Desafios e adaptações logísticas
Tendo em conta a declaração de emergência de saúde pública declarada pela OMS, em que se previa um elevado número de casos de COVID-19, e segundo a Circular Informativa N.º 068/CD/100.20.200 da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P (INFARMED), os Serviços Farmacêuticos (SF) reforçaram o stock de medicamentos que, neste contexto, se esperava ter um maior consumo, para que não faltasse terapêutica a qualquer doente, desde os casos mais ligeiros aos casos mais graves.1
Entre os medicamentos reforçados encontravam-se antipiréticos, antivíricos, antibióticos, probióticos, curarizantes, entre outros, bem como produtos farmacêuticos tais como os antissépticos, desinfetantes ou detergentes.2
Alguns dos medicamentos reforçados faziam já parte do Formulário Hospitalar e tinham um uso bastante frequente, ao passo que outros foram adquiridos especialmente para combater esta pandemia, como o interferão alfa 2B, o lopinavir/ritonavir e o tocilizumab.3
Uma vez que todas as instituições de cuidados de saúde primários, secundários e até pequenas e grandes cadeias de retalho fizeram o mesmo reforço, os laboratórios e armazenistas entraram rapidamente em rutura de stock. Assim, os SF iniciaram uma pesquisa exaustiva, em conjunto com a Direção de Farmácia e com a Central de Negociação da José de Mello Saúde (JMS), na procura de fornecedores e de produtos alternativos viáveis que, após validação farmacêutica, se confirmasse que seriam substitutos apropriados.
Um exemplo de produto que entrou em rutura nos fornecedores habituais foi a solução antisséptica de base alcoólica (SABA), situação que foi rapidamente ultrapassada com a colaboração da Central de Negociação. Foi estabelecida uma rota diária de distribuição de SABA, onde o auxiliar se deslocava a todos os serviços e abastecia o stock de forma a não haver rutura desta solução antisséptica, usada para a correta higienização das mãos de todos os profissionais de saúde.
Para uma otimização do controlo de existências de todos os desinfetantes e antissépticos, foi criado um Excel com a listagem de todos os produtos, stock físico e pedidos de entrega pendentes, com atualização ao minuto, de forma a termos sempre a informação correta e podermos fazer uma melhor gestão.
Relativamente à distribuição de medicamentos em regime de dose unitária aos serviços, houve necessidade de reajustar o horário e a forma de entrega. A distribuição passou a ser feita sempre por dois membros da equipa que, devidamente equipados e formados, faziam a distribuição da medicação em sacos individualizados, sendo que a reposição de stock nos serviços era preparada na farmácia e entregue à porta do respetivo serviço, a um enfermeiro.
Para a segurança de toda a equipa e de forma a não comprometer o funcionamento dos SF, procedeu-se ao alargamento do horário e distribuição da equipa por turnos, minimizando desta forma o contacto entre todos.
Os SF funcionaram 24 horas por dia, 7 dias da semana desde março até maio, em turnos de 8 horas e com equipas de farmacêuticos e auxiliares.
Este novo horário de funcionamento trouxe também um aumento da qualidade do trabalho, através de uma maior taxa de validação das prescrições efetuadas, o que garantiu uma atualização permanente da medicação disponível para administração ao doente, levando a uma maior segurança e menor desperdício.
Para evitar desperdícios e acumulação de medicação, foi criado um documento partilhado com as equipas de enfermagem, onde era atualizada diariamente uma listagem dos medicamentos em excesso que não tinham necessidade de reposição.
Nos circuitos especiais de hemoderivados, estupefacientes e benzodiazepinas também foi sentida a necessidade de ajuste, de forma a evitar o uso de papel como possível fonte de contaminação.
Foi assim criado um modelo Excel do Anexo X de distribuição dos estupefacientes e benzodiazepinas, partilhado com todas as equipas que passaram a fazer o registo de administração ao doente informaticamente. Quando completo, o anexo era impresso, assinado pelo médico responsável do serviço e arquivado nos SF.
Em relação ao modelo de registo de hemoderivados, os quadros de registo do médico e farmacêutico eram primeiramente preenchidos e o duplicado diretamente entregue ao serviço acompanhado da quantidade total de hemoderivados prescritos ao doente.
Os espaços físicos e de circulação de todo hospital sofreram alterações, depois de um trabalho hercúleo por parte do Grupo de Coordenação Local do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos do Hospital CUF Infante Santo (PPCIRA HCIS), de forma a serem criadas zonas COVID+ e COVID-, para que não houvesse cruzamento de circuitos e fosse assegurada a segurança de todos os colaboradores e utilizadores do hospital.
Durante esta fase pandémica, todo o material de apoio, não essencial nos serviços, foi trazido de volta para a farmácia (zona verde ou COVID-) e foram ajustados e recriados stocks de acordo com as necessidades dos diferentes serviços.
Um excelente exemplo de trabalho multidisciplinar, foi a criação de um stock padronizado para as diferentes tipologias de serviços COVID+ (triagem, urgência e internamento), conjuntamente com a equipa de medicina de urgência, medicina interna, cuidados intensivos e enfermagem de todos os serviços, incluindo os blocos.
Uma vez que os serviços estavam em constante mudança de espaço físico, para recorrente desinfeção, criou-se um stock prático e fácil de transportar. Foram disponibilizados armários para arrumação dos sacos de medicação, de modo a evitar a contaminação de material e desperdício de stocks que não serviam a atual situação.
A receção de encomendas de medicamentos e produtos farmacêuticos sofreu reajustes na sua operacionalidade (segundo Circular N.º 001/CD/100.20.200 do INFARMED)4 - A entrega pelos distribuidores passou a ser feita à porta das instalações dos SF, com a respetiva desinfeção (quando aplicável) das embalagens de acondicionamento terciário e descarte das caixas de cartão de forma a minimizar o risco de contaminação. Foi-nos ainda cedida gentilmente uma expansão do espaço de armazenamento de excedentes de stock noutro serviço do Hospital (ginásio da fisioterapia).
Estando o bem-estar de todos em primeiro lugar, os SF reforçaram o stock de apósitos hidrocoloide extra-finos e distribuíram por todos os profissionais de saúde da linha da frente para proteção das agressões à pele causadas pelos equipamentos de proteção individual.
Desafios e intervenções de farmácia clínica
A farmácia clínica é parte integrante dos cuidados de excelência prestados ao doente.5,6
Sendo este um dogma na prática do Farmacêutico Clínico, tal foi bastante claro ao longo do atual contexto pandémico.
A validação da terapêutica, processo moroso e complexo, torna-se ainda mais desafiante num momento em que muitos dos medicamentos são usados em off-label,7-10 em que os dados analíticos ganham novas interpretações, em que a abordagem e reconciliação da terapêutica do domicílio continuam a ser bastante relevantes e a farmacocinética e farmacodinâmica são ciências que imperam na forma como se olha para cada prescrição, nunca esquecendo o suporte nutricional.11-13
Como qualquer processo robusto, também a validação terapêutica teve que se basear em momentos diários de pesquisa bibliográfica metódica e homogénea entre todos os elementos da equipa.
Assim foi criada uma lista de fontes bibliográficas que, diariamente, eram (e ainda são) visitadas por um elemento da equipa que partilhava qualquer informação relevante - Direção-Geral da Saúde, Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, Sociedade Espanhola de Farmácia Hospitalar, Organização Mundial da Saúde, Centers for Disease Control and Prevention, UpToDate, PubMed, The Lancet, The New England Journal of Medicine e British Medical Journal.
Com bases criadas, a equipa dos SF partiu para a reconciliação da terapêutica no momento da entrada do doente, independentemente da sua hora de admissão. Qualquer prescrição teve que ser abordada no contexto do doente que a recebe e, assim, foram consideradas: função renal, através do cálculo da clearance e consequente ajuste de dose; função hepática; função cardíaca; entre outras, ajustando o regime posológico a qualquer condição necessária.
Foram consideradas as interações entre medicamentos14,15 e foi considerada a carga anticolinérgica em doentes idosos.
Considerando que a hidroxicloroquina e a associação lopinavir/ritonavir foram medicamentos frequentemente prescritos ao longo deste período, foi necessário estudar novos protocolos clínicos, regimes posológicos e duração da terapêutica a adotar, com a ideia presente de que são medicamentos usados em off-label no tratamento de COVID-19.15,16
A associação lopinavir/ritonavir, como associação de inibidores da isoforma CYP3A do citocromo P450, é um medicamento potencialmente complexo em contexto de polimedicação, podendo comprometer a eficácia terapêutica de outros medicamentos ou potenciando a sua toxicidade.17
A hidroxicloroquina, parte de uma abordagem mais frequente à COVID-19, combinada com medicamentos como a azitromicina18 (antibacteriano), foi prova de que a terapêutica tem que ser personalizada.19 A dose de carga, em doentes com alto risco de prolongamento de intervalo QT, foi avaliada caso a caso, salvaguardando sempre a segurança do doente e contrabalançando a maximização da eficácia da terapêutica e a minimização da sua toxicidade.20
A validação da terapêutica expressou-se em centenas de intervenções devidamente comunicadas aos diversos profissionais de saúde, através da forma de pop-up no sistema informático e/ou chamada telefónica e/ou mensagem.
As intervenções predominantes (Fig. 1) focaram os ajustes de dose (58,9%) e a reconciliação terapêutica (20,9%).
Aquando da validação do doente COVID+ foi também necessária uma constante monitorização e acompanhamento da toxicidade e eficácia dos medicamentos, utilizados em regime off-label ou não. Para este efeito, procedeu-se à realização de uma avaliação crítica de diversos parâmetros analíticos tais como a quantidade relativa de proteína C-reativa, o nível das séries branca e vermelha, bem como função renal e hepática dos doentes. Esta avaliação permitiu uma melhor perceção da evolução dos mesmos e foi ponto de referência para muitas das intervenções farmacêuticas feitas no que concerne, por exemplo, ao ajuste de doses e introdução/suspensão de medicação prescrita ao doente no decorrer do seu internamento.21-23
Face à constante mudança no paradigma do tratamento do doente COVID+ e a todos os obstáculos que se impuserem na comunicação, os SF adaptaram as suas edições mensais de Farmacovigilância “Flash News” para “FarmaCOVID”.
As “Flash News FarmaCOVID” foram enviadas via e-mail às equipas médicas e de enfermagem, permitindo garantir um circuito do medicamento mais seguro e melhorando a comunicação entre os profissionais de saúde. O seu formato foi pensado para impressão A5, servindo como material de apoio “de bolso”.
Foram divulgadas duas edições, na primeira foram explanadas diversas interações medicamentosas dos potenciais medicamentos utilizados para tratamento da COVID-19, lopinavir/ritonavir e hidroxicloroquina priorizando as muito graves e as não permitidas.
Posteriormente, foi lançada a segunda edição focada na nutrição entérica na posição em decúbito ventral do doente COVID+ (Fig. 2). Esta edição teve em consideração a orientação divulgada pela DGS relativa à terapia nutricional em doentes COVID+ e internados em Unidades de Cuidados Intensivos.
Através das “Flash News”, agora adaptadas à pandemia atual, foi possível melhorar o processo de prescrição e potenciar o uso seguro do medicamento através da formação dos profissionais de saúde.
Emitiu-se também um comunicado interno, dirigido à classe médica, promovendo o uso de inaladores de dose calibrada para doentes internados, minimizando o risco de exposição das equipas ao vírus por criação de aerossóis (evitando nebulizações).
Perante a realidade e os desafios da pandemia surgiu a necessidade e a vontade de ter a farmácia sempre aberta e disponível para prestar o melhor serviço possível aos doentes e aos serviços. Esta adaptação do horário dos SF despoletou a necessidade de criação de ferramentas de forma a garantir a passagem de informação eficaz e clara entre os elementos da equipa. Deste modo, foi criado um Google Docs, um documento partilhado online, onde cada turno deixava mensagens para os turnos seguintes, nomeadamente informações sobre a validação farmacêutica. Esta ferramenta ajudou a garantir um follow-up das intervenções, melhorou substancialmente a comunicação entre a equipa e diminuiu a perda de informação relevante para o melhor tratamento possível dos doentes.
Os outros doentes: Oncologia
Os SF do Cluster Tejo prezam a residência do Farmacêutico Clínico nos vários serviços clínicos, e o Hospital de Dia Oncológico (HD) não é exceção, mesmo durante a pandemia COVID-19. Tendo em conta o contexto de fragilidade de um doente oncológico,24 delineou-se um circuito novo de modo a separar totalmente a circulação destes doentes.
A entrada no hospital foi realocada a uma nova localização, fizeram-se teleconsultas sempre que viável, a dispensa de medicação oral foi feita o mais perto do domicílio possível e houve cuidados pós-quimioterapia prestados no domicílio através da equipa de cuidados domiciliários. Alguns destes serviços continuam a ser prestados atualmente.
De acordo com a norma da DGS nº 9/2020 de 02/04/2020,25 à entrada da unidade, o doente oncológico foi sujeito a um rastreio de despiste à COVID-19 (medição da temperatura corporal e breve questionário sintomatológico). Posteriormente, todos os doentes que após consulta/teleconsulta prosseguissem para tratamento, foram submetidos a teste laboratorial para SARS-CoV-2 nas 48 horas antes da sessão terapêutica.
Relativamente à disposição da sala do HD, uma das medidas tomadas, sempre que possível, foi o espaçamento físico e temporal, desta forma tentou-se que existisse um cadeirão de intervalo entre cada doente. Relativamente à dispensa de medicação oncológica oral, segundo Circular Normativa Nº 005/CD/550.20.00126 de 07/04/2020 do INFARMED e o Despacho n.º 4270-C/202027 do Gabinete da Ministra da Saúde, os SF articularam-se internamente para proceder ao envio de medicação para um local mais próximo da zona de residência do doente. Na JMS, refletiu-se no recurso a outras unidades CUF de proximidade e entrega no domicílio em casos pontuais, em coordenação com a equipa de estafetas internos.
Quando um farmacêutico intermediário foi envolvido na dispensa, garantiu-se a informação por escrito necessária a transmitir ao doente - ex.: posologia, modo de administração, possíveis reações adversas, entre outras. Desta forma, foi possível proporcionar aos nossos doentes oncológicos a continuação dos tratamentos farmacológicos salvaguardando a segurança do doente e mantendo sempre o espírito de proximidade e de companheirismo.
Conclusão
O conhecimento sobre a doença respiratória causada por SARS-CoV-2 avança diariamente e não se sabe quanto tempo durará a pandemia.
Ainda que os tempos que decorrem sejam de incerteza e se preveja um futuro difícil, os SF desempenham um papel crucial para atenuar as consequências adversas da pandemia e são parte integrante de uma equipa multidisciplinar que trabalha em conjunto na prestação dos melhores cuidados de saúde para o doente.
Os tempos foram, e sempre serão, de dedicação incondicional e resiliência porque só assim faz sentido ser farmacêutico clínico hospitalar.