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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.7 no.2 Queluz jun. 2020  Epub 24-Jun-2021

https://doi.org/10.29315/gm.v7i2.355 

Artigo de Perspetiva

COVID-19 e a Transformação Digital dos Cuidados de Saúde: “A Pastilha de Mentos na Coca-Cola Diet

COVID-19 and Healthcare Digital Transformation: “A Mentos in a Diet Coke”

Vítor Pinho Oliveira1  5 
http://orcid.org/0000-0003-4645-0931

Lara Queirós2  5 

Paulo Pereira Gomes3  5 

Micaela Seemann Monteiro4  5 

1 Anestesiologista, Hospital CUF Viseu, Viseu, Portugal.

2 Oftalmologista e Codificadora Clínica, Instituto CUF Porto, Porto, Portugal.

3 Intensivista e Internista, Hospital CUF Descobertas, Lisboa, Portugal.

4 Internista, Clínica CUF Belém, Chief Medical Officer JMS, Lisboa, Portugal.

5 Equipa Médica do Projeto GO FORWARD.


Resumo

A pandemia COVID-19 condicionou mudanças inauditas na sociedade. A abordagem à crise pandémica foi potenciada por recursos tecnológicos que facilitaram as estratégias de deteção, vigilância e mitigação do impacto da infeção. Paralelamente, a necessidade de cumprir com as orientações sanitárias desafiou os modelos tradicionais de relação médico-doente, acelerando a transição para novos paradigmas digitais de prestação de cuidados, com a implementação de soluções de telessaúde (teleconsulta). Neste ensaio, analisamos o impacto da inovação tecnológica no combate à crise COVID-19, o impacto desta no processo de transformação digital da rede CUF e perspetivamos uma visão futura da jornada do cliente CUF, cientes de que a oportunidade criada por essa crise para esta transformação, permitirá ganhos de eficiência e qualidade clínicas assentes numa nova arquitetura tecnológica que permita uma medicina preventiva, preditiva e personalizada.

Palavras-chave: Consulta Remota; COVID-19; Pandemia; Prestação de Cuidados de Saúde; Telemedicina

Abstract

COVID-19 pandemic caused unprecedented changes in society. Technological innovation enhanced pandemic crisis approach by improving detection, monitoring and mitigation of infection’s impact. Simultaneously, compliance with healthcare authorities’ guidelines challenged conventional patient-physician relationship, fostering the transition to a new digital paradigma of healthcare by the implementation of telehealth solutions (teleconsultation). In this essay, we analyze the impact of technological innovation in addressing COVID-19 crisis, its impact on the digital transformation of CUF healthcare and we envision a future vision of our customer’s journey, aware that the opportunity triggered by this crisis for this transformation will allow clinical efficiency and quality gains, by a new technological architecture that promotes a preventive, predictive and personalized medicine.

Keywords: COVID-19; Delivery of Health Care; Pandemics; Remote Consultation; Telemedicine

Introdução

A ironia surgia em formato de cartoon partilhado viralmente pelas redes sociais: numa espécie de questionário uma pergunta “Quem acelerou o processo de transformação digital da sua empresa?” seguida de diferentes opções (“CEO”, “CIO”, “Diretor de Inovação”), mas cuja resposta selecionada como opção certa era... “Coronavírus”.

No início de 2020, o mundo deparou-se com uma crise sanitária inaudita que abalou o funcionamento de uma sociedade intensamente interconectada e interdependente, paralisando a economia, confinando a livre circulação de pessoas e condicionando comportamentos interpessoais: como forma de controlo da pandemia COVID-19 exigia-se um distanciamento físico (denominado de “social”) entre indivíduos.

Para responder à necessidade de distanciamento, mudaram-se os paradigmas laborais apostando, sempre que possível, no trabalho remoto. Em áreas como a medicina, cuja atividade primordial assenta no contacto físico, no toque humano do cuidador, na permuta de informação sensível e na avaliação subjetiva presencial, para além da necessidade de proteção de profissionais e doentes, a pandemia COVID-19 veio desafiar os modelos tradicionais de interação médico-doente, acelerando a transição para novos paradigmas digitais de prestação de cuidados de saúde.

Neste ensaio pretendemos analisar, de forma sumária e não exaustiva, o impacto que a inovação tecnológica teve na resposta à COVID-19 e a influência da pandemia na aceleração digital da prestação de cuidados de saúde. Focando-nos especificamente na teleconsulta (debelando alguns preconceitos mais comuns) e alentados pelas oportunidades de transformação digital proporcionadas por esta crise, tentamos ainda conjeturar o futuro da jornada clínica do cliente CUF.

O combate digital

Previamente à pandemia, o amadurecimento de diversas tecnologias digitais aplicadas à prestação de cuidados de saúde auspiciava uma mudança de paradigma no tratar e cuidar dos principais problemas clínicos.

Tecnologias digitais como redes de telecomunicações de última geração (5G) a conectar uma proliferação de “Internet das Coisas (IoT)” aplicada a diferentes monitores, equipamentos e sensores de biossinais, de uso pessoal (em telemóveis do fenómeno cultural apelidado de “quantifying self”) ou de uso clínico, são capazes de produzir e recolher quantidades incomensuráveis de dados (big data) em tempo real. Estes são transformados em informação - ou mesmo conhecimento - por software que mimetiza o raciocínio humano - a inteligência artificial (IA) e o deep learning - que deteta padrões, tendências e prevê outcomes. O blockchain é uma tecnologia de distribuição e encriptação de informação que, baseada na verdade partilhada, aumenta a segurança e quase que impossibilita a adulteração de interações. Um admirável mundo novo digital ao alcance do nosso dedo.

Contudo, o combate à pandemia COVID-19, pelo impacto económico e humanitário associado, concentrou em si muita desta atenção científica e esforço académico, servindo de cobaia e beneficiando da aplicação destas tecnologias digitais às diferentes abordagens de deteção, controlo, vigilância e mitigação do impacto desta infeção.

Num artigo recente, Ting et al1 resumem e exemplificam de forma estruturada, diferentes aplicações destas inovações tecnológicas ao combate à pandemia:

  • Ferramentas de business intelligence e advanced analytics aplicadas a bases de dados com atualização em tempo real da prevalência, distribuição geográfica

  • e grau de severidade do número de casos infetados, permitiu criar plataformas públicas de monitorização e evolução do estado da pandemia (ex: “Worldometer”);

  • A IoT aplicada à georreferenciação de infetados, na Coreia do Sul, permitiu monitorizar o risco de contaminação por proximidade (ex. Coronamap.live ou Wuhanvirus. kr);

  • A adoção de tecnologia de reconhecimento facial ativado por imagem térmica permitiu efetuar rastreios de temperatura corporal, em larga escala na passagem por pontos públicos de triagem2;

  • A análise de big data da infeção por SARS-CoV-2 permitiu a monitorização e modelação da atividade da doença, taxas de crescimento e áreas de potencial contaminação, bem como o estado de preparação e vulnerabilidades de sistemas, orientando as autoridades políticas na antecipação e otimização da abordagem ao surto (ex: o cruzamento e análise de bases de dados de geolocalização da empresa tecnológica Tencent, com a Official Aviation Guide e o Wuhan Municipal Transportation Management Bureau permitiram a modelação do risco de “transmissão instantânea” e previsão de infeção, no território de Wuhan)3;

  • A aplicação de algoritmos de deep learning permitiu agilizar a deteção e o diagnóstico da COVID-19, bem como a célere sequenciação do genoma do SARS-CoV-2 (decorrida em poucos dias, quando comparada com o surto de coronavírus da SARS em 2003 que levou quase três meses). Algoritmos de IA estão na base do desenvolvimento de vacinas e terapêuticas específicas. Outros exemplos de aplicação clínica destes algoritmos em departamentos de radiologia de hospitais chineses incluem a deteção de critérios imagiológicos de pneumonia associada a COVID-19, em imagens de TAC, rastreando doentes, priorizando aqueles com maior probabilidade de infeção, permitindo gerir e alocar recursos humanos (equipas clínicas insuficientes e assoberbadas por trabalho) e recursos materiais (critérios para a realização de testes)4;

  • A aplicação de IA permitiu também a disponibilização de ferramentas como avaliadores de sintomas (“symptom-checker”) ou “chatbots” clínicos online que possibilitam um rastreio inicial e um alívio da afluência às instituições1;

  • O recurso a tecnologia blockchain permitiu que hospitais e farmácias chinesas se articulassem e rastreassem a entrega de medicamentos no domicílio à população confinada1;

  • De forma a robustecer as cadeias de logística globais, necessárias ao funcionamento de instituições de saúde, melhorando a preparação e capacidade de resposta para uma futura pandemia (atendendo aos constrangimentos críticos que as ruturas de abastecimento ocorridas tiveram em alguns países, de equipamentos de proteção individual, reagentes para testes diagnósticos, equipamentos médicos) e como para acelerar uma recuperação económica no pós-COVID-19, o Fórum Económico Mundial lançou um Deployment Toolkit assente em tecnologia blockchain, que possibilite maximizar a confiança e a integridade assente na “verdade compartilhada” do âmago desta tecnologia.5 A tecnologia blockchain terá também potencial aplicabilidade no fabrico em escala e distribuição de vacinas e terapêuticas específicas à COVID-19, assim que estas estejam disponíveis, bem como na gestão de reclamações e pagamento de apólices de seguro por doença por COVID-191;

  • A tecnologia digital e as redes sociais, assumiram-se como veículo preferencial de partilha de informação, comunicação e educação para a saúde pública (ex. o governo de Singapura estabeleceu uma parceria institucional com o WhatsApp, permitindo à população receber informações oficiais e fidedignas e esclarecer dúvidas).1

Mas para além do contributo direto no combate à pandemia, a inovação tecnológica permitiu mitigar os impactos da crise sanitária na saúde global da população, providenciando recursos técnicos para implementar soluções de telessaúde que garantissem a disponibilidade assistencial contínua, possibilitando cuidar da população doente não-COVID durante períodos de confinamento e evicção física temporalmente indefinidos.

And suddenly... Digital went viral

A telessaúde, que compreende a utilização de tecnologias de informação e comunicação para apoiar à distância a saúde nas suas diferentes vertentes (um termo mais abrangente e correto do que aquele popularmente conhecido por “telemedicina”), não sendo uma novidade, nem tampouco uma epifania “covídica”, cronicamente padece de uma menorização face às formas tradicionais de contacto médico-doente. Não obstante o consistente crescimento em volume, âmbito e aplicabilidade (alargando-se a outras áreas profissionais como a tele-enfermagem, a telepsicologia ou a telereabilitação) e a mais-valia proporcionada pela promoção do acesso aos cuidados de saúde, a telessaúde classicamente encontrou sempre uma maior aceitação em especialidades médicas mais assentes no diagnóstico por imagem (ex.: teledermatologia, tele-imagiologia, telepatologia), esbarrando frequentemente em obstáculos regulatórios, comerciais e até de índole individual (como preconceitos e mitos) que impediam a sua implementação transversal e a tornavam preterida comparativamente à forma convencional (presencial) de cuidar. De acordo com, Hollander et al6 várias barreiras impediam a adoção generalizada de telemedicina, nomeadamente a incapacidade de compreenderem que a telemedicina não é um novo tipo de medicina, mas tão somente um mecanismo diferente de interação, complementar e sinérgico dos já existentes, “destinada a determinados pacientes, em determinados momentos, para prestação de cuidados de saúde de alta qualidade”.

Os serviços de telessaúde públicos têm tido um papel crucial e pivotante na estratégia de combate à pandemia. Em Portugal, o SNS24 é o ponto de contacto pivô na identificação de casos suspeitos e no seu correto encaminhamento.7 O website do SNS24 foi atualizado com funcionalidades administrativas (pedido de comprovativos) e clínicas (avaliador de sintomas, renovação de medicação crónica, consulta do boletim de vacinas) com o intuito de aumentar a capacidade de resposta por via remota e diminuir a necessidade de deslocação dos utentes às instituições. A implementação, em plena pandemia, de uma plataforma de vídeoconsulta (SER Live) integrada num processo clínico eletrónico acessível ao cidadão via portal digital, complementada por uma receita integralmente desmaterializada, permitiu o acompanhamento de doentes crónicos, evitando descompensação clínica, potencial morbimortalidade ou agravamento de risco de contaminação por SARS-CoV-2 por deslocação a instituições de saúde.7

Figura 1: Cartoon difundido pelas redes sociais em março de 2020, no início do estado de emergência em Portugal. 

Assim, a pandemia COVID-19, a obrigatoriedade do distanciamento físico, o receio de contaminação e a salvaguarda da segurança de cuidadores, proporcionou uma conjugação de circunstâncias únicas e imprevistas para uma aceitação e reivindicação de iniciativas de telessaúde/telemedicina por parte dos doentes, profissionais, instituições prestadoras e entidades pagadoras. Num contexto de medo, indefinição e crise global, a necessidade de prestar cuidados de saúde de forma remota e digital como complemento ou eventual substituição da resposta assistencial convencional, veio catalisar de modo súbito (quase “efervescente”) a implementação de soluções de telemedicina previamente em curso: tal qual o efeito da pastilha de Mentos numa garrafa de Coca-Cola.

Num artigo recente, Hollander et al6 abordam e dissecam alguns dos mitos/preconceitos mais frequentemente associados a telessaúde/telemedicina:

  • MITO 1 - A telemedicina é “muito difícil” e requer muitos recursos. Quase todos os profissionais de saúde e a grande maioria dos doentes possuem a tecnologia necessária para realizar um ato de telemedicina (seja um smartphone, tablet ou computador). Segundo dados de 2018, 75,1% da população portuguesa (quase 7 milhões de indivíduos) é portadora de um smartphone.8 De realçar que, uma teleconsulta não obriga necessariamente a ocorrência de vídeo ou acesso à internet; as teleconsultas áudio, complementadas por soluções de prescrição desmaterializada, têm alta capacidade resolutiva e são alternativas importantes como possibilidade de alcançar segmentos populacionais com menor destreza tecnológica ou com menor acesso a tecnologia por razões económicas ou geográficas;

  • MITO 2 - Os doentes dão preferência à fidelização ao seu médico habitual em detrimento de contactos episódicos e pontuais: Para uma percentagem importante de doentes, a conveniência do acesso ao atendimento por um qualquer médico é prioritária em detrimento do acesso ao seu médico habitual. Muitas vezes, os doentes querem apenas acesso a cuidados de saúde de qualidade, independentemente do prestador. Pensa-se que esse comportamento é uma das razões subjacente à crescente taxa de afluência aos serviços de urgência e uma diminuição da afluência aos cuidados de saúde primários.6

  • MITO 3 - Não é possível realizar exame físico: Não obstante a possibilidade de capacitação tecnológica com equipamentos clínicos digitais (ex.: ecógrafos, estetoscópios, otoscópios digitais) que substituam passos específicos do exame físico, não é despicienda a informação passível de ser recolhida pela mera avaliação visual do paciente (aspeto geral, estado nutricional, esforço respiratório) e partilha narrativa da história clínica. Outro ponto importante é a capacidade de envolver e capacitar os próprios doentes na autoavaliação física aquando da teleconsulta. Existem inúmeros exemplos descritos de pequenos gestos e ensinos passíveis de se transmitir aos doentes, que permitem aumentar a acuidade diagnóstica da observação em teleconsulta (ex.: autocontagem pulso periférico, Ottawa ankle and knee rules, despiste de dor e sintomas abdominais major associados à capacidade de o doente dar saltos estáticos, etc.)6;

  • MITO 4 - As teleconsultas são menos eficazes que as consultas presenciais: Comparar a resolutividade e a precisão diagnóstica entre consultas remotas e consultas presenciais poderá ser falacioso dado que, muito frequentemente, mesmo presencialmente, o diagnóstico final só é possível após consultas subsequentes mediante exames laboratoriais, imagiológicos ou pedidos de informação especializada. O mesmo acontece com a teleconsulta. O foco deve colocar-se na capacidade do médico conseguir recolher as informações suficientes para espoletar um próximo passo correto (tomada de decisão clínica) e, se a consulta correspondeu às necessidades do paciente, atendendo às alternativas disponíveis (tendo em conta fatores como a dificuldade de acesso geográfico a clínicos especializados, a falta de acesso em tempo útil em áreas sobrepopuladas, a falta de cuidados por razões financeiras ou mesmo o risco de exposição à infeção por COVID-19).6

  • MITO 5 - Não existe um modelo de pagamento compatível com telemedicina. No decurso da pandemia, em Portugal, inúmeras entidades financeiras definiram modelos de pagamento para teleconsultas. Nas instituições públicas, existem instrumentos financeiros que preveem uma majoração de 10% no pagamento aos hospitais pela produção de teleconsultas.9

  • MITO 6 - A telemedicina é pouco segura. Um dos receios associados ao partilhar informação de índole pessoal por via remota com um profissional (eventualmente desconhecido), é de que possíveis fragilidades técnicas permitam o acesso indevido a esse conteúdo, sobretudo considerando que o interface (telemóvel/tablet/computador) do doente é um contexto menos controlado do que um gabinete médico. Contudo, a obrigação de reserva de confidencialidade e sigilo médico são exatamente as mesmas, seja numa consulta presencial ou numa consulta remota, conforme estipulado no Código Deontológico da Ordem dos Médicos (artigo 46º).10 Acresce que as plataformas de teleconsulta/telessaúde são obrigadas a integrar sistemas de encriptação de acesso e de dados e a cumprir com a norma ISO/IEC-27001 referente a Requisitos de Segurança para Sistemas de Informação, com certificação pelo Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA).

Na José de Mello Saúde, a pandemia catalisou a implementação da Teleconsulta CUF (ocorrida, desde a tomada de decisão à primeira consulta efetuada, num tempo recorde de 5 dias) dirigida, numa fase inicial, a primeiras consultas e consultas subsequentes de especialidades generalistas (Medicina Interna, Medicina Geral e Familiar e Pediatria), mas rapidamente alargada às restantes especialidades. No pico do confinamento, as teleconsultas ascenderam a 40% de todas as consultas efetuadas na rede CUF, envolvendo mais de 1300 médicos, de 30 especialidades diferentes, abrangendo doentes adultos e pediátricos. O inquérito de satisfação dirigido a cerca de 900 clientes CUF que efetuaram uma teleconsulta obteve uma taxa de resposta elevada de 52,8%. A pontuação de satisfação foi 8,7/10 e ultrapassou mesmo o valor da consulta presencial aferido em 2019 (8,2/10). Assinalável é, também, a perceção de efetividade da teleconsulta: 92,8% dos respondentes consideraram a sua situação resolvida. Também os médicos foram questionados: 75% dos 210 respondentes consideraram a teleconsulta muito eficaz ou completamente eficaz; 80% avaliaram-na como clinicamente segura (8,1% como não segura) e apenas 13,3% sentiram a relação médico-doente comprometida.

É já consensual e inequívoco que existe um “antes” e um “depois COVID-19” na adoção e generalização de plataformas de telessaúde. Muitas destas transformações digitais ocorridas na prática clínica permanecerão após a pandemia cessar: consultas eletivas e ambulatórias serão substituídas por teleconsultas com claras vantagens na gestão de tempo (quer do profissional, quer do doente), na redução do absentismo laboral e no aumento de eficiência dos cuidados. A telessaúde está posicionada para ser o primeiro ponto de contacto com o sistema de saúde, em situações futuras de doenças infecciosas, prevenindo disseminação e contágio.

Apesar da crescente aceitação desta forma de cuidar, o caminho para a integração plena da telessaúde não é necessariamente certo, unívoco e homogéneo: a assimetria técnica e financeira dos sistemas de saúde para a implementar é significativa e plataformas tecnológicas pouco robustas podem suscitar dúvidas quanto à segurança, confidencialidade e privacidade dos dados. Acresce que o custo de acesso a equipamentos e condições de conectividade adequadas poderão cercear o alargamento da telessaúde às franjas da população idosa, com menor literacia tecnológica, mas simultaneamente mais necessitadas e beneficiadas pela adoção deste tipo de solução.11

Um admirável mundo novo digital

A interseção sinérgica entre a saúde e a tecnologia gera uma revolução capaz de alterar paradigmas vigentes e formas ancestrais de cuidar, conforme verificado na rápida adoção da telemedicina espoletada pela pandemia COVID-19. E isso faz-nos pensar quão mais virtuoso poderá ser um processo de transformação digital que assente no envolvimento e na centralidade do cliente, como agente polarizador e gerador de informação (Fig. 2).

Figura 2: Modelo de uma interação para jornada clínica híbrida centrada no cliente. 

Alentados pela “janela de oportunidade” proporcionada pela crise pandémica, revisitando os constrangimentos atualmente sentidos na nossa atividade clínica e priorizando a experiência centrada no cliente, desafiamo-nos a um exercício, que tem tanto de sedutor como de arriscado: imaginar a jornada digital, inteligente e irrepreensível de um cliente CUF no futuro. Uma jornada híbrida composta pela integração de pontos de contacto presenciais com pontos de contacto remotos, adaptado às necessidades e preferências, acompanhando de forma transversal o percurso biológico do cliente. Uma jornada que conjugue a disponibilidade de acesso e o empoderamento da interação digital com a empatia, a personalização e a fidelização da interação humana, suportada num processo clínico eletrónico interoperável, consistente, transversal, que integre inteligência de suporte à decisão assente num novo ecossistema de instância única, seguro e fiável.

Junho de 2025. José, um alto quadro do setor bancário, com 49 anos, está preocupado com as suas queixas de enfartamento e alterações do trânsito intestinal de há três semanas. Em casa, José acede à app My CUF, o cockpit digital para a gestão da sua saúde. Inicia o “Symptom Checker”, uma ferramenta de inteligência artificial, que - em jeito de conversa - lhe colhe a história clínica. No fim - atendendo às queixas e ao perfil de risco do José - apresenta probabilidades diagnósticas e sugere os próximos passos: agendar já uma (tele) consulta com o seu médico ou, não existindo, recorrer à Teleconsulta do Dia para esclarecer ainda hoje as suas dúvidas e programar os exames necessários. O chatbot do My CUF propõe várias alternativas e José marca uma teleconsulta com o seu médico para o dia seguinte entre duas reuniões de trabalho no banco. No início da consulta, o Dr. Luís, já com acesso a toda a história clínica colhida pelo Symptom Checker e cruzada com a informação pré-existente no processo clínico eletrónico, valida os dados com o José e discute a necessidade de efetuar uma colonoscopia. Ganhou assim tempo para responder às múltiplas dúvidas com toda a calma. Na app My CUF surgem várias datas alternativas para efetuar o exame e no separador da “Informação interativa” ele consulta o vídeo que lhe explica a preparação e o próprio exame. José escolhe a data mais conveniente. Ao confirmar a marcação do exame, surge-lhe o formulário do consentimento informado que lê e assina com autenticação por chave móvel digital. Surge-lhe, de seguida, um questionário de autopreenchimento pré-anestésico, onde José confirma toda a medicação habitual que se encontra registada no seu processo (incluindo o rivaroxabano que faz cronicamente). Após estas diligências, José recebe todas as instruções (dieta, laxante, recomendações) da preparação intestinal. Após leitura atenta, José mantém dúvidas quanto à preparação do laxante e socorre-se do “chatbot” para esclarecê-las. Nas 48 horas prévias à realização da colonoscopia, José recebe uma mensagem interativa para confirmar a presença, podendo via resposta interativa, manter/remarcar/desmarcar o exame. No seu calendário pessoal é notificado sobre a necessidade de iniciar dieta e suspender o rivaroxabano, conforme protocolo institucional. Na véspera do exame recebe uma mensagem que o alerta para o tempo previsível que necessitará para o trajeto até à unidade CUF. À entrada da unidade, o check-in é automático, através de validação, após conexão da app my CUF à rede wi-fi da unidade, que o orienta para o piso dos Exames Especiais. Durante a colonoscopia é detetada uma lesão suspeita de neoplasia colorretal. O José, após o recobro, tem uma conversa com o médico gastrenterologista que o informa do resultado e recomenda os próximos passos. Foi ativada a Via Verde Oncológica: algoritmos de advanced analytics ajudaram a rastrear as agendas das unidades CUF e detetar as disponibilidades mais precoces de vaga para realização de TC abdominal, seguida de consulta de Cirurgia Geral em qualquer instituição da rede CUF mais próxima.

O José agenda o exame e a consulta de Cirurgia Geral. Nessa consulta, o cirurgião acede através do processo clínico eletrónico à informação integrada do resultado anatomopatológico e do estadiamento. Por videochamada adiciona o oncologista para definição conjunta de estratégia terapêutica. José, o cirurgião e o oncologista acordam o plano terapêutico: quimioterapia neoadjuvante seguida de hemicolectomia direita laparoscópica. O cirurgião consegue também discutir as diferentes opções técnicas com recurso a materiais interativos (vídeos, animações). O oncologista faz a prescrição e agendamento das sessões QT neoadjuvante. O cirurgião faz a proposta cirúrgica e é despoletado um pedido de orçamento, a autorização EFR e o envio para o My CUF do doente do Kit pré-operatório (questionário pré-anestésico - já previamente preenchido aquando da preparação para colonoscopia, mas passível de atualização - indicações gerais, consentimentos cirúrgico, anestésico e transfusional). Com base nas respostas ao questionário pré-anestésico, são selecionados quais os exames complementares pré-operatórios necessários a realizar. Na consulta pré-anestésica, o anestesiologista valida e aprofunda a anamnese, revê medicação domiciliária, sinaliza quais os cuidados pré-operatórios a ter para protocolo de enhanced-recovery. O doente é admitido na unidade para ser submetido a hemicolectomia direita laparoscópica. Tem alta hospitalar 3 dias após a cirurgia. Recebe no My CUF o Resumo do Evento Clínico (Nota de Alta) e questionários interativos de satisfação PREM/PROM. Nas primeiras 24 horas pós-alta, o José é contactado por via telefónica para aferir o seu estado clínico e tem possibilidade de efetuar telemonitorização dos pensos cirúrgicos com a equipa de enfermagem. A consulta de follow-up pós-operatório aos 3 meses é realizada por via remota, pois José encontra-se fora do país, por motivos laborais.

Conclusão

A pandemia COVID-19 mudou paradigmas em todas as vertentes da sociedade moderna: social, laboral, familiar e comportamental. No seu combate, em 2020, foi possível confiar nas medidas clássicas de saúde pública aliadas a uma ampla gama de inovação tecnológica capaz de potenciar as abordagens clínicas convencionais, com o consequente aumento da sua eficácia. A necessidade de distanciamento físico criou uma oportunidade inédita para a adoção célere de soluções de cuidados remotos digitais (telessaúde), catalisando uma transformação digital há muito aguardada, mas continuamente dificultada por argumentos de natureza conceptual e prática, muitos deles falaciosos. Essa transformação digital da saúde para além de facilitar o acesso, o acompanhamento continuado e a proatividade dos cuidados, permitirá, a partir de dados que se metamorfoseiam em informação e subsequente conhecimento, exercer uma medicina preventiva, preditiva e personalizada, com ganhos evidentes de eficiência e qualidade.

O desafio que se segue é o de consubstanciar esta bem-sucedida experiência transformacional de curto prazo, numa realidade consolidada com segurança clínica, orientada por uma visão clara do conceito tecnológico, com envolvimento constante das equipas multidisciplinares (sejam profissionais de saúde, cientistas de dados ou profissionais tecnológicos), num esforço de constante inovação, otimização e integração de processos, sob pena de deixar gorar a oportunidade e a expectativa criada. O desafio é continuar a materializar esta vontade e esta visão da jornada híbrida (física e digital), inteligente e irrepreensível do cliente CUF do futuro. Para que a pastilha de Mentos não “tire por completo o gás” e estrague a Coca-Cola Diet

Agradecimentos/Acknowledgements

Os autores gostariam de agradecer à Ana Seabra Brito e ao Mário Bica, do projeto GO FORWARD, pela revisão atenta do artigo e pelas relevantes sugestões e correções.

Referências

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Responsabilidades éticas

Suporte financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsídio ou bolsa

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares

Ethical disclosures

Financing support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Provenance and peer review: Not commissioned; externally peer reviewed

Leitura complementar

  • https://hbr.org/2020/04/how-digital-contact-tracing-slowed-covid-19-in-east-asia

  • https://www.un.org/development/desa/dpad/publication/un-desa-policy-brief-61-covid-19-embracing-digital-government-during-the-pandemic-and-beyond/

  • https://www.cigionline.org/articles/digital-response-outbreak-covid-19

  • Plano Estratégico Nacional para a Telessaúde https://www.spms.min-saude.pt/wp-content/uploads/2019/11/PENTS_português.pdf

  • Estratégia Nacional para o Ecosistema de Informação de Saúde https://www.spms.min-saude.pt/wp-content/uploads/2019/10/ENESIS2022_VersaoParaConsultaPublicaOut2019.pdf

  • Bringing health care to the patient - An overview of the use of telemedicine in OECD countries. www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/bringing-health-care-to-the-patient_8e56ede-7-en

Recebido: 12 de Junho de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2020; Publicado: 30 de Junho de 2020

Autor Correspondente/Corresponding Author: Vítor Pinho de Oliveira [vitor.m.oliveira@jmellosaude.pt] Rua do Belo Horizonte, nº 12 e 14, 3500-612 Viseu, Portugal ORCID iD: 0000-0003-4645-0931

Conflitos de interesse:

Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Conflicts of interest:

The authors have no conflicts of interest to declare.

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