Introdução
A doença causada pelo coronavírus (COVID-19), inicialmente descrita em Wuhan, China, foi recentemente declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia global. A sua rápida disseminação pelo mundo ocidental tem vindo a gerar instabilidade em torno dos doentes crónicos, nomeadamente os oncológicos. A idade avançada e a presença de comorbilidades, características bem definidas na população portadora de tumores sólidos, foram interpretadas como fatores de risco para doença grave e mortalidade.1,2
A literatura relaciona o cancro ou o estado de imunodepressão que do seu tratamento advém, com o aumento do risco de infeção pelo COVID-19, assim como com o mau prognóstico e pior desfecho clínico.2-4 A síndrome respiratória aguda grave causada pelo coronavírus 2 (SARS-CoV-2) tem como apresentação clínica febre, tosse e dispneia rapidamente progressiva, na maioria dos casos. É importante termos em mente fatores importantes como a linfopenia e a rápida progressão para síndrome de desconforto respiratório agudo (ARDS), os quais implicam o internamento em cuidados intensivos.5 É necessário estar alerta com este tipo de doentes pois uma vez suspeitos, é necessário assegurar uma monitorização clínica apertada e aplicar medidas de suporte adequadas.
Relatamos um caso de sucesso de um doente de 77 anos com CaP metastático (estádio IV) admitido na UCI por infeção pelo COVID-19 complicado de ARDS moderada.
Caso clínico
Doente de 77 anos, residente em Lisboa, sem história de contactos prévios ou viagens recentes, desenvolve quadro febril 38,9ºC, astenia, odinofagia, tosse seca desde há 5 dias. Dado persistirem os sintomas por 3 dias, o doente dirigiu-se ao serviço de urgência. A radiografia do tórax (Fig. 1A) evidenciou opacidades pouco definidas não específicas e as análises laboratoriais confirmaram uma linfopenia ligeira (0,89 X 109/L) e proteína C reativa (PCR) de 97,9 mg/L. Foi assumida uma infeção do trato respiratório superior, e dada a estabilidade hemodinâmica do doente, ausência de dados epidemiológicos suspeitos para a recente COVID-19, o doente teve alta medicado com azitromicina e paracetamol.
Relativamente ao historial médico do doente, apresenta um adenocarcinoma da próstata Gleason 8, diagnosticado em 2001, inicialmente tratado com bloqueio androgénico. Em 2012 tornou-se metastático e resistente à castração, tendo iniciado abiraterona + prednisolona 10 mg em fevereiro de 2015, após progredir sob terapêutica com docetaxel. Os níveis de PSA (prostate specific antigen) permaneceram indetetáveis desde então. Concomitantemente, o doente tem história de carcinoma
neuroendócrino de grandes células do pulmão, estádio I, tendo sido submetido a lobectomia esquerda em março de 2014. Em follow-up encontram-se patologias como a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), GOLD A, sem exacerbações recentes; ex-fumador (60 unidades maço-ano) e uma história de tuberculose pulmonar durante a infância.
No dia 14 de março o doente retornou ao serviço de urgência por agravamento sintomático: dispneia e hipoxemia. Ainda assim encontrava-se apirético e hemodinamicamente estável. A radiografia do tórax apresentou múltiplos infiltrados periféricos nodulares e uma condensação inferior direita (Fig. 1B). Analiticamente foi
detetada leucocitose, neutrofilia e aumento da PCR. Foi colhida uma zaragatoa nasofaríngea que positivou para SARS-CoV-2.
Foi assumida uma infeção por COVID-19 associada a ARDS, com uma provável sobre infeção bacteriana. O doente foi entubado e transferido para a UCI (Fig. 1C), tendo iniciado piperacilina/tazobactam, hidroxicloroquina e lopinavir/ritonavir, empiricamente.
Durante os primeiros quatro dias foi necessário suporte de aminas, período no qual persistiu quadro febril, leucocitose, aumento dos níveis de PCR e pró-calcitonina. Foi então administrada azitromicina para além da terapêutica previamente mencionada. Quer as hemoculturas quer as culturas das secreções colhidas mantiveram-se estéreis desde a admissão do doente. Dada a persistência de uma baixa PaO2/FiO2, foram administrados diariamente 40 mg de metilprednisolona EV (via endovenosa) desde o dia 7 até ao dia 12, tendo-se feito o desmame progressivo para 10 mg a partir do dia 17. O doente cumpriu períodos de decúbito dorsal num total de 48 horas.
Desde então, a partir do décimo dia, houve franca melhoria do padrão respiratório e função hemodinâmica, que permitiram a extubação do doente (Fig. 2A).
O doente teve alta da UCI catorze dias após a admissão, tendo sido transferido para a enfermaria das doenças infectocontagiosas. A radiografia do tórax mostrou uma redução dos infiltrados pulmonares (Fig. 2B) assim como a zaragatoa nasofaríngea para SARS-CoV-2 negativou ao dia 19, após a admissão.
O doente foi considerado curado ao vigésimo quarto dia após a admissão, estando então apto para dar continuidade ao seu tratamento oncológico com abiraterona e
prednisolona.
O doente teve alta para uma unidade de reabilitação de forma a poder recuperar da miopatia relacionada com a estadia na UCI, estando, de igual forma, a recuperar a sua função respiratória, sem necessidade de oxigenoterapia suplementar.
Discussão
Neste momento e de acordo com as orientações das autoridades de saúde portuguesas e a definição de caso COVID-19, uma pessoa é considerada suspeita se qualquer umas das seguintes condições estiver presente: sintomas de infeção do trato respiratório (início de febre e tosse) e história de viagem para áreas de transmissão comunitária ativa; sintomas de infeção do trato respiratório e contacto com um caso confirmado nos 14 dias prévios ao início dos sintomas; ou infeção respiratória grave que requeira hospitalização imediata.6 Nenhum destes critérios se aplicou ao nosso caso, o que explica o facto de não ter sido feita a colheita com zaragatoa para pesquisa do SARS-CoV-2, ad initio.
O facto de apresentar um estado oncológico ativo, constitui um fator de risco para as complicações relacionadas com a infeção pelo COVID-19.2 Neste contexto, é importante perceber os fatores que influenciam os resultados terapêuticos neste tipo de doentes.
Um estudo retrospetivo recente de 28 doentes oncológicos portadores de COVID-19 de três hospitais em Wuhan, China, demonstrou que os sinais clínicos e sintomas são semelhantes aos da população em geral.7 Os sintomas típicos incluem febre, tosse seca e dispneia.8 A apresentação clínica da infeção pelo COVID-19 do nosso caso é desta forma, consistente com o da literatura existente.
A informação sobre o curso clínico da infeção pelo COVID-19 no doente oncológico é ainda escassa. Ainda que na Europa, a informação é pouca, tendo um estudo Italiano revelado que 20% de todas as mortes no país pelo COVID-19 foram em doentes considerados oncológicos ativos.9
Apesar de ser um estudo com uma pequena amostra, ser retrospetivo, não-randomizado e de natureza heterogénea, a série de Wuhan, China, é a evidência mais robusta do curso de infeção do COVID-19 em doentes oncológicos, até à data. Nesta série, mais de 50% dos doentes oncológicos apresentaram doença grave e 21% necessitou internamento na UCI.8
Apesar do nosso caso se referir a um doente oncológico estádio IV, foi necessária admissão numa UCI para ventilação mecânica por insuficiência respiratória hipoxémica. Esta decisão foi tomada com base na discussão multidisciplinar que levou em conta o facto de ser uma complicação potencialmente reversível, num doente com bom performance status prévio e com uma esperança média de vida maior que 1 ano.10,11
Tendo em conta a maior taxa de eventos adversos relatados em doentes oncológicos estádio IV portadores de COVID-19 e a presença de potenciais preditores para a deterioração clínica, tais como, a linfopenia, elevação PCR, múltiplos infiltrados nodulares pulmonares, este seria um curso clínico expectável.
Neste relato de caso, é evidente um estado prolongado de imunossupressão, quer relacionado com o cancro, quer induzido pelo próprio tratamento. A imunossupressão poderá ser um fator de risco para um pior prognóstico, permitindo uma maior carga viral e um risco aumentado de infeções secundárias.12 Por outro lado, o racional do uso de corticoides baseia-se na redução da resposta inflamatória nos pulmões do hospedeiro, que por sua vez pode causar lesão pulmonar aguda e ARDS.Um estudo retrospetivo com doentes infetados pelo COVID-19 na China, demonstrou que o uso de metilprednisolona está associado à redução da mortalidade em doentes com ARDS, embora possa ter existido viés residual que possa ter influenciado esses resultados.13
Apesar do doente apresentar múltiplos fatores de risco que poderiam potenciar um pior prognóstico face à infeção pelo COVID-19, verificou-se uma recuperação completa do mesmo após a sua admissão na UCI. O uso de hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir e azitromicina podem ter sido eficazes no tratamento do doente, apesar de não existir ainda evidência científica sólida que corrobore esta combinação.
Cloroquina e hidroxicloroquina foram descritas como sendo eficazes nos doentes chineses com SARS-CoV-2, apresentando a hidroxicloroquina uma maior atividade sustentada num perfil dose-dependente mais seguro.
Um pequeno estudo francês rapidamente veio confirmar a eficácia da hidroxicloroquina nos doentes com COVID-19 ao demonstrar uma redução significativa da carga viral, e um efeito sinérgico pela adição de azitromicina.12
A combinação oral de lopinavir/ritonavir também demonstrou ter atividade in vitro contra coronavírus recentes. A fase ideal para a sua administração parece ser durante o pico inicial de replicação viral (primeiros 7 a 10 dias), pois a sua administração tardia revelou não ter qualquer tipo de efeito nos resultados finais.12 Outros antivirais como o remdesivir mostraram resultados ainda mais promissores.
Este caso sublinha a importância de séries de casos e ensaios clínicos para melhor compreensão da infeção do SARS-CoV-2 em doentes oncológicos.
Conclusão
Apesar da informação existente ser limitada e sugerir uma maior agressividade da infeção pelo COVID-19 em doentes com patologias médicas subjacentes como o estado de cancro ativo, o risco global pode ser influenciado pelo tipo de cancro, controlo da doença, tratamento subjacente, o tempo desde o último tratamento, idade do doente e comorbilidades. As decisões terapêuticas em doentes oncológicos podem ser desafiadoras e o nosso relato de caso sublinha como o internamento numa UCI deve ser feita caso a caso.