Introdução
A otalgia é um sintoma prevalente nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) e pode ser classificada em otalgia primária, se originada no ouvido, ou secundária, se a dor for proveniente de um local externo ao ouvido.1 A otite média e a otite externa são as principais causas de otalgia primária, mas não representam todas as etiologias deste sintoma.1 Existem outras causas mais raras que devemos considerar e excluir, de modo a instituir terapêutica dirigida mais precocemente e evitar possíveis complicações.1 A síndrome de Ramsay Hunt (SRH) é uma causa incomum de otalgia com uma incidência de 5/100 000 pessoas, e a segunda principal causa de paralisia facial periférica não traumática.2-4 Desenvolve-se em 0,2% das infeções primárias por herpes zóster e afeta principalmente indivíduos entre os 20 e 30 anos, sem diferença entre géneros.3 A tríade clássica da doença é constituída por otalgia, paralisia facial ipsilateral e rash vesicular no ouvido externo e/ou orofaringe.1,5 Pode apresentar sintomas prodrómicos, mimetizando uma infeção do trato respiratório superior, e atingir várias regiões do ouvido, nomeadamente a membrana timpânica, o canal auditivo externo e o pavilhão auricular (herpes zoster oticus).2,3
Caso clínico
Doente de 21 anos, sexo masculino. Antecedentes de asma, excesso de peso e fumador (2,5 unidades maço/ano). Recorreu a consulta aberta com o médico de família por sensação de corpo estranho e otalgia que caracterizava como “picadas” à direita, com uma semana de evolução. Negou otorreia ou diminuição da acuidade auditiva, trauma auricular ou acufenos. Ao exame objetivo apresentava o canal auditivo externo direito ligeiramente ruborizado e dor à mobilização do trago ipsilateral. Sem alterações cutâneas no ouvido externo e otoscopia normal. Foi diagnosticada otite externa, medicada com ofloxacina em formulação tópica 7 gotas 3 vezes por dia e ibuprofeno 400 mg oral, 1 comprimido de 8/8 horas.
Dois dias depois, recorre ao Serviço de Urgência (SU) por sensação de hemiface direita rígida, com ptose palpebral direita e assimetria facial, com uma hora de evolução. Sem alterações da visão, cefaleia, tonturas, vertigem, ou outros défices sensitivos ou motores. Ao exame objetivo apresentava ptose e incapacidade de oclusão total da pálpebra direita, parésia da hemiface direita e desvio da comissura labial direita. Sem outras alterações ao exame neurológico, com pupilas isocóricas e isorreativas, ausência de alterações da campimetria, sem dismetria na prova dedo-nariz, sem défices sensitivos
e sem alterações da força muscular segmentar ou da marcha.
Grau 1 Função normal | · Função facial normal em todas as áreas |
Grau 2 Disfunção ligeira | · Parésia ligeira só detetável com inspeção cuidada; pode ter sincinésia leve · Em repouso: simetria e tónus normais · Em movimento: testa - função moderada a boa; olho - encerramento completo com mínimo esforço; boca - ligeira assimetria |
Grau 3 Disfunção moderada | · Parésia óbvia, mas não desfigurante entre as duas hemifaces; sincinésias, contraturas e/ou espasmos percetíveis, mas não graves · Em repouso: simetria e tónus normais · Em movimento: testa - movimento leve a moderado; olho - encerramento completo com esforço; boca - ligeiramente fraca, com esforço máximo |
Grau 4 Disfunção moderada/grave | · Parésia evidente e/ou assimetria desfigurante · Em repouso: simetria e tónus normais · Em movimento: testa - nenhum; olho - encerramento incompleto (sinal de Bell); boca - assimétrica com esforço máximo · Espasmos, contraturas e sincinésias graves |
Grau 5 Disfunção grave | · Movimento quase impercetível · Assimetria em repouso · Em movimento: testa - nenhum; olho - encerramento incompleto; boca -movimento ligeiro · Geralmente sem espasmos, contraturas, sincinésias |
Grau 6 Paralisia total | · Sem qualquer tipo de movimento · Sem espasmos, contraturas, sincinésias |
Adaptado de: House JW, et al. Facial nerve grading system. Otolaryngol Head Neck Surg. 1985;93:146-7.14
Foi assumido o diagnóstico de paralisia facial periférica (PFP) (Grau IV na escala de House-Brackmann - Tabela 1), e o doente foi medicado com hidrocortisona (200 mg, IV), com melhoria ligeira e progressiva dos défices. Regressou ao domicílio com prescrição de prednisolona oral 1 mg/kg/dia, durante 5 dias, e redução gradual até aos 10 dias, proteção ocular e vigilância de sinais de alerta para queratite, assim como indicação para reavaliação pelo médico assistente e reabilitação por Medicina Física e de Reabilitação (MFR).
Por persistência de otalgia à direita, o doente foi novamente observado na sua Unidade de Saúde, dois dias depois. Ao exame objetivo apresentava o pavilhão auricular direito com ligeiros sinais inflamatórios e doloroso à mobilização, que não permitiu a realização da otoscopia. Ao exame neurológico persistia uma assimetria discreta na contração do músculo corrugador do supercílio e na fenda palpebral a desfavor da direita, com encerramento completo da fenda palpebral com força reservada contra resistência (Grau II na escala de House-Brackmann). Foi referenciado ao SU de Otorrinolaringologia, ao qual recorreu um dia depois, onde foram observadas vesículas na região da concha auricular direita, dolorosas, sem alterações no ouvido médio.
Realizou timpanograma e audiograma, com “entalhe” nos 2000 Hz bilateralmente. Perante a história clínica e os achados ao exame físico, foi confirmado o diagnóstico de síndrome de Ramsay Hunt. O doente foi medicado com valaciclovir 1000 mg, 8 em 8 horas durante 7 dias, e nimesulida, 100 mg, 12 em 12 horas, mantendo o esquema descrito de corticoterapia oral com prednisolona, tendo alta para o domicílio com pedido de consulta de ORL e MFR, para reavaliação.
Na avaliação de MFR, realizada dois meses depois, persistia uma assimetria discreta na contração do músculo corrugador do supercílio e na fenda palpebral a desfavor da direita sem necessidade de acompanhamento posterior pela especialidade, tendo alta.
Oito meses depois, o doente foi avaliado por ORL, com recuperação total da paralisia facial (Grau I na escala de House-Brackmann). Sem sincinésias, contrações musculares, sequelas espásticas, vesículas no palato ou no pavilhão auricular. Sem alterações mastigatórias ou salivares, disgeusia ou problemas oftalmológicos. O doente teve, assim, alta da consulta de ORL, sendo dado por terminado o seu seguimento.
Discussão
A otalgia é um sintoma frequente a nível dos CSP e, quando se apresenta de forma contínua e com agravamento progressivo, em muitos casos consiste numa otalgia primária de causa infeciosa. Apesar das causas mais comuns de otalgia primária serem otite externa e média, existem outros diagnósticos diferenciais mais raros que se apresentam, por vezes, de forma inespecífica (Tabela 2).1,3 Neste caso clínico, o doente apresentava otalgia à direita com dor à palpação do trago e tração auricular, rubor do canal auditivo externo e ausência de alterações na membrana timpânica, tendo sido assumido o diagnóstico de otite externa inicialmente. A otite externa é uma patologia prevalente nos CSP que cursa, tal como a SRH, com dor auricular,6 assim como otorreia, inexistente no presente caso. É importante distinguir entre este e outros diagnósticos diferenciais da SRH, para evitar a instituição de terapêutica inadequada, neste caso antibioterapia tópica. A persistência da otalgia, o aparecimento de PFP e o surgimento de vesículas numa fase posterior levaram ao diagnóstico final de SRH.
Etiologia | História | Exame objetivo |
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Causas comuns | ||
Barotrauma | História de mergulho ou viagens de avião | Hemorragia e hematoma no ouvido médio; retração e possível rutura da membrana timpânica |
Corpo estranho | Mais comum nas crianças; insetos, brinquedos, amendoins | Corpo estranho visível no canal auditivo externo |
Disfunção trompa de Eustáquio | Sintomas de desregulação da pressão | Membrana timpânica retraída; alterações no timpanograma |
Impactação de cerúmen | Acufenos, vertigem, perda auditiva, otalgia | Cerúmen obstrutivo no canal auditivo externo |
Otalgia reflexa | Mastoidite, disfunção articulação temporo- mandibular (ATM), sinusite, parotidite | Edema mastoideu, dor na ATM, dor à percussão de seios maxilares, perda do ângulo e dor mandibular |
Otite externa | Contacto recente com água com saída de exsudado pelo CAE | Dor à tração auricular; presença de exsudado leitoso escasso; plenitude auditiva; prurido; hipoacúsia |
Otite média | História de infeção do trato respiratório superior recente; mais comum nas crianças; dor severa, pulsátil no canal auditivo | Membrana timpânica ruborizada, opaca e abaulada |
Causas incomuns | ||
Celulite auricular | Progressão rápida; após picada de inseto, traumatismo,piercing | Lobo auricular geralmente envolvido; sinais inflamatórios |
Colesteatoma | Sensação de corpo estranho; otalgia | Massa a invadir a membrana timpânica; frequentemente com sinais de infeção |
Granulomatose | Artralgias, hipoacúsia, mialgias, úlceras orais, otorreia e rinorreia | Frequentemente com otite média crónica ou otite serosa |
Miringite vírica | Semelhante à otite média aguda | Membrana timpânica ruborizada, sem abaulamento; bolha hemorrágica na membrana timpânica |
Otite externa maligna/necrotizante | Otalgia persistente; dor retroauricular; associação frequente a doentes imunodeprimidos, diabéticos | Otorreia purulenta persistente com tecido de granulação no canal auditivo externo; paralisia facial |
Síndrome de Ramsay-Hunt (Herpes zoster oticus) | Otalgia, sintomas vestibulococleares, paralisia facial periférica | Rash vesicular no canal auditivo externo, com possível paralisia facial |
Traumatismo | Trauma contuso, ulceração pelo frio, queimaduras | Evidência do trauma |
Tumores ou quistos infetados | Otalgia localizada na aurícula ou canal auditivo externo | Apresentação semelhante à otite média ou externa crónica |
Adaptado de: Earwood JS, et al. Ear Pain: Diagnosing Common and Uncommon Causes. Am Fam Physician. 2018;97:20-7.1; Neilan RE, et al. Otalgia. Med Clin North Am. 2010;94:961-71.3
Esta síndrome é uma complicação rara de infeção por herpes zóster, que resulta da reativação do vírus varicela zóster no gânglio geniculado no VII par craniano (nervo facial).7 Esta condição também pode afetar outros nervos cranianos, como o V, VIII, IX, X, XI e XII, sendo o VIII (vestíbulo-coclear) o mais frequentemente envolvido, juntamente com o nervo facial.1,5
O diagnóstico é realizado através da história clínica e exame objetivo, baseando-se na tríade de otalgia unilateral, paralisia facial ipsilateral e rash vesicular no ouvido externo e/ou na mucosa oral.5,6 A otalgia pode ocorrer isoladamente ou antes do desenvolvimento das vesículas, estando, por vezes, associada a sintomas vestibulococleares como vertigem, acufenos, náuseas, vómitos, nistagmo ou hipoacúsia.1,2,7,8 A hipoacúsia é ligeira a moderada na maioria dos casos, de etiologia coclear e/ou retrococlear.8 As vesículas podem manifestar-se antes ou durante o período de paralisia facial, embora em alguns casos não se verifique o seu aparecimento, o que pode tornar o diagnóstico mais desafiante.5 Neste caso, as vesículas surgiram após a resolução quase completa da PFP, o que tornou esta apresentação atípica. Estas podem surgir não só no canal auditivo externo e pavilhão auricular, mas também nos dois terços anteriores ipsilaterais da língua ou no palato.7 A paralisia facial é ipsilateral, caracterizada por fraqueza da musculatura facial, com incapacidade de oclusão palpebral, alisamento das rugas da fronte e desvio da comissura labial. Pode-se verificar, igualmente, uma redução da produção de secreções lacrimais, nasais e salivares, em alguns doentes.6,7
No caso clínico acima descrito, o doente apresentou otalgia como sintoma principal, tendo desenvolvido PFP e vesículas posteriormente. A PFP pode ter várias etiologias, como a paralisia de Bell, a SRH, causa traumática, neoplásica e lesão iatrogénica. A paralisia de Bell e a SRH são as causas mais comuns, sendo a SRH responsável por 12% das PFP.2,9
O tratamento desta patologia ainda não se encontra bem estabelecido. No caso descrito, o utente foi medicado apenas com corticosteroides na abordagem inicial da PFP. Contudo, de acordo com a evidência mais recente, a terapia combinada com corticosteroides e antivíricos resulta em melhores taxas de recuperação global comparativamente a corticosteroides ou antivíricos em monoterapia.2,10 Na presença de um quadro de PFP de etiologia desconhecida deve considerar-se, assim, a instituição de terapêutica com fármacos antivíricos, como o aciclovir e valaciclovir, e corticosteroides.7 Os estudos realizados até à data não determinam a dose, período de tratamento ou janela terapêutica entre o início da PFP e a instituição do tratamento, dificultando a comparação entre regimes terapêuticos e a avaliação da sua eficácia.2 Ainda assim, nos ensaios clínicos realizados, tem sido instituído um esquema de aciclovir 800 mg 5 vezes por dia, oral, durante 7-10 dias e prednisolona 1 mg/kg/dia durante 5 dias.6 Também tem sido discutida a possibilidade de utilização de metilprednisolona em alta dose via endovenosa como tratamento em doentes que não recuperam após terapêutica com antivíricos e corticosteroides orais ou que apresentam fatores de mau prognóstico.4 Os antivíricos parecem contribuir para o alívio da dor aguda e resolução das lesões cutâneas, estando associados a redução de eventuais danos nervosos a longo prazo.6,7,11 Os corticosteroides atuam na diminuição da inflamação e edema dos nervos envolvidos, contribuindo para uma redução de possíveis sequelas da patologia, não se devendo, no entanto, descurar as possíveis complicações associadas à toma destes fármacos.2,6,7 Esta classe farmacológica está associada a efeitos adversos metabólicos, musculoesqueléticos, infeciosos, cardiovasculares, dermatológicos e oftalmológicos, sendo por isso importante considerar a sua utilização de forma criteriosa.12 O tratamento sintomático da dor também deve ser considerado, dado ser um sintoma frequente e, neste caso, a principal queixa do doente, tendo sido administrado um anti-inflamatório não esteroide.5 Após o tratamento de fase aguda, muitos doentes necessitam de reabilitação motora e de vigilância a longo prazo,6,9 sendo necessária uma articulação de cuidados multidisciplinar, nomeadamente entre CSP e secundários.
Os doentes com SRH parecem ter um prognóstico mais desfavorável no que concerne à resolução da PFP, comparativamente a doentes com paralisia de Bell, apresentando graus mais elevados na escala de Brackmann, com mais de 50% dos doentes com um grau superior ou igual a V ao diagnóstico.4,9 Alguns fatores podem influenciar o prognóstico desta síndrome, como o grau de fraqueza facial, a idade ao diagnóstico, (indivíduos com idade superior apresentam pior prognóstico), a presença de comorbilidades, como a diabetes mellitus (potencia a neuropatia diabética e a infeção por herpes simplex) e o atingimento do nervo petroso maior.4,9,13
A SRH pode levar a várias complicações, com atingimento de diversos órgãos. A nevralgia pós-herpética, úlceras da córnea de exposição e complicações neurológicas como a neuropatia periférica motora, polineuropatia craniana e meningite assética, são possíveis consequências que devem ser consideradas nos doentes com esta síndrome.2,8 No caso descrito, apesar do doente ter sido submetido ao tratamento com corticosteroides e antivíricos mais de uma semana após o início da otalgia, apresentou uma resolução completa do quadro, sem sequelas a longo prazo.
Este caso clínico permite, assim, alertar para a necessidade de o médico de família manter os seus conhecimentos atualizados e permanecer atento a causas menos comuns de sintomas frequentes na sua prática clínica, como é o caso da otalgia na SRH. Esta é uma condição médica grave e emergente que necessita de diagnóstico e tratamento precoces, dado que deformidades faciais permanentes e outras possíveis sequelas da SRH podem afetar substancialmente o bem-estar pessoal e a vida social dos doentes.2,5 A consideração de outras entidades menos prevalentes e a sua investigação precoce e tratamento atempado podem poupar ao utente intervenções desnecessárias e possíveis complicações da patologia subjacente.