Introdução
A vitamina D é um nutriente essencial cujo papel na saúde óssea e homeostasia do cálcio é de extrema importância.
A associação entre a deficiência grave de vitamina D e doença é bem conhecida, nomeadamente o raquitismo em lactentes e crianças pequenas e osteomalácia ou hipocalcémia com consequente risco de tetania ou convulsões em todas as idades.1-5
Estas complicações são associadas sobretudo a populações desnutridas por défice de recursos.
Recentemente tem ganho relevância a preocupação com défices menos severos de vitamina D, não sendo clara a relevância ou significado clínico da deficiência ligeira ou moderada. Diversos estudos têm revelado elevada prevalência de valores subótimos de vitamina D em todo o mundo, sobretudo entre consumidores de “fast food”, pessoas de pele escura, obesos, pessoas com baixa exposição solar ou utilizadores de protetor solar e em localizações afastadas da linha do equador.6 A obesidade, terapêutica com anti-convulsivantes, glucocorticoides e antirretrovirais são também fatores de risco descritos.7
Evidência recente sugere que deficiência subclínica em vitamina D, durante a adolescência, pode afetar a formação óssea, reduzindo o pico de massa óssea e predispondo para osteoporose na idade adulta. Suplementação com esta vitamina em adolescentes com défice pode melhorar a sua densidade óssea.8-10
A principal fonte de vitamina D é a síntese cutânea através de um processo iniciado pela radiação solar. A utilização de protetor solar impede este processo.11 Esta capacidade de produzir vitamina D varia com diversos fatores, nomeadamente, o tipo de pele, a altura do ano e a localização geográfica.12 A dieta apenas consegue fornecer pequenas quantidades desta vitamina essencial, sendo as principais fontes os peixes ricos em gordura e o ovo.
Existem atualmente diversos alimentos fortificados com vitamina D, mas esta vitamina é lipossolúvel, o que coloca dificuldades na fortificação em quantidades elevadas.
Existe atualmente intenso debate acerca do valor sérico de 25-hidroxivitamina D (25(OH)D) que traduz um adequado status vitamínico, mas estudos relevantes referem que valores superiores a 32 ng/mL são necessários para garantir uma absorção de cálcio eficiente.13
Para atingir este status seria necessário uma ingestão diária de cerca de 1063 IU. Vários estudos têm demonstrado elevada prevalência de insuficiência de vitamina D em sociedades semelhantes à portuguesa. Nos Estados Unidos, a prevalência de deficiência e insuficiência nesta vitamina é aproximadamente 15%, em idade pediátrica.14-16 Em Portugal há poucos estudos em adolescentes. Dois estudos portugueses recentes, com adolescentes, revelaram concentrações médias de 25(OH)D de cerca de 16,5 ng/mL.17,18
O significado clínico destes valores e suas consequências são ainda incertos. Estudos epidemiológicos têm sugerido associação a doenças autoimunes como esclerose múltipla,19 diabetes tipo 1,20 artrite reumatoide,21 doença inflamatória intestinal,22 alterações do humor,23,24 doença cardiovascular18,25 e doenças oncológicas como cancro do pâncreas, mama e cólon.26-30 Contudo, a relação causal destas associações bem como o seu mecanismo não são conhecidos.
Existe divergência na literatura e entre recomendações sobre qual o valor ideal desta vitamina. A Society for Adolescente Health and Medicine (SAHM) define31 deficiência valores de 25(OH)D inferiores a 20 ng/mL e valores ótimos acima de 30 ng/mL, mas outras organizações como a Pediatric Endocrine Society recomendam que estes limiares se situem em 12 e 20 ng/mL respetivamente.32 As primeiras recomendações baseiam-se em estudos que relacionam níveis de 25(OH)D com níveis de hormona paratiroideia, a absorção de cálcio e densidade óssea, enquanto as segundas se baseiam em estudos radiológicos da densidade óssea e no facto de haver baixa evidência em crianças que valores superiores a 20 ng/mL sejam necessários para otimizar absorção do cálcio e densidade óssea,7 embora existam estudos em adultos que mostram esta necessidade. Alguns autores referem que valores superiores a 30 ng/mL são necessários para garantir as ações extra-esqueléticas.33
A SAHM recomenda suplementação com vitamina D a todos os adolescentes (600 UI a adolescentes saudáveis e 1000 UI aos que têm fatores de risco para défice) e o doseamento de 25(OH)D a adolescentes em risco. O nosso objetivo foi determinar status de vitamina D nos adolescentes utentes do nosso hospital, estimar prevalência de défice e insuficiência e tentar identificar fatores de risco para défice e insuficiência.
Metodologia
Este estudo decorreu entre janeiro de 2016 e maio de 2017 e entre janeiro e dezembro de 2018. Procedeu-se a determinação dos níveis sérios de 25(OH)D em adolescentes entre 10 e 18 anos de idade, utentes da consultaexterna do Hospital CUF Descobertas e aplicou-se um questionário que avalia variáveis de caracterização demográfica, dados antropométricos, fotótipo, estádio de desenvolvimento pubertário, variáveis relacionadas com hábitos de vida que podem interferir com status da vitamina D nomeadamente, tipo de dieta, exposição solar, utilização de protetor solar, utilização de chapéu, meio de transporte de e para escola, prática desportiva e doenças associadas. Este questionário foi elaborado pelos autores deste trabalho.
Apenas foram admitidos no estudo adolescentes com determinação de 25(OH)D efetuada no laboratório do nosso hospital para garantirmos a mesma técnica laboratorial.
Procedeu-se a análise estatística descritiva da amostra e procurou-se relação estatística entre as diferentes variáveis e os valores de 25(OH)D. A análise estatística foi elaborada utilizando o programa “R”, com recurso a teste Chi-squared ou teste Mann-Whitney e Kruskal-wallis com um nível de significância de 5%.
Considerou-se défice de 25(OH)D valores inferiores a 20 e insuficiência valores inferiores a 30, de acordo com recomendações SAHM.
Resultados
Foram incluídos neste estudo 320 adolescentes, a maioria do género feminino (51,6% - 165). A grande maioria dos adolescentes (96,6% - 309) residia em Lisboa e Vale do Tejo. As idades estiveram compreendidas entre 10 e 18 anos, com uma média de 13,6 ± 2,1 anos. A maioria dos adolescentes (54,0% - 173) estava na fase média da adolescência, 35,6% (113) na fase precoce e 10,3% (34) na fase tardia da adolescência.
À data da consulta, o valor do índice de massa corporal (IMC) variou entre 14,1 - 34,8 kg/m2 (média de 20,6 ±3,6 kg/m2). A média do valor do IMC foi idêntica em ambos os géneros (20,6 no género masculino e 20,5 no feminino). A classificação em baixo peso, excesso de peso e obesidade foi semelhante em ambos os géneros.
Os doseamentos séricos de vitamina D foram realizados ao longo dos quatro trimestres: 32,9% no quarto, 27,3% no terceiro, 21,9% no primeiro e 17,9% no segundo trimestre. Os valores de vitamina D variaram entre 6,4 e 61,4 ng/mL, com média de 26,4 ± 8,5 ng/mL e foram considerados ótimos em 30,3% dos doseamentos, insuficientes em 49,1% e deficientes em 20,6% dos doseamentos.
A média dos valores de vitamina D foi semelhante no género feminino (25,7 ± 7,5 ng/mL) e no género masculino (27,0 ± 9,3 ng/mL). Contudo, no género feminino 25,2% das adolescentes apresentaram valores ótimos de vitamina D, 56,1% apresentaram insuficiência e 18,7% deficiência de vitamina D, enquanto no género masculino 35,2% dos adolescentes apresentaram valores ótimos de vitamina D, 42,4% apresentaram insuficiência e 22,4% deficiência de vitamina D. Esta diferença entre os géneros foi estatisticamente significativa (p= 0,0034). A média dos valores de vitamina D foi idêntica nas diferentes fases de adolescência: 25,9 ±7,7 ng/mL na fase precoce, 26,9 ± 8,8 ng/mL na fase intermédia e 25,0 ± 9,3 ng/mL na fase tardia da adolescência (Fig. 1).
Não foi encontrada associação estatisticamente significativa entre valores inferiores de vitamina D e IMC mais elevado. Cerca de 18,5% dos valores de deficiência, 10% dos valores de insuficiência e 9% dos valores ótimos de vitamina D corresponderam a adolescentes obesos. Apesar da média dos valores de vitamina D nos adolescentes obesos (23,2 ng/mL no género feminino e 23,4 ng/mL no género masculino) ser inferior à dos adolescentes normoponderais (25,4 ng/mL no género feminino e 27,7 ng/mL no género masculino), a diferença não foi estatisticamente significativa (p=0,12).
As categorias de valores de vitamina D obtidas por trimestre foram diferentes, a maioria dos valores ótimos de vitamina D foram no terceiro trimestre (58,8%), insuficiência foi mais frequente no quarto trimestre (39,7%) e deficiência mais frequente no primeiro trimestre (40,9%). Esta diferença foi estatisticamente significativa (p< 0,001).
Foi encontrada associação entre a categoria dos níveis séricos de vitamina D e a prática de atividade desportiva outdoor, a maioria dos níveis ótimos (67,7%) foram encontrados em adolescentes com prática de atividade outdoor e a maioria dos níveis de deficiência (60%) foram encontrados em adolescentes sem prática desportiva outdoor. Esta diferença foi estatisticamente significativa (p= 0,036). Não se verificou diferença entre os géneros quanto à prática desportiva outdoor.
Dos 320 adolescentes, 69 foram classificados quanto ao fotótipo: 17 com fotótipo II, 17 com fotótipo III, 28 com fotótipo IV e 7 adolescentes com fotótipo V. A média dos valores de vitamina D foi inferior nos adolescentes com fotótipo IV (24,8 ng/mL) e fotótipo V (23,9 ng/mL) relativamente aos adolescentes com fotótipo II (25,4) e fotótipo III (26,9), esta diferença foi estatisticamente significativa se considerarmos os fotótipos IV e V em conjunto (p< 0,001).
Não se encontrou qualquer associação com as outras variáveis estudadas (tipo de dieta, exposição solar, utilização de protetor solar, utilização de chapéu, meio de transporte de e para escola e doenças associadas), provavelmente devido ao baixo número de respostas obtidas às questões relacionadas (Tabela 1).
Variável | p-value | Significance |
---|---|---|
Categoria vitamina D versus género | 0,0034 | Yes |
Categoria de vitamina D versus fases da adolescência | 0,75 | No |
Categoria de vitamina D versus trimestre de análise | <0,001 | Yes |
Categoria de vitamina D versus IMC | 0,59 | No |
Utilização de chapéu por género | 0,54 | No |
Utilização de chapéu versus fases de adolescência | 0,96 | No |
Vitamina D versus IMC | 0,0161 | Yes |
Categoria de vitamina D versus atividade desportiva | 0,96 | No |
Protetor solar versus categoria de vitamina D | 0,21 | No |
Atividade desportiva outdoor versus categoria de vitamina | 0,036 | Yes |
Vitamina D por trimestre | <0,001 | Yes |
Vitamina D por fase de adolescência | 0,46 | No |
Vitamina D versus atividade outdoor | 0,22 | No |
Vitamina D versus utilização de chapéu | 0,8 | No |
Protetor solar versus vitamina D | No | |
Vitamina D versus fotótipo | 0,45 | No |
Fotótipo versus categoria vitamina D (agregando o fotótipo IV e V) | <0,001 | Yes |
Meio de transporte versus vitamina D | 0,9 | No |
Discussão
A amostra global deste estudo é significativa (n= 320), e vem ajudar a melhor compreender a realidade acerca desta vitamina nos adolescentes portugueses. Infelizmente os questionários tiveram várias respostas omissas, o que levou a "n" mais pequenos em algumas variáveis, limitando a capacidade de estabelecer relação estatística entre valores de vitamina D e variáveis estudadas.
Este trabalho vem mostrar uma prevalência de insuficiência e de défice, de acordo com critérios referidos SAHM, muito elevada, cerca de 50% e de 20%, respetivamente.
Apenas 30% dos adolescentes apresentaram valores ótimos de 25(OH)D. Esta prevalência de 70% de valores subótimos é extremamente elevada quando comparada com literatura existente.
O valor médio de 25(OH)D foi de 26,4 ng/mL, o que foi superior ao encontrado em outros estudos portugueses com adolescentes.16,17 Este valor é relativamente constante ao longo de toda a adolescência, não se verificando diferenças significativas nas diferentes fases da adolescência.
Quando olhamos para a diferença entre género masculino e feminino verificamos uma média de 25(OH)D superior no feminino (25,5 vs 27,1) e existe associação estatisticamente significativa entre o género e a prevalência de défice e insuficiência, sendo maior o risco de valores subótimos nas raparigas.
Tal como esperado, e descrito na literatura, a vitamina D tem uma variação sazonal muito clara e foi possível demonstrar, com significado estatístico, valores mais baixos de 25(OH)D nos meses de inverno e maior incidência de défice e insuficiência.
No nosso estudo conseguimos demonstrar de forma significativa que indivíduos com fotótipos IV ou V têm maior incidência de valores subótimos de 25(OH)25 que indivíduos dos restantes fotótipos.
A atividade física outdoor parece ser protetora contra o défice desta vitamina.
Não foi possível neste trabalho identificar outros fatores de risco, mas o elevado número de falta de resposta nos questionários impossibilita que se tire conclusões quanto às restantes variáveis estudadas.
Ao verificarmos prevalência de insuficiência de vitamina D tão elevada, coloca-se a dúvida, já levantada na literatura, de qual o cut-off que devemos utilizar ao avaliar valores séricos de 25(OH)D em adolescentes. A média de 25(OH)D da nossa amostra encontra-se na faixa da normalidade de acordo com os critérios da Pediatric Endocrine Society.
É fundamental identificar quais os riscos e consequências da insuficiência desta vitamina e quais os valores ideais por forma à formulação de recomendações realistas.
Outra dúvida que se levanta relaciona-se com a variação sazonal desta vitamina. Sabendo-se que existe esta variação na nossa realidade, em que época do ano faz sentido dosear 25(OH)D - no Inverno por forma a determinar o vale ou no Verão por forma a determinar o pico de cada indivíduo.
É importante definir qual a melhor estratégia para cada população:
Conclusão
A amostra de adolescentes utilizadores da consulta externa do Hospital CUF Descobertas apresenta elevada prevalência de défice e insuficiência de vitamina D, sendo que estes valores reforçam a necessidade de rever quais os valores de referência a utilizar nesta faixa etária.
O sexo feminino e os fotótipos IV e V são fatores de risco para valores inferiores ao recomendado e a prática de atividade física ao ar livre é fator protetor.