Introdução
Nestes tempos de aceleração exponencial da utilização de tecnologias na saúde, com implicações diretas na re lação médico-doente, creio ser importante recordarmos o que tem sido esta relação ao longo dos tempos e os desafios que nos coloca a todos no presente e no futuro próximos.
Definição
Pode definir-se a relação médico-doente (RMD) como uma relação consensual na qual o doente procura explicitamente o cuidado do médico e na qual o médico aceita explicitamente a pessoa como seu doente. Trata-se de uma relação humana altamente especializada, uma espécie de “Contrato” confidencial com a pessoa que procura ajuda, com respeito pela autonomia dessa pessoa, o doente.1 Tudo isto pressupõe uma relação ética e de confiança. A definição de RMD dada pelo nosso atual Bastonário é igualmente esclarecedora: “é o ato médico por excelência, da qual resulta uma história, um exame clínico e um conjunto de informações, medidas e decisões, que determinam o presente e o futuro do doente.”1
Como sabemos, a RMD depende das políticas de saúde, do espaço sociocultural e económico, do espaço geográfico e do espaço temporal onde é exercida, bem como do conhecimento científico, dos meios técnicos disponíveis e da personalidade do médico e do doente.
Resenha histórica
Na Grécia clássica, berço da nossa civilização e da democracia, a prática da medicina era baseada no raciocínio lógico e empírico. Assentava na observação do médico e decorria por tentativa e erro. O médico utilizava o seu conhecimento científico para guiar o doente, que cooperava com o médico. O objetivo era a cura da doença.
Foi aqui que nasceu o pensamento conceptual da medicina. Desenvolveram-se duas escolas, cujos princípios gerais ainda são atuais.1 A Escola de Cos, defendia uma abordagem holística. Estudava os efeitos globais da doença no organismo. Defendia que era importante ou vir o doente e as suas queixas, perceber o seu contexto. A RMD já era então considerada um elemento impor tante para o bem-estar do doente. Pelo seu lado, a Es cola de Cnidus defendia uma abordagem reducionista. A doença era considerada uma entidade abstrata, separada do organismo. Esta escola descartava a influência de comportamentos e a experiência do doente; a RMD era considerada numa perspetiva essencialmente técnica.
O Juramento de Hipócrates, que data do século V a.C., surgiu como consequência da prática médica de então. O objetivo era reger a conduta do médico e salvaguardar os direitos do doente, num sentido claramente humanista. Hipócrates afirmava: “A arte da medicina está em observar, curar algumas vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre”.2
Mais tarde, na Idade Média, a RMD foi profundamente marcada pela religião. Era uma relação paternalista, sen do o doente um sujeito passivo.
Do renascimento ao século XIX, registaram-se mudanças sociais profundas, desenvolveu-se o conhecimento científico. Recordemos o século XVIII, denominado século das luzes, e o século XIX influenciado pela corrente filosófica Positivismo. É neste século, em parte decorrente do positivismo, que nasce o conceito de Modelo Biomédico: um agente, uma doença, um tratamento.3 Assim, o médico aplicava ativamente os seus conheci mentos científicos num doente passivo. A RMD era ainda uma relação paternalista, em que o bom doente afirmava “O Sr. Dr. é que sabe, faça como entender”.
No século XIX, o contributo da psicanálise foi relevante para o início da mudança desta RMD paternalista. No ato médico passou a dar-se mais ênfase ao papel central da comunicação com o doente e à história clínica. É bem expressiva desta época a recomendação de Sir W Osler “Listen to the patient”.3,4
No século XX nascem novos modelos conceptuais da RMD,3,4 dos quais se destacam dois: 1) o modelo funcional, de inspiração hipocrática, que preconizava que a prática clínica se devia centrar no doente como um todo e único. Este modelo entendia a doença dependente de fenómenos biológicos, sociais, culturais e psicológicos. Estava dada uma nova ênfase à história clínica; 2) o modelo biomédico, pelo seu lado, entendia a doença como entidade autónoma, desviando a atenção do doente para a doença e para a biologia. O Médico era considerado como engenheiro do corpo, pelo que a RMD era menos valorizada neste modelo.
O desenvolvimento das ciências sociais origina igualmente novas mudanças de conceitos. A saúde e a doença passaram a ser consideradas experiências socialmente construídas. A definição de saúde da OMS de 19475 - “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de doença” - é um exemplo deste novo conceito biopsicossocial. A prática da medicina volta a estar centrada na pessoa e na doença. A RMD ganha uma nova dimensão ao ser colocada no plano da empatia e com efeito terapêutico. É a esta luz que surge a afirmação tão expressiva do psicanalista Balint “O medicamen to mais receitado pelo médico é o próprio médico”.6
Nos anos 50 nasce o conceito de Mutual Investment de Balint.6 Em particular nas especialidades que acompanham o doente ao longo de vários anos, como a pediatria e a medicina geral e familiar, em que a RMD é duradoura, dá-se significativamente realce à confiança, empatia e comunicação doente-médico.
Ao longo do século XX, ocorreram enormes avanços técnicos e científicos. A evolução global da ciência deu origem à pluridisciplinaridade. Com maior evidência na transição do século XX para o XXI, a evolução tecnológica e a especialização da medicina, transformou a RMD numa relação plural.7,8 O recurso a múltiplos meios com plementares de diagnóstico (MCDT) e a diversas especialidades são os exemplos mais evidentes. Em consequência desta multidisciplinaridade a RMD deixa de ser uma relação pessoal de um para um, porquanto passam a existir vários intervenientes na relação. Há o doente e o médico inicial, mas também uma terceira e quarta pessoas, consoante as várias especialidades envolvidas. O melhor exemplo desta relação plural é o doente on cológico.
A RMD plural deu origem a novas reflexões, nomeadamente pela necessidade de ver o doente como um todo, de forma holística. É daqui que surge a prática clínica personalizada, ou seja, a medicina centrada no doente.7
Já na última década do século passado, surge nos EUA a medicina narrativa pela mão de Rita Charon.9 O objetivo passa a ser ouvir o doente, partilhar responsabilidade e poder, contrariar a despersonalização de cuidados decorrente da tecnologia e dos múltiplos atores envolvidos no cuidado ao doente. Alertava-se para a necessidade de estabelecer uma relação de confiança entre doente e médico, em que a reputação do médico é considerada essencial. É precisamente a propósito desta medicina que João Lobo Antunes escreveu “Ainda hoje o diagnóstico começa com a história clínica e o exame físico”.10
Atualidade
No século XXI, a evolução tecnológica tem sido enorme e rápida. A universalização dos smartphones e do acesso à internet aumentou a literacia em saúde, apesar dos conflitos entre informação e conhecimento, e contribuiu para o empowerment dos doentes.11 A tecnologia e a especialização no exercício da medicina continuam a aumentar. Acentua-se a prática plural da medicina. É nesta fase que nascem os hospitais privados, aos quais os médicos aderem mudando o consultório para estes novos espaços, onde o doente pode realizar, no mesmo local, tudo o que necessita para o diagnóstico e tratamento.
Com o nascimento dos hospitais privados, desenvolvem-se as marcas na saúde, que disputam a influência do doente a par da reputação do médico. A consequência natural é a publicidade na saúde. Entendendo-se publicidade como a forma de tornar público de forma apelativa e fundamentada uma proposta de valor para pessoas que vivem em ambiente de comunicação permanente. Vivendo a sociedade num ambiente de comunicação, é natural e lógica a publicidade em saúde, à qual o Serviço Nacional de Saúde também recorre.
Os grupos privados de saúde não tendo uma base fixa de doentes, têm um mercado para conquistar, pelo que é importante evidenciar as respetivas propostas de valor. Para maior eficácia, realizam estudos de mercado para apurarem os fatores que influenciam a escolha de uma marca.
Um estudo de mercado realizado em 2019 (Barómetro da Saúde 2019. Estudo de Mercado GfK - Recolha e análise estatística da informação - Estudo não publicado) identificou os seis principais fatores que influenciam a escolha de uma marca, os quais se enumeram por ordem decrescente de importância: competência clínica dos médicos; atenção e disponibilidade demonstrada pelos médicos; eficácia no processo marcação/marcação na data pretendida; tempo e espera até ser atendido consultas/exames; eficácia no processo de admissão; atenção e disponibilidade no serviço da receção. Por outro lado, os estudos também identificaram que para a ligação à marca contribuem as seguintes questões: hospitais com oferta global no mesmo local, marcas de confiança, especialistas de renome, acordos com múltiplos sistemas de saúde, processos administrativos fáceis, rapidez nas marcações, existência de unidades em rede e aplicações online.
Estes estudos permitem concluir que a competência clínica, a par de uma boa RMD, são fulcrais no processo de decisão de escolha de uma marca. Todavia, as facilidades logísticas e reputação das instituições privadas de pres tação de cuidados de saúde também são valorizadas.
Em simultâneo com os grandes hospitais privados, a RMD muda por via da tecnologia digital.11 O contacto médico-doente já não ocorre apenas na consulta, mas também via telemóvel, e-mail, fotografia e, mais recentemente, via teleconsulta.
Nas especialidades como a pediatria, medicina geral e familiar ou ginecologia a RMD é uma relação longitudinal, que se mantém ao longo de vários anos. É fundamental saber ouvir doentes e famílias.4,7,12 A profundidade desta relação nos tempos atuais implica skills em comunicação e empatia com o doente que gosta de recorrer ao Dr. Google antes da consulta médica.
Face a estes novos desafios que tem a RMD no século XXI, não podemos deixar de refletir no tema estratégico da formação médica universitária. Estaremos a dar a formação necessária à atitude profissional que nos novos tempos exigem? Na verdade, tanto os jovens médicos como os mais velhos, têm de aprender de modo empírico, a comunicar com o doente com a maior literacia de sempre em temas de Saúde.
Mensagens a reter
A terminar, salientam-se alguns aspetos essenciais que, enquanto médicos, devemos conservar na nossa mente:
Nunca podemos esquecer que nós, médicos, existimos por e para os doentes;
A “Relação Médico-Doente” é tão importante, e intemporal, que justificou a candidatura a património imaterial da Humanidade em 2017;
Podemos ter novas tecnologias, mas não temos novos valores;
A relação médico-doente-marca veio para ficar;
Uma Marca pode ser aglutinadora e geradora de confiança;
Os prestadores privados existirão enquanto merecerem a confiança dos clientes e dos doentes;
No admirável mundo novo, o doente será quem mais ordena;
E nesse mundo novo, o médico ordenará consoante a sua capacidade de comunicação e empatia.
Nota: Conferência apresentada na 9ª Reunião Pediátrica do Hospital CUF Descobertas.