cardíaca (na fase muito grave de falência multiorgânica).
Apesar da inexistência de estudos consistentes mostrando terapêuticas dirigidas com benefício significativo na evolução clínica da COVID-19, têm sido utilizados vários medicamentos em regime de internamento, em particular nos cuidados intensivos, que, no caso da cloroquina ou hidroxicloroquina, combinada ou não com um macrólido, se associou a efeitos adversos, como arritmias ventriculares e aumento da mortalidade hospitalar.2
A recente publicação dum estudo sobre mortalidade global em Portugal durante a Pandemia, mostrou um aumento do número de óbitos na população idosa no período de março a abril, comparativamente ao ano anterior, numa dimensão não explicada pelas mortes devidas à COVID-19.3 Este aumento, que ocorre depois duma sequência de 10 anos consecutivos com diminuição do número total de óbitos em Portugal, dever-se-á, com elevada probabilidade à pesada componente das doenças cardiovasculares.4
A sociedade deve procurar difundir a toda a população a importância de se manter atenta a sintomas e sinais de alerta de eventos cardiovasculares agudos, para que acionem o 112 ou a linha SNS24, de modo a fomentar o acesso urgente a uma unidade hospitalar com capacidade de realizar o tratamento apropriado. Não podemos descurar os nossos doentes crónicos e as situações de emergência cardiovascular associadas a risco de mortalidade ou de importantes limitações biopsicossociais. É fundamental transmitir a confiança e segurança necessárias aos doentes, mostrando que está em vigor o normal funcionamento das urgências e centros com capacidade para intervenção aguda no enfarte do miocárdio e AVC.