Introdução
O tumor fibroso solitário (TFS) é um tumor raro de tecidos moles, de origem mesenquimatosa, descrito originalmente na pleura, e cujo diagnóstico e tratamento são desafiantes. Partilha aspetos histológicos com outros tumores de tecidos moles, mas os progressos no diagnóstico molecular e imuno-histoquímico têm possibilitado a sua diferenciação, sendo o CD34, STAT6 e Bcl-2 os marcadores mais importantes.1 A localização mais frequente destes tumores é intratorácica, sendo a pleura o principal, seguido do pulmão, mediastino e diafragma.2 No entanto, existem também TFS em localização extratorácica, nomeadamente no fígado, na glândula suprarrenal, na pele e na região da cabeça e pescoço,3 cujo primeiro caso foi descrito em 1991.4 Os mais comuns ocorrem na cavidade oral, mas também foram descritos na órbita, nariz e seios perinasais, nasofaringe e espaço parafaríngeo, laringe, glândulas salivares major e tiroide.3
A ocorrência de TFS no canal auditivo externo é extremamente rara e apenas existem três casos de TFS convencional reportados na literatura,5-7 existindo também um caso de TFS rico em células gigantes.8
Caso clínico
Uma doente do género feminino, de 27 anos, sem antecedentes pessoais de relevo, recorreu à consulta de Otorrinolaringologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC) por sensação de diminuição da acuidade auditiva e vários episódios de otorreia homolateral e sensação de obstrução progressiva do canal auditivo externo esquerdo com mais de um ano de evolução. Ao exame objetivo, observou-se uma massa arredondada, de superfície lisa, revestida por pele íntegra, com cerca de 2 cm de maior eixo, localizada na parede posterior do canal auditivo externo esquerdo, causando a sua completa obstrução e não possibilitando a visualização da membrana timpânica. Realizou um audiograma tonal que revelou uma hipoacusia de condução de grau ligeiro que se relacionou com a obstrução do canal auditivo externo. A tomografia computorizada (TC) de ouvidos revelou uma massa relativamente homogénea, hipodensa, sem invasão das estruturas adjacentes, ocupando todo o canal auditivo externo esquerdo, sem quaisquer alterações do ouvido médio (Fig. 1). A ressonância magnética de ouvidos confirmou a existência de uma formação tecidular obliterativa do conduto auditivo externo esquerdo, com cerca de 21 mm de diâmetro ântero-posterior, de contornos regulares e hipointensa em T1 e T2 (Fig. 2).
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Figura 1: TC de ouvidos (corte coronal) revelando a lesão (asterisco), ocupando todo o canal auditivo externo esquerdo.
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Figura 2: Ressonância magnética de ouvidos demonstrando lesão obliterativa do conduto auditivo externo esquerdo, em T2 (corte axial - seta branca, corte coronal - asterisco).
Foi realizada excisão total macroscópica do tumor, sob anestesia geral, não tendo sido registada nenhuma intercorrência. O período pós-operatório imediato decorreu igualmente sem complicações.
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Figura 4 e 5: Proliferação de células fusocelulares e ovoides, de citoplasma escasso e núcleo alongado, sem atipia celular, dispostas num estroma colagenoso em bandas, ricamente vascularizado e com esclerose perivascular, com zonas de hipo e hipercelularidade, sem necrose. (Ampliação 100x e 400x, respetivamente)
A peça cirúrgica consistia em dois fragmentos irregulares branco-acinzentados e elásticos, o maior com 2,5x1,7x1,2 cm (Fig. 3) e o menor com 0,8 cm de maior eixo. Microscopicamente, a lesão era constituída por células fusiformes ou ovais, com escasso citoplasma e núcleo alongado, por vezes com nucléolo. As células dispunham-se num estroma rico em colagénio, organizado predominantemente em bandas e rico em vasos com esclerose perivascular evidente, alternando áreas de hiper e hipocelularidade (Fig.s 4 e 5). Não existia evidência de atipia celular e o índice mitótico era baixo. O estudo imuno-histoquímico revelou reação positiva das células tumorais para o marcador CD34, vimentina, CD99, anticorpo BCl2 e STAT6 (Fig. 6), e reação negativa para a proteína S-100, cromogranina, sinaptofisina, desmina, actina do músculo liso (AML), MelanA e HMB45. Baseado nestes achados, a lesão foi diagnosticada como tumor fibroso solitário benigno. Focalmente, a neoplasia era rasante à margem cirúrgica.
No período pós-operatório houve resolução da sintomatologia, sendo que a doente manteve consultas de seguimento para vigilância, não havendo sinais de recidiva aos 6 meses de pós-operatório. Foi definida a necessidade de vigilância a longo prazo, ou seja, trimestralmente no primeiro ano, semestralmente no segundo e terceiros anos e posteriormente seguimento anual.
Discussão
Na literatura apenas existem três casos de TFS convencional no canal auditivo externo reportados na literatura,5-7 sendo que neste artigo reportamos o quarto caso.
A sintomatologia reportada no caso apresentado, nomeadamente a sensação de diminuição da acuidade auditiva e de plenitude auricular, vai ao encontro daquilo que é descrito na literatura, uma vez que os sintomas dos TFS da cabeça e pescoço são inespecíficos e estão relacionados com a presença da massa de tecidos moles na área afetada.9 O estudo de imagem da lesão apresentada está também de acordo com o descrito em relatos anteriores, pois mostra uma lesão tecidual de contornos regulares, e, particularmente na ressonância magnética, hipointensidade nas ponderações T1 e T2, o que se correlaciona com a sua natureza fibrosa.6
Embora insuficiente para o diagnóstico, o aspeto macroscópico da lesão, firme, de superfície lisa, bem circunscrita e acinzentada, está de acordo com o reportado em TFS do canal auditivo externo.5-7
Muitas vezes este tipo de tumor é erroneamente diagnosticado como outros tumores mais comuns da cabeça e pescoço, como o angiofibroma, no entanto apresenta características histológicas e imuno-histoquímicas diferenciadoras.7 As características microscópicas levam à suspeição do diagnóstico de TFS, em particular pela observação de células fusiformes ou ovais, dispostas num padrão aleatório, com alternância de áreas constituídas essencialmente por colagénio e áreas hipercelulares,10 mas não são suficientes por si só para diferenciar o TFS de outros tumores benignos de tecidos moles, como perineuromas, lipomas de células fusiformes, fibromatose desmoide e sarcomas de células fusiformes.10,11 Antigamente o TFS era classificado como hemangiopericitoma, mas pelo facto do primeiro ter uma origem fibroblástica e não pericítica, estas são hoje classificadas como diferentes entidades. A presença de áreas hipocelulares preenchidas de forma densa por colagénio e a imunorreatividade ao CD34 distinguem o TFS do hemangiopericitoma.9 Assim, o estudo imuno-histoquímico permite-nos fazer o diagnóstico definitivo de TFS, sendo que este apresenta forte imunorreatividade para o CD34, que é tradicionalmente o marcador mais consistente; e geralmente também expressa reatividade para CD99, Bcl-2 e vimentina. A maioria dos TFS não expressa reatividade para desmina, queratinas, proteína S100, CD31, catenina beta nuclear, AML e antigénio de membrana epitelial (EMA).5,11 No entanto, o marcador imuno-histoquímico mais sensível e específico para o TFS é o STAT-6.11 No caso reportado, a positividade para este marcador, em conjunto com o restante estudo, permitiu confirmar o diagnóstico e distinguir de outras entidades.
A presença de alto índice mitótico (> 4 por 10 campos de maior ampliação), zonas de necrose tumoral, hipercelularidade, pleomorfismo nuclear e alta relação núcleo-citoplasma, podem apontar para malignidade.10 Neste caso tratava-se de um TFS benigno, não existindo sinais de malignidade.
Qualquer TFS deve ser ressecado completamente sempre que possível, uma vez que, embora a maioria sejam benignos e de crescimento lento, foram descritos TFS malignos pleurais e extrapleurais. A taxa de recidiva é muito baixa após a ressecção cirúrgica completa, embora seja ligeiramente superior para TFS extratorácicos.11 No caso reportado, foi definida a manutenção de vigilância da doente a longo prazo, uma vez que não há registos suficientes de TFS do CAE que permitam excluir potencial maligno,11 apesar de não haver características suspeitas no caso reportado.
Conclusão
O TFS do canal auditivo externo é uma entidade extremamente rara. Pretendemos com a descrição deste caso alertar para a necessidade de considerar este tumor no diagnóstico diferencial de tumores de células fusiformes do canal auditivo externo. Para o seu diagnóstico, o papel da imuno-histoquímica é fundamental. É também mandatória a vigilância após terapêutica, uma vez que pouco se conhece acerca do comportamento desta entidade a longo prazo.