Introdução
O surgimento do vírus da síndrome respiratória aguda grave - coronavírus 2 (SARS-CoV-2), responsável pela doença COVID-19, conduziu a um rápido desenvolvimento de métodos moleculares e serológicos para identificação de infeções por SARS-CoV-2.1
O teste molecular de amostras do trato respiratório para detetar RNA de SARS-CoV-2 é o teste de diagnóstico standard para o diagnóstico de COVID-19.1,2 Para além dos testes moleculares, há um interesse crescente pelo uso de exames serológicos para detetar anticorpos contra SARS-CoV-2, mas existe, ainda, evidência limitada sobre os testes serológicos atualmente disponíveis.1
Os testes que avaliam a resposta imune, ao contrário dos testes moleculares, são marcadores indiretos de infeção.1,3 De facto, os testes serológicos não são informativos no diagnóstico precoce de infeções agudas víricas do trato respiratório, dado o início da clínica da infeção ocorrer antes do desenvolvimento de uma resposta imune.(1)
Contudo, os testes moleculares que detetam RNA viral também podem apresentar resultados falso-negativos.4
O método de PCR pode não detetar o vírus no estádio muito inicial da infeção ou no estádio tardio quando a carga viral é muito baixa.4-7 Embora a sua sensibilidade analítica seja geralmente alta, a deteção depende de vários fatores, como o tempo de infeção à data da colheita, tipo de amostra, técnica de colheita, qualidade da amostra, condições de transporte e armazenamento, kits de deteção e mutações na sequência alvo do gene.4-6
Os testes serológicos são, comparativamente com os testes moleculares, mais fáceis de realizar, exigindo menos equipamentos, e são geralmente mais rápidos, com resultados em apenas 15-20 minutos, em comparação com a deteção de ácidos nucleicos.4 Existem diversos equipamentos serológicos aprovados para deteção de IgG e IgM de SARS-CoV-2. A sua indicação clínica é a de complementaridade para o diagnóstico e não para o rastreio geral da infeção, devido à especificidade e sensibilidade muito variável dos mesmos.8
Apesar de os resultados serológicos, por si só, não poderem confirmar ou excluir o diagnóstico ou informar o status da infeção e não estarem recomendados para diagnóstico,4 dados chineses mostraram que a taxa de deteção positiva aumentou significativamente quando a PCR é usada em combinação com o teste IgM ELISA (98,6%) em comparação com a PCR isolada (51,9%). Estes resultados sugerem que a deteção de anticorpos pode melhorar a exatidão do diagnóstico de COVID-19.9 Estudos recentes avaliaram o papel potencial dos anticorpos IgM para o SARS-CoV-2 como marcador de infeção recente.1 Guo et al,9 através de um teste de ELISA desenvolvido com antigénio recombinante SARS-CoV-2, demonstraram que os anticorpos IgM eram detetáveis em 85% dos doentes com diagnóstico confirmado de COVID-19 entre o primeiro e o sétimo dia após o início dos sintomas.9,10 Comparado com outras classes de anticorpos, o IgG é um anticorpo de maior duração e que está associado à atividade de neutralização viral, o que provavelmente é essencial para a recuperação da COVID-19.1 Dados preliminares sugerem que o desenvolvimento de IgG contra diferentes antigénios SARS-CoV-2 se torna detetável em doentes imunocompetentes após, pelo menos, 8 dias de sintomas, com mais de 90% dos indivíduos seropositivos após 14º dia de doença, embora alguns indivíduos demorem mais tempo a se seroconverter, dependendo do estado imunológico, ou podem até nunca poder seroconverter-se se encontrarem significativamente imunossuprimidos.1,10
Neste sentido, os autores apresentam dois casos clínicos em que descrevem o papel desempenhado pelo teste serológico como complementar no diagnóstico da infeção por SARS-CoV-2.
Casos clínicos
Caso clínico 1
Homem de 57 anos, ex-fumador, com antecedentes de carcinoma de pequenas células do pulmão estádio IV sob quimioterapia, apresenta-se com um quadro com duas semanas de evolução de dispneia, tosse seca e astenia. Objetivamente não apresentava alterações relevantes para além de insuficiência respiratória hipoxémica ligeira. A tomografia computorizada (TC) de tórax evidenciava na base pulmonar esquerda algumas áreas de densificação em vidro despolido, não observáveis em exame prévio, que poderiam ser enquadráveis na infeção por COVID-19. Analiticamente apresentava leucocitose (17 900 leucócitos/uL), com neutrofilia relativa (96%) e linfopenia (770 linfócitos/uL); elevação da PCR (8,41 0 mg/dL), VS aumentada (77 mm/h); ferritina aumentada (490 ng/mL); d-dímeros elevados (1099 ng/mL); DHL aumentada (262 mg/dL) e lesão renal aguda ligeira. Foi feita pesquisa de PCR de SARS-CoV-2 em amostra de zaragatoa nasofaríngea, sendo que o resultado foi negativo. Dada a elevada suspeição clínica e pelo facto de o doente se encontrar no 14º dia de sintomas, procedeu-se à realização do teste serológico rápido que foi positivo para IgM, mantendo-se tratamento dirigido para COVID-19, assim como as respetivas medidas de isolamento. Entretanto foram feitas mais duas colheitas de zaragatoa da nasofaringe, sendo que, apenas à terceira pesquisa, já em terceiro dia de internamento, foi confirmado por PCR o diagnóstico de infeção por SARS-CoV-2. O doente cumpriu 8 dias de hidroxocloroquina, 5 dias de azitromicina e 7 dias de cefriaxone (introduzido pela suspeita de sobreinfeção bacteriana, sustentada pelo valor de procalcitonina elevado), com evolução clínica e analítica favoráveis, com resolução da insuficiência respiratória, sendo que à data da alta apresentava confirmação de cura, com duas pesquisas de RNA de SARS-CoV-2 negativas.
Caso clínico 2
Homem de 61 anos, sem antecedentes patológicos conhecidos, apresenta-se com quadro com 7 dias de evolução e de agravamento progressivo de febre, dispneia, tosse produtiva e mialgias. Objetivamente apresentava sinais de dificuldade respiratória e insuficiência respiratória hipoxémica grave, com sons respiratórios diminuídos no hemitórax esquerdo à auscultação pulmonar, sem outras alterações de relevo. A radiografia ao tórax exibia hipotransparências dispersas bilateralmente.
Analiticamente apresentava leucocitose ligeira (12 600 leucócitos/uL), com discreta neutrofilia relativa (80%), sem linfopenia absoluta significativa (linfócitos 1800/uL); PCR aumentada (16,11 mg/dL); DHL aumentada (632 U/L) e d-dímeros elevados (3439,76 ng/mL). As antigenúrias para pesquisa de Legionella e Pneumococcus foram negativas, assim como a PCR para pesquisa de vírus Influenza A e B e H1N1, bem como as hemoculturas que não apresentaram crescimento bacteriano. Foi feita pesquisa de PCR de SARS-CoV-2 em amostra de zaragatoa nasofaríngea, sendo que o resultado foi negativo. Dada a elevada suspeição clínica e pelo facto de o doente se encontrar no oitavo dia de sintomas, procedeu-se à realização do teste serológico rápido que foi positivo para IgM e IgG, mantendo-se tratamento dirigido para COVID-19, assim como as respetivas medidas de isolamento. Entretanto foi realizada nova colheita de zaragatoa da nasofaringe para teste molecular, que confirmou o diagnóstico de infeção por SARS-CoV-2.
O doente permaneceu internado na unidade de cuidados intensivos, sendo que o quadro clínico acabou por evoluir desfavoravelmente, com agravamento rápido da insuficiência respiratória e necessidade de ventilação mecânica, inicialmente não invasiva e posteriormente invasiva, assim como o desenvolvimento de um estado hiperinflamatório agudo, com agravamento exponencial dos biomarcadores inflamatórios, tendo acabado o doente por falecer ao quarto dia de internamento.
Discussão
Nos casos clínicos descritos, os sinais e sintomas clínicos e os achados radiológicos típicos da infeção por SARS-CoV-2 foram confirmados primeiramente pelo teste serológico, seguido pelo teste molecular. Apresenta-se, assim, uma evidência da utilidade clínica dos testes serológicos rápidos, pois os resultados positivos podem levar ao diagnóstico de casos ativos de COVID-19, que apresentam teste molecular inicial negativo. De facto, os testes serológicos para SARS-CoV-2 podem ser particularmente úteis quando uma serologia positiva é acompanhada por testes de ácido nucleico repetidamente negativos no cenário de uma apresentação clínica altamente sugestiva, sendo que a serologia pode fornecer a base para terapias específicas para a infeção por COVID-19 e para determinar as medidas de controlo de infeção necessárias a estes doentes.