Introdução
A 12 de dezembro de 2019, em Wuhan, na China, as autoridades de saúde locais começaram a investigar um surto de pneumonia provavelmente viral, mas de agente específico desconhecido. A identificação de um local de convívio comum à maioria dos infetados - um mercado de animais vivos da cidade de Wuhan - levantou a suspeita de doença zoonótica semelhante a outras epidemias com a síndrome respiratória aguda grave de 2002 (SARS) e a síndrome respiratória do Médio Oriente de 2012 (MERS).
Desde então, assistimos à evolução de uma pandemia à escala mundial, com significativo impacto social, económico e nos sistemas de saúde.1 Confirmou-se que uma nova estirpe de coronavírus (SARS-CoV-2) era o agente biológico envolvido, e a doença passou a designar-se por COVID-19.
Devido ao envolvimento predominante do sistema respiratório nesta doença, a avaliação radiológica, como método de diagnóstico não invasivo, foi assumindo um papel fulcral na abordagem inicial e no seguimento destes doentes.2
Assim, através da apresentação de dois casos clínicos, este artigo pretende rever e discutir o papel da Radiologia na COVID-19. No enquadramento clínico de cada caso, os achados em tomografia computorizada (TC) de tórax serão discutidos.
Casos clínicos
Caso 1
Uma doente do sexo feminino, de 52 anos, recorre ao Atendimento Permanente (AP) com quadro de 13 dias de evolução de tosse seca, cefaleias e náuseas, sem febre. Como contacto epidemiológico relevante, apenas a assinalar a filha, com quem vive, igualmente com queixas de tosse. Com antecedentes pessoais de dislipidemia e HTA, destaca-se, na medicação habitual, o atenolol. Apresentava-se, à observação, com bom estado geral, eupneica e com saturação periférica de O2 de 98%. À auscultação pulmonar, sobressaía murmúrio vesicular rude, essencialmente à direita, sem sinais de broncospasmo. Analiticamente, destacavam-se leucócitos de 7900 x 103/μL (64% de neutrófilos e 26% de linfócitos), D-dímeros ligeiramente elevados (627 ng/mL), LDH de 240 U/L, PCR de 5,4 mg/dL e antigenúrias negativas para S. pneumoniae e Legionella. Foi efetuada gasimetria em ar ambiente, com critérios de alcalose respiratória e hipoxemia: pH 7,49; pCO2 31 mmHg; pO2 60 mmHg; HCO3 - 23 mmHg; Sat.O2 93%. Realiza-se zaragatoa nasal para pesquisa de SARS-CoV-2.
Foi realizada TC de tórax (Fig. 1), que revelou múltiplas opacidades parenquimatosas em vidro despolido, essencialmente periféricas, em número superior a 3 e a mais expressiva com 3 cm de diâmetro máximo. Coexistiam áreas de padrão em calçada, com vidro despolido associado a espessamento de septos inter e intra-lobulares. De acordo com os critérios da British Society of Thoracic Imaging (BSTI), o diagnóstico de pneumonia por SARS-CoV-2 foi considerado provável, com um nível de gravidade entre moderado e severo.
É então internada com o diagnóstico presuntivo de COVID-19 (posteriormente confirmada por teste de reação em cadeia de transcriptase reversa - RT-PCR positiva), complicada de insuficiência respiratória de tipo 1, em enfermaria de Medicina dedicada. Inicia tratamento com hidroxicloroquina 400 mg bid no primeiro dia e 200 mg bid nos 7 dias seguintes e azitromicina 500 mg no primeiro dia e 250 mg/dia nos 4 dias seguintes. Clinicamente, verificou-se uma evolução favorável, com resolução sintomática precoce, apirexia e sem necessidade de oxigenoterapia a partir do primeiro dia de internamento (O2 a 2 L/min por óculos nasais).
Em TC de reavaliação (Fig. 2), os achados radiológicos acompanharam a evolução clínica, tendo-se verificado redução numérica e dimensional das opacidades parenquimatosas.
No entanto, notam-se aspetos de pneumonia organizativa, com opacidades lineares subpleurais, demonstrando o habitual padrão evolutivo de resolução do processo infecioso.
Por ausência de condições familiares de isolamento, manteve-se o internamento até negativação laboratorial confirmada. Após três testes de cura por zaragatoa nasal positivos, foram realizadas serologias que confirmaram ausência de IgM e positividade para IgG.
Caso 2
Um doente do sexo masculino, de 39 anos, recorre ao AP com quadro de febre e contexto epidemiológico relevante (contacto com os pais, ambos positivos para SARS-CoV-2). Como antecedentes pessoais relevantes, destacavam-se tabagismo e seminoma testicular submetido a orquidectomia e quimioterapia. Com RT-PCR inicialmente negativa em zaragatoa nasal, é medicado com azitromicina 500 mg durante 6 dias, sem melhoria significativa, pelo que regressa ao AP por febre alta (TT 39,0ºC), mialgias e dorsalgia, sem dispneia ou tosse. À observação, apresentava-se pálido, febril (TT 38,6ºC), eupneico, com saturação periférica de O2 de 98% e auscultação pulmonar normal. Analiticamente, destacavam-se leucócitos de 4700 x 103/μL (58,3% de neutrófilos e 30,8% de linfócitos), D-dímeros de 253,2 ng/mL, LDH de 146 U/L, PCR de 2 mg/dL e antigenúrias negativas para S. pneumoniae e Legionella. Realiza TC de tórax (Fig. 3), que revela achados suspeitos de pneumonia por SARS-CoV-2, de grau moderado (opacidades nodulariformes em vidro despolido, de predomínio periférico e inferior, algumas com “crazy-paving”), e repete a zaragatoa nasal, desta vez com RT-PCR positiva. Dada a estabilidade clínica e a ausência de dispneia ou toracalgia, tem alta com indicação para manter medidas de isolamento social e tratamento sintomático, com resolução dos sintomas.
Discussão
A deteção precoce da infeção causada pelo SARS-CoV-2 tem sido atrasada pela necessidade de produção em massa e disseminação generalizada de testes de reação em cadeia de transcriptase reversa (RT-PCR). Para além disto, a sensibilidade do teste na prática clínica pode ser afetada por várias variáveis, resultando em falsos negativos frequentes reportados em doentes com achados TC compatíveis com COVID-19, que acabam por testar positivo para o teste.3,4 Desta forma, mesmo em casos com resultado de RT-PCR negativo, num ambiente de recursos limitados, os exames radiológicos estão indicados para triagem médica de doentes com suspeita de COVID-19, que apresentem manifestações clínicas moderadas a graves e uma probabilidade pré-teste elevada para a doença.5,6 Os exames radiológicos, desempenham assim uma função essencial na triagem e diagnóstico presuntivo, em determinados contextos.
Os casos clínicos apresentados demonstram a utilidade dos estudos TC no auxílio diagnóstico, nos quais os achados radiológicos, no contexto pandémico SARS-CoV-2, foram essenciais para o diagnóstico presuntivo desta infeção viral.
Os TC da pneumonia COVID-19 mostram opacidades em vidro despolido (OVD) (88%), sejam OVD isoladas ou associadas a espessamento dos septos interlobulares e/ou consolidações.7 Outros achados compreendem bronquiectasias, espessamento pleural, padrão em calçada e pneumonia organizativa.7 Estes achados são frequentemente bilaterais (87,5%), periféricos (76%) e multilobar (78,8%).7
No seu conjunto, estas características das imagens TC encontram-se presentes nos estudos TC dos casos apresentados, demonstrando a utilidade dos mesmos no diagnóstico presuntivo de pneumonia a SARS-CoV-2.
Tal como acontece nestes casos, a ausência de derrame pleural e de adenopatias é característico desta patologia.
Conclusão
No contexto pandémico e de acesso limitado aos meios de diagnóstico para o SARS-CoV-2, o papel da Radiologia, nomeadamente dos estudos TC do tórax, é fundamental para triar e estabelecer o diagnóstico, tal como estes dois casos o demonstram.
É importante que todos os médicos estejam conscientes do papel da Radiologia, nomeadamente dos estudos TC para o diagnóstico da pneumonia SARS-CoV-2. Para os radiologistas é fundamental saberem reconhecer os padrões típicos desta patologia.