Introdução
A pandemia da COVID-19 (coronavirus disease 19), infeção causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2), veio mudar o paradigma da medicina de uma forma global neste início de século.1 Acredita-se que a porta de entrada à maquinaria intracelular humana é fundamentalmente o recetor ACE-2 (angiotensin converting enzime 2), expresso em vários tecidos, mas maioritariamente nas células do epitélio respiratório.2
Os dermatologistas estiveram na linha da frente do conhecimento médico numa das grandes pandemias do século XX, tendo sido pioneiros no reconhecimento e a caracterização das manifestações cutâneas da infeção pelo VIH.3 Mais uma vez, dada a acessibilidade e a relevância clínica das manifestações cutâneas para qualquer doença, a Dermatologia é mais uma vez uma especialidade chave nesta nova infeção viral. Tal como em muitas outras infeções virais, os doentes com COVID-19 apresentam em qualquer idade sintomatologia cutânea que tem ganho a atenção da comunidade científica nos últimos meses.4 Até ao presente momento, não foram descritos achados dermatopatológicos específicos da COVID-19 em doentes autopsiados, pese embora uma grande miríade de dermatoses não específicas já tenha sido descrita nestes doentes.5
Descrição
Nas primeiras semanas da pandemia, surgiram na literatura científica algumas descrições de manifestações cutâneas em doentes com COVID-19 que careciam de fotografias clínicas de qualidade e de caracterização histopatológica. Ainda assim, autores provenientes de diferentes partes do mundo foram publicando casos, documentando manifestações cutâneas em doentes com infeção confirmada laboratorialmente.6,7 Passados alguns meses desde o início da pandemia, o panorama mudou substancialmente havendo mais e melhor documentação sobre este tema. O presente manuscrito pretende sistematizar as manifestações cutâneas mais relevantes descritas na literatura científica em doentes infetados pelo SARS-CoV-2 até maio de 2020.
Lesões semelhantes a perniose nos dedos das mãos e dos pés
As lesões semelhantes a perniose (ou “frieiras”) têm sido descritas de forma frequente em crianças e adolescentes.8,9 Clinicamente caracterizam-se como máculas eritemato-violáceas ou acastanhadas em localizações acrais, tipicamente dedos das mãos ou dedos dos pés, podendo coexistir com edema, necrose cutânea punctiforme e mesmo bolhas hemorrágicas. De uma forma geral, são pouco sintomáticas, com dor ou prurido ligeiros em alguns doentes.9 O prognóstico é favorável, com resolução completa na maioria dos casos.10,11 Alguns autores especulam sobre a relação temporal entre a infeção e o surgimento das lesões (paralela? Pós-COVID?) e inclusivamente sobre a especificidade desta manifestação. Aparentemente, tem havido um elevado número de casos de lesões semelhantes a perniose para a época do ano, e em alguns relatos de casos apenas foi possível confirmar o diagnóstico da COVID-19 em poucos destes doentes, levando alguns autores a possivelmente atribuir este excesso de casos ao confinamento e menor mobilização e não propriamente à infeção.9,12,13 Este quadro clínico parece surgir em doentes jovens com COVID-19 ligeira e com bom prognóstico.14
Isquémia acral
Quadros de infeção grave pelo SARS-CoV-2 podem caraterizar-se por um estado de hipercoagulabilidade, com achados laboratoriais de elevação de D-dímeros, fibrinogénio e produtos de degradação de fibrinogénio. Estes doentes críticos podem apresentar isquémia acral, com cianose dos dedos das mãos e pés, bem como gangrena seca e bolhas.15-17 Todos os casos descritos com estas manifestações extremas surgiram em doentes com manifestações pulmonares graves de COVID-19.
Dermatose petequial ou purpúrica
Têm sido reportados alguns casos de petéquias ou máculas purpúricas disseminadas em doentes com COVID-19, havendo casos com e sem vasculopatia trombótica documentada.18-20 Globalmente, a dermatose petequial/purpúrica parece ser um sinal de COVID-19 ligeira e com prognóstico favorável, classicamente sem atingimento de mucosas ou palmo-plantar.14
Dada a existência de recetores ACE-2 no endotélio vascular, especula-se sobre a possível invasão direta destas células pelo vírus, embora até ao momento tenha sido
escassamente documentada a presença de vírus ativo em células endoteliais.2
Dermatose vesicular
A presença de vesículas disseminadas foi descrita num relato de casos em Espanha. Os autores, dermatologistas, caraterizaram a dermatose como sendo monomorfa, observando-se vesículas predominantemente no tronco, semelhantes às presentes em infeções herpéticas como a varicela.15
Urticária aguda
A urticária aguda é uma dermatose reativa com duração inferior a 6 semanas, caracterizada clinicamente por prurido e pápulas e/ou placas eritematosas e edematosas evanescentes, com ou sem angioedema, que surge de forma frequente no contexto de infeções virais.19
É, portanto, natural que se tenham observado vários casos de urticária aguda, habitualmente como manifestação inicial da infeção pelo SARS-CoV-2.14,20-24 A presença de urticária aguda em doente com febre é altamente suspeita de etiologia viral e, no contexto pandémico, poderá indiciar COVID-19.14
Exantema maculopapular ou morbiliforme
Os exantemas maculopapulares são também manifestações cutâneas frequentes das infeções virais, envolvendo mais habitualmente o tronco e a raiz dos membros e poupando a face e as extremidades.19 A maioria dos casos descritos ocorreu em doentes adultos, resolvendo em alguns dias.17,25-28 Alguns autores especulam sob re a sua associação a prognóstico mais reservado pela COVID-19.14
Pitiríase rosada
A pitiríase rosada é uma dermatose eritematodescamativa muito frequente em crianças, adolescentes e adultos jovens, especulando-se sobre a sua relação com infeções virais.19 Existem também casos publicados de pitiríase rosada em doentes com COVID-19.29,30
Doença de Kawasaki
A doença de Kawasaki é uma vasculite de médios vasos e a primeira causa de cardiopatia adquirida em idade pediátrica. O diagnóstico é estabelecido com base em alguns critérios clínicos, sendo vários deles dermatológicos, nomeadamente alterações mucosas (como queilite, “língua em morango”, eritema difuso da mucosa oral, fissuração dos lábios), dermatose polimorfa (maculopapular, eritrodérmica, urticariforme, semelhante a eritema multiforme) e alterações acrais (como eritema e edema das mãos e/ou pés bem como descamação periungueal).19
A etiologia da doença de Kawasaki está ainda mal elucidada, admitindo-se uma relação causal com infeção por vários vírus como adenovírus, enterovírus, rinovírus ou coronavírus.31 Após a publicação de Verdoni et al alertando para um aumento do número de diagnósticos desta entidade em Bérgamo no decorrer do pico pandémico, a comunidade internacional focou a sua atenção na possível relação entre a infeção por SARS-CoV-2 e a doença de Kawasaki.32 Entretanto, outros casos têm sido publicados, reforçando a relação entre a COVID-19 e uma síndrome semelhante à de Kawasaki.33-35 Dado a potencial gravidade e sequelas decorrentes da doença de Kawasaki, o diagnóstico atempado e início rápido de terapêutica apropriada é crucial, sendo a suspeita clínica e o exame dermatológico essenciais.
Conclusão
As manifestações cutâneas descritas em doentes com COVID-19 são variadas e clinicamente polimorfas. O seu reconhecimento atempado reveste-se de elevado interesse para o clínico dada a frequência elevada de doentes assintomáticos ou pauci-sintomáticos, permitindo o diagnóstico precoce e adequado isolamento social. A abordagem multidisciplinar deve ser privilegiada nestes casos, sendo naturalmente o dermatologista o médico mais preparado para a correta avaliação do doente com manifestações cutâneas.