Introdução
A lesão hepática induzida por fármacos (DILI) pode ser classificada em intrínseca (direta) ou idiossincrática.1
A DILI intrínseca é tipicamente dose-dependente e na maioria dos casos surge num curto espaço de tempo (horas a dias) após a exposição.1 Fármacos como o paracetamol, amiodarona, colestiramina, ciclosporina, ácido valproico, heparinas e estatinas podem estar associados a este tipo de lesão.1
Por outro lado, a DILI idiossincrática não é dose-dependente, ocorrendo numa pequena percentagem de doentes e geralmente com um período de latência de dias a semanas.1 Na literatura, verifica-se que este tipo de lesão, pode estar associada a fármacos como alopurinol, amiodarona, amoxicilina/ácido clavulânico, bosentan, dantroleno, diclofenac, estatinas, fenofibratos, isoniazida, cetoconazole, leflunamida, lisinopril, metildopa, nitrofurantoína, fenitoína, sulfonamidas, entre outros.1
A incidência de lesão hepática associada ao uso de amoxicilina/ ácido clavulânico é superior à que ocorre com o uso de amoxicilina isoladamente.2 Em termos de tipo de lesão, verifica-se um predomínio do atingimento colestático, no entanto, podem igualmente ocorrer lesões hepatocelulares isoladamente ou mistas.3
A fisiopatologia subjacente a este tipo de lesão requer mais estudos, mas pensa-se que a resposta alérgica imuno-mediada idiossincrásica é o principal mecanismo.4
A identificação de autoanticorpos específicos como os anti-mitocôndria tipo 6, anti-LKM2 e anti-LM4,4 assim como, os antigénios HLA classe II (DRB1*1501-DRB5*-0101-DQB1*0602)5 reforça a hipótese de se tratar de uma agressão imuno-mediada.
Os autores apresentam um caso de lesão hepática induzida por amoxicilina/ácido clavulânico, sendo, a sua manifestação clínica da hepatite colestática, evento que é descrito na literatura como raro.
Caso clínico
Doente, género masculino, 65 anos, admitido no Serviço de Urgência por dor abdominal, colúria, acolia fecal, prurido generalizado e anorexia com 4 dias de evolução.
Referia ciclo de 7 dias de antibioterapia com amoxicilina/ ácido clavulânico nos 21 dias prévios, por amigdalite. Sem toma de outra medicação.
Ao exame objetivo, encontrava-se apirético, normotenso, eupneico em ar ambiente, ictérico. Auscultação cardiopulmonar sem alterações. Ao exame abdominal, verificou-se distensão abdominal e dor generalizada à palpação, sem defesa.
Na avaliação analítica, destaca-se elevação dos marcadores de citólise e colestase hepáticos, assim como, hiperbilirrubinémia direta (Tabela 1).
Resultados | Valores de Referência | |
---|---|---|
Hemograma | ||
Leucócitos | 5,83 x 103/Ul | 4-10,5 |
Hemoglobina | 14,9 g/dL | 13,5-18 |
Plaquetas | 212 x103/uL | 150-450 |
Velocidade de Sedimentação | 5 mm/h | < 13 |
Bioquímica | ||
TGO | 174 U/L | 0-38 |
TGP | 328 U/L | 0-41 |
FA | 312 U/L | 40-129 |
GGT | 646 U/L | 8-61 |
Bilirrubina total | 10,47 mg/dL | < 1 |
Bilirrubina direta | 8,93 mg/dL | 0-0,3 |
Proteína C reativa | 9,03 mg/L | < 5 mg/L |
Coagulação | ||
Tempo de protrombina | 12,4 seg | 9,7-14,1 |
INR | 1,1 | 0,9-1 |
TGO = transaminase glutâmica oxalacética; TGP = transaminase glutâmica pirúvica; FA = fosfatase alcalina; GGT = gama glutamilzão normalizada internacional.
O estudo serológico de hepatite A, hepatite B, hepatite C, hepatite E, citomegalovírus, Epstein-Barr, leptospirose e HIV revelou-se negativo.
A pesquisa de autoimunidade (anticorpos anti-nucleares, anti-músculo liso, anti-LKM e anti-mitocôndria, ANCA) foi negativa, sendo normal o doseamento de imunoglobulinas.
Os exames imagiológicos realizados (ecografia, tomografia computorizada e ressonância magnética abdominais) não demonstraram alterações de relevo.
Foi submetido a biópsia hepática, cujo resultado anatomopatológico demonstrou a presença de inflamação hepatocelular, colestase e lesão dos ductos biliares.
O estudo dos antigénios HLA classe II, identificou os alelos DRB1*1501 e DQB1*0602.
Por suspeita de hepatotoxicidade, foi calculada a pontuação em 2 scores de risco, apresentando uma pontuação de +9 (associação muito sugestiva) no score Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS) e uma pontuação de +17 (associação definitiva) no score Clinical Diagnostic Scale (CDS).
Em suma, da combinação do estudo de histocompatibilidade que demonstra suscetibilidade a hepatotoxicidade por amoxicilina/ácido clavulânico, com alterações analíticas e histológicas, foi assumido o diagnóstico de hepatite colestática secundária a amoxicilina/ácido clavulânico.
Durante o internamento, o doente apresentou um agravamento progressivo do prurido e da hiperbilirrubinémia (Tabela 2). Iniciou terapêutica sintomática com colestiramina 4 g 4 vezes ao dia, bem como, ácido ursodesoxicólico 250 mg 3 vezes ao dia.
Dia internamento | D1 | D2 | D5 | D8 | D11 | D14 | D17 | D21 | D24 | D28 | D30 |
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TGO (U/L | 174 | 162 | 116 | 112 | 152 | 100 | 71 | 87 | 58 | 54 | 49 |
TGP (U/L) | 328 | 282 | 199 | 181 | 267 | 261 | 189 | 213 | 198 | 148 | 88 |
FA (U/L) | 312 | 316 | 301 | 314 | 300 | 329 | 293 | 267 | 305 | 217 | 203 |
GGT (U/L) | 646 | 589 | 425 | 341 | 370 | 383 | 291 | 267 | 228 | 121 | 72 |
BT (mg/dL) | 10,5 | 12,9 | 15,5 | 19,4 | 21,3 | 19,6 | 13,3 | 12,0 | 8,7 | 5,8 | 3,1 |
BD (mg/dL) | 8,9 | 10,9 | 13,1 | 16,1 | 17,4 | 15,9 | 11 | 10,8 | 8,1 | 5,3 | 2,7 |
INR | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 | 1,1 |
TGO = transaminase glutâmica oxalacética; TGP = transaminase glutâmica pirúvica; FA = fosfatase alcalina; GGT = gama glutamil transferase; bina direta; INR = razão normalizada internacional.
Três meses após início da doença, o doente tornou-se assintomático, com resolução completa da icterícia e prurido, apresentando normalização da enzimologia hepática, tendo sido suspensa a terapêutica instituída.
Discussão e conclusão
A DILI é um verdadeiro desafio para internistas e hepatologistas, devido ao elevado número de fármacos subjacentes, variabilidade de manifestações clínicas e ausência de marcadores específicos.1
Na literatura, diversos autores apresentam um conjunto de fatores de risco para hepatoxicidade a amoxicilina/ácido clavulânico, nomeadamente, género masculino, consumo de álcool, ciclos repetidos de antibiótico e uso concomitante de outras drogas hepatóxicas.3 Por outro lado, a duração do tratamento com este antibiótico tem sido apresentada com fator predisponente em algumas revisões.4
Hiperbilirrubinémia severa, alteração da função hepática e manifestações neurológicas constituem fatores de mau prognóstico, com a possibilidade de evolução para hepatite fulminante.4
O tratamento deste tipo de DILI consiste em terapia de suporte e controlo sintomático, nomeadamente sintomas de colestase, sendo necessário o uso de analgésicos, anti-eméticos ou mesmo colestiramina, anti-histamínicos, sertralina ou ácido ursodesoxicólico para o controlo de prurido.6
Devido ao mecanismo imunológico subjacente, incluindo reações de hipersensibilidade mediada por eosinófilos, alguns autores defendem o uso de corticoterapia sistémica em casos severos ou com potencial de agravamento, nomeadamente nos casos de hiperbilirrubinémia.6 No entanto, este tipo de terapia não mostrou para já evidência de redução de mortalidade.6
Concluindo, os autores apresentam o caso de um doente, género masculino, 65 anos, que ao fim de 3 semanas de terapêutica com amoxicilina/ácido clavulânico, desenvolve uma hepatite colestática. O doente apresentava alguns dos fatores de risco de hepatotoxicidade (género masculino, ciclo repetido de antibiótico), assim como, alelos HLA classe II de risco e uma biópsia hepática com colestase, inflamação linfocítica periportal e dano hepatocitário, aspetos sugestivos de DILI.3
No decurso da avaliação do doente foram utilizados dois scores de risco de hepatotoxicidade: score Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS)7 e score Clinical Diagnostic Scale (CDS).8 A utilização de ambos os scores mostrou uma provável associação entre a lesão hepática e o uso de amoxicilina/ácido clavulânico.
Este caso demonstra a importância da realização de uma história clínica cuidada, procurando-se fazer uma caracterização dos fármacos e/ou substâncias ingeridas pelo doente, uma vez que, a DILI é cada vez mais uma entidade clínica a considerar no diagnóstico diferencial de doença hepática.