Introdução
A história da telemedicina em Portugal remonta a 1998, quando foi criada uma teleconsulta de Cardiologia Pediátrica no Serviço de Cardiologia do Hospital Pediátrico de Coimbra, que pretendia apoiar no diagnóstico ou exclusão de cardiopatia congénita nos Serviços de Pediatria de Hospitais Distritais.1 Desde então, outros exemplos têm surgido, que incluíram a criação da linha Saúde 24 em 2007 ou o Centro de Contacto do Serviço Nacional de Saúde, SNS 24, em 2016.2,3
Em 2012 foi criado, em Portugal, o Grupo de Trabalho de Telemedicina.2 Desde 2013, encontra-se estabelecido em Diário da República a recomendação da utilização de telemedicina (teleconsultas e telemonitorização) no Serviço Nacional de Saúde, com o intuito de aproximar os Cuidados de Saúde Primários dos Cuidados de Saúde Secundários, permitindo a realização de consultas hospitalares à distância, com o doente junto do seu médico de família, tendo sido, para isso, criada uma Rede de Telemedicina no Serviço Nacional de Saúde.4,5
A Direção-Geral da Saúde emitiu, em 2015, uma norma definindo o modelo de funcionamento das teleconsultas.6 Em 2016, foi criado o Centro Nacional de Tele-Saúde.2 Em 2019, a Lei de Bases da Saúde reconheceu o papel instrumental das tecnologias de informação e comunicação na prestação de cuidados de saúde, permitindo uma abordagem integrada e centrada nas pessoas, com vista à melhoria da prestação de cuidados de saúde, à salvaguarda do acesso equitativo a serviços de saúde de qualidade e à gestão eficiente dos recursos. Preconizou a necessidade da proteção dos dados pessoais, da informação de saúde e da cibersegurança.7
O Código Deontológico dos Médicos regula o exercício de telemedicina, definindo, entre outros, que este deve respeitar a relação médico-doente, mantendo a confiança, independência de opinião, autonomia do doente e confidencialidade, devendo a consulta realizar-se em condições sobreponíveis a uma consulta presencial, e apenas quando o médico tiver uma ideia clara e justificável da situação clínica.8 O médico que usa os meios da telemedicina deve avaliar cuidadosamente a informação recebida, só podendo dar opiniões, recomendações ou tomar decisões médicas, se a qualidade da informação recebida for suficiente e relevante, deve assegurar a confidencialidade do doente e deve efetuar registos clínicos de todas as informações recebidas.8
As vantagens da telemedicina incluem a observação, diagnóstico, tratamento e monitorização do utente à distância, no trabalho ou em casa, reduzindo a distância entre os serviços de saúde e os utentes, reduzindo as deslocações desnecessárias, aumentando a rapidez de resposta e dando maior apoio àqueles que trabalham e vivem em áreas mais distantes. Há um acesso mais rápido e facilitado à prestação de cuidados e à informação de saúde e, consequentemente, uma maior eficiência na prestação desses mesmos cuidados.2
No ano 2020, devido ao contexto da pandemia por COVID-19, a telemedicina revelou uma vantagem adicional, que motivou a sua utilização nesta fase, de evitar a deslocação do utente à unidade de saúde, sem risco de contágio para o utente, para outros utentes que recorram à unidade e para os profissionais envolvidos no seu atendimento, permitindo o acesso aos Cuidados de Saúde Primários de todos os utentes, mesmo em isolamento social, isolamento profilático ou quarentena. Neste âmbito, os dados existentes até este momento relativos às consultas de Cuidados de Saúde Primários salientam o papel fundamental deste tipo de consulta na manutenção de uma resposta adequada aos utentes.9 De janeiro a julho de 2020, houve uma redução de 5% do número de consultas médicas realizadas nos Cuidados de Saúde Primários, comparativamente ao período homólogo do ano anterior.9 O número de consultas presenciais e domiciliárias diminuiu 38% e 34%, respetivamente, tendo os contactos não presenciais e inespecíficos, onde se incluem as teleconsultas, aumentado 71%.9
Toda a legislação vigente em Portugal referente a telemedicina baseia-se na aproximação dos Cuidados de Saúde Primários e Secundários, não havendo legislação ou recomendações referentes à realização de consultas telefónicas pelos prestadores de Cuidados de Saúde Primários ou Secundários, que se verificou necessária no contexto atual de pandemia.
Mesmo fora do contexto de pandemia, as teleconsultas, nomeadamente consultas telefónicas em Cuidados de Saúde Primários, podem ser úteis na prestação de cuidados próximos à população, e devem ser definidas e legisladas, como já existe para a realização de telemedicina entre os dois níveis de cuidados, de forma a garantir um uso custo-eficaz dos recursos e uma equidade no acesso e qualidade dos serviços prestados. Pela ausência de linhas de orientação neste âmbito em Portugal, foi realizada uma revisão da evidência existente a nível internacional relativa à utilização da consulta telefónica nos Cuidados de Saúde Primários.
O objetivo foi avaliar a relação entre teleconsulta e resultados em saúde (hospitalizações, recurso ao Serviço de Urgência, mortalidade, satisfação dos utentes) quando comparada com a consulta presencial, em populações seguidas em Cuidados de Saúde Primários e/ou que os procura para resolução de doença aguda nos últimos 5 anos.
Métodos
Pesquisa nas bases de dados de medicina baseada na evidência (MEDLINE, The Cochrane Library, Canadian Medical Association Practice Guidelines) de normas de orientação clínica, meta-análises (MA), revisões sistemáticas (RS) e ensaios clínicos aleatorizados (ECA), publicados nos últimos 5 anos, escritos em inglês ou português, utilizando os termos MeSH “((Telemedicine) OR (Tele* Consult*) OR (Telephone Consultation) OR (Telehealth)) AND ((General Practice) OR (Family Practice) OR (primary health care) OR (family physician))”.
A pergunta da pesquisa seguiu a estratégia PICO:
Participantes: população seguida nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) e/ou que os procura para resolução de doença aguda;
Intervenção: teleconsulta médica (consulta por telefone,com ou sem recurso a videochamada);
Comparador: consulta presencial médica;
Outcomes: hospitalizações, recurso ao Serviço de Urgência (SU), mortalidade, satisfação dos utentes.
Definindo-se, então, a seguinte pergunta PICO: Para populações seguidas em Cuidados de Saúde Primários e/ou que os procura para resolução de doença aguda (P), o uso de teleconsultas (I), em comparação com as consultas presenciais (C), produz resultados de saúde idênticos (O)?
Foram definidos os critérios de inclusão e de exclusão que se apresentam de seguida.
Critérios de inclusão
Estudos que analisem consultas médicas por telefone (com ou sem recurso a videochamada) como alternativa ao acesso direto aos CSP (por iniciativa do utente ou do profissional);
Estudos que abordem a telemedicina (consultas médicas por telefone com ou sem recurso a videochamada) no seguimento de doenças crónicas em contexto de Medicina Geral e Familiar (MGF);
Estudos que abordem a telemedicina (consultas médicas por telefone com ou sem recurso a videochamada) no seguimento de crianças e adultos saudáveis (incluindo grávidas).
Critérios de exclusão
• Estudos que incluam apenas telemedicina no contexto de outras especialidades médicas que não MGF; • Estudos que incluam apenas telemedicina exercida por outros grupos profissionais (por exemplo, enfermagem, fisioterapia, entre outros);
• Estudos que incluam outros tipos de telemedicina que não a consulta por telefone com ou sem recurso a videochamada (por exemplo aplicações para telemóvel, aplicações para monitorização de sinais vitais, etc.);
• Revisões clássicas.
Para avaliar a qualidade dos estudos (Nível de Evidência - NE) e a força de recomendação foi utilizada a escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Family Physician.10
Resultados
Resultados da pesquisa
A pesquisa combinada das bases de dados de medicina baseada na evidência identificou 346 artigos. Um total de 152 artigos duplicados foi encontrado na combinação das bases de dados. Por pesquisa direta foram encontrados mais 3 artigos, obtendo-se um total de 197 artigos. Depois da leitura do título, resumo e texto integral, dois artigos relevantes foram identificados e incluídos na análise (Fig. 1) .
Artigos incluídos na revisão
Os dois artigos incluídos na revisão consistem em revisões sistemáticas, apresentando-se o resumo da análise destes dois artigos na Tabela 1.
Referência | Tipo de estudo | População | Tipo de estudos incluídos em cada artigo | Intervenção | Resultados | NE |
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Downes et al (2017)10 | Revisão sistemática | Utentes dos Cuidados de Saúde Primários | 2 RS e 1 RCT (N=388) | Teleconsulta vs Consulta face-a-face | Redução no tempo gasto em consultas no grupo da teleconsulta Maior número de consultas necessárias no grupo da teleconsulta Teleconsulta fornece uma alternativa adequada às consultasface-a-face Teleconsulta reduz a carga de trabalho na prática clínica | 2 |
Bashshur et al (2016)11 | Revisão sistemática | Utentes dos Cuidados de Saúde Primários | 86 estudos: 35 de viabilidade/ aceitação (23 inquéritos, 5 estudos descritivos, 1 estudo de coorte, 2 RCT, 3 quasi-experimentais, 1 revisão de registos clínicos), 36 de resultados intermédios* (11 RCT, 10 revisões de registos clínicos, 8 inquéritos, 2 ensaios aleatorizados por cluster, 2 estudos de caso controlo, 1 quasi- -experimental, 2 observacionais), 7 de resultados em saúde (4 RCT, 1 revisão de registos clínicos, 1 comparação pré/pós-intervenção, 1 ensaio aleatorizado por cluster) e 8 de custos (4 RCT, 1 ensaio clínico, 1 revisão de registos clínicos, 1 ensaio aleatorizado por cluster, 1 caso controlo) * Resultados intermédios - comparecimento, adesão e uso do serviço | Telemedicina | A telemedicina é pelo menos tão eficaz como a medicina convencional e tem demonstrado ser custo-efetiva Os utentes estavam a favor de ter acesso ao profissional de saúde através da Internet ou telefone e mostraram-se satisfeitos com as teleconsultas exceto quando era necessário o exame físico, preferindo a modalidade presencial Alguns estudos mostraram uma melhoria moderada na qualidade e outros encontraram achados equívocos | 2 |
NE - nível de evidência; RCT - randomized controlled trial (ensaio clínico aleatorizado e controlado); RS - revisão sistemática.
Downes et al elaboraram uma revisão sistemática com o objetivo de procurar evidência sobre a utilização da consulta telefónica em detrimento da consulta presencial.11 Incluíram três artigos (duas revisões sistemáticas e um ensaio clínico).11 O ensaio clínico incluiu 388 pacientes que solicitaram consultas no próprio dia, em duas clínicas e que foram randomizados para uma consulta presencial ou para uma consulta por telefone. Verificou-se que houve uma redução no tempo gasto em consultas no grupo da teleconsulta (em média menos 1,5 minutos, intervalo de confiança da média: 0,6 a 2,4) e estes pacientes também tiveram, em média, 0,2 vezes (intervalo de confiança: 0 a 0,3) mais consultas de acompanhamento do que o grupo com consulta presencial.11 As revisões sistemáticas, uma incluindo um ensaio clínico e um estudo observacional, e a outra um ensaio clínico e quatro estudos observacionais, forneceram interpretações narrativas das evidências concluindo que as consultas por telefone fornecem uma alternativa adequada às consultas presenciais.11 A pequena amostra sugere que existe pouca literatura sobre as consultas telefónicas em alternativa às presenciais, no entanto, a atual evidência sugere que oferecem uma opção apropriada em determinadas situações reduzindo a carga de trabalho na prática clínica.11
Bashshur et al também conduziram uma revisão sistemática mas com o objetivo de avaliar a evidência existente sobre a viabilidade, aceitação e efeitos da telemedicina nos Cuidados de Saúde Primários.12 De um total de 2308 artigos resultantes da pesquisa inicial apenas incluíram 86 com uma grande variedade de temáticas (e-visits, prescrição eletrónica, acesso eletrónico a profissionais de saúde, partilha de notas clínicas, acesso dos pacientes ao seu processo eletrónico, uso da Internet para informação em saúde por pacientes e profissionais, treino por enfermeiros e gestão da doença).12 A maioria suporta a viabilidade e aceitação da telemedicina, mas estas variam com o género, idade e estatuto socioeconómico.12 A telemedicina parece ser mais aceite pelos pacientes, exceto para doenças que requerem exame físico, do que pelos profissionais de saúde.12 Os dados sobre resultados são limitados mas, de forma geral, sugerem que as intervenções de telemedicina são pelo menos tão eficazes como a medicina tradicional.12 As análises de custo variam, mas a telemedicina tem demonstrado ser custo-efetiva com todos os estudos a demonstrar valor económico positivo (menor tempo de consulta, economia de custos por ano de vida, custo reduzido).12 Os autores assumem que o facto de os critérios de inclusão e de exclusão serem vagos é uma limitação, mas justificam-no pela falta de consenso sobre o que constitui intervenções de telemedicina, pelos limites imprecisos na área de atuação de um médico de família nos Estados Unidos.12
Discussão e conclusão
Tendo em consideração o limitado número de estudos sobre os efeitos da teleconsulta em contexto de Cuidados de Saúde Primários nos outcomes em saúde, em comparação com a consulta presencial, e o fato de alguns estudos apresentarem limitações, atribuiu-se uma força de recomendação B.10 De notar que a força de recomendação B, de acordo com a taxonomia SORT, é baseada em evidências inconsistentes ou de qualidade limitada.10
A atual evidência sugere que a teleconsulta oferece uma opção apropriada em determinadas situações, sendo eficaz e custo-efetiva, reduzindo a carga de trabalho na prática clínica.11,12 Associadamente, a teleconsulta mostrou reduzir o tempo gasto em cada consulta, aumentando, no entanto, o número de consultas de acompanhamento. 11 Em relação ao nível de satisfação dos utentes, demonstrou-se que a maioria ficou satisfeito com a teleconsulta, exceto quando a patologia requer exame físico, preferindo nesse caso a consulta presencial.12
Apesar de a teleconsulta ser uma alternativa adequada à consulta presencial em várias situações, tendo em conta o número limitado de estudos sobre o tema e o grande recurso à teleconsulta no ano de 2020, são necessários mais ensaios clínicos para reforçar a sua evidência.11,12