Introdução
As fístulas bilioentéricas foram descritas em 1890 por Courvoisier, sendo identificadas em 0,5% a 4,8% das cirurgias da vesícula/vias biliares.
São colecisto-cólicas em 8% - 26,5% dos casos (mais frequentemente a nível do ângulo hepático). Geralmente são diagnosticadas incidentalmente durante a colecistectomia. 1-3 Os mecanismos fisiopatológicos implicados na formação deste tipo de fístulas baseiam-se em: alterações da perfusão/fenómenos de inflamação, pressão exercida pelos cálculos na parede da vesícula biliar.4
Apesar de raras, podem ter implicações graves uma vez que se estabelecem em pacientes idosos (mais frequentes no género feminino), com múltiplos fatores de risco e comorbilidades. Podem manifestar-se sob a forma de: oclusão intestinal baixa (cálculo impactado no cólon sigmoide), hemorragia digestiva baixa (erosão de vasos na parede do cólon), inflamação localizada/sépsis.5 Quando sintomáticas, a taxa de mortalidade é elevada (35% - 40%) e o cirurgião, pode ser chamado a intervir, num paciente de difícil abordagem clínico-cirúrgica, exigindo-se sensatez e alguma prudência.6-8
A inespecificidade clínica, a limitação dos meios auxiliares de diagnóstico, a polémica suscitada pelo tipo de tratamento mais adequado e a raridade desta entidade, motivaram a apresentação de um caso clínico elucidativo deste tipo de fístula biliodigestiva, expondo a sua conduta diagnóstica e terapêutica.
Caso clínico
Doente com 81 anos, do género feminino, diabética insulinotratada, hipertensa, com insuficiência cardíaca direita, hipertensão pulmonar grave e história de vários internamentos no Serviço de Medicina Interna por diabetes descompensada, enterites com diarreia que não cediam a medidas terapêuticas habituais, insuficiência cardíaca descompensada e insuficiência renal crónica.
Referia dor abdominal tipo cólica associada à paragem de emissão de gases e fezes.
Ao exame físico, a doente encontrava-se consciente, mas pouco colaborante, ligeiramente descorada e desidratada, encontrava-se hipotensa (100/66 mmHg), com ritmo cardíaco irregular, mas estável do ponto de vista hemodinâmico. Abdómen - ruídos hidro-aéreos aumentados em frequência e com timbre metálico, distendido, timpanizado, com dor difusa à palpação, mas sem sinais de irritação peritoneal.
A colocação de sonda nasogástrica, drenou de imediato, cerca de 2l de conteúdo fecaloide.
As determinações analíticas (hemograma e bioquímica evidenciaram hemoglobina 10,8 g/dL, leucócitos 10400 U/dL (com neutrofilia), creatinina 2,87 mg/dL, ureia 32, K 3,2, Na 139, TGO 16 U, TGP 26 U, fosfatase alcalina, 288, INR 1,2.
Os exames de imagem (radiografias do tórax e abdómen, ecografia abdominal) demonstraram: alargamento do mediastino à custa da sombra cardíaca, níveis hidro-aéreos na topografia do intestino delgado e cólon, “distensão hídrica de muitas ansas do intestino delgado, com peristaltismo reduzido, com derrame peritoneal moderado, não se identificando a causa da obstrução”. Para melhor esclarecimento do quadro clínico foi solicitada tomografia abdominal computorizada (sem contraste endovenoso): “é possível perceber a existência de uma imagem sugestiva de fístula colecistocólica (envolvendo o fundo da vesícula biliar e a metade direita do cólon transverso); identifica-se uma imagem sugestiva de cálculo biliar com 3,7 cm na transição do cólon descendente para a ansa sigmoide, onde neste segmento surgem múltiplos divertículos, com alterações que sugerem a existência prévia de processos inflamatórios locais (diverticulites), o que nos faz duvidar da possibilidade da passagem espontânea do cálculo através deste segmento”- (Fig. 1).
Perante os achados da tomografia, solicitou-se uma colonoscopia: “progressão até aos 35 cm e observado cálculo biliar a este nível, que ocupa praticamente todo o lúmen, embora se mobilize com as manobras de insuflação e aspiração”; área de mucosa com erosão a 30 cm; presença de numerosos divertículos a jusante do cálculo condicionando estreitamento do lúmen do cólon sigmoide e angulações acentuadas do mesmo, impossibilitando a remoção endoscópica do cálculo” - (Fig. 2).
Perante a tentativa infrutífera de remoção do cálculo por via endoscópica, submeteu-se a doente a uma celiotomia exploradora que evidenciou: oclusão intestinal baixa, condicionada por um cálculo impactado no cólon sigmoide deformado pela presença de divertículos e fibrose resultante de fenómenos de diverticulite prévios; fístula colecistocólica entre o ângulo hepático do cólon e a vesícula biliar.
Procedeu-se, à mobilização proximal do cálculo (“millking”), remoção através de colotomia e confeção de colostomia lateral sem intercorrências intraoperatórias (Fig. 3).
No pós-operatório, verificou-se uma agudização da lesão renal crónica com acidémia metabólica, e necessidade de transferência para uma Unidade de Cuidados Intensivos deste Hospital e, posteriormente, para o Serviço de Nefrologia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Discussão
O diagnóstico desta entidade exige um elevado índice de suspeição clínica em articulação com avaliação imagiológica e endoscópica complementares.
As atitudes terapêuticas, atualmente, aceites incluem:
Remoção endoscópica do(s) cálculo(s) após fragmentação;
Intervenção cirúrgica, por laparotomia ou laparoscopia, em um ou dois tempos para remoção do(s) cálculo( s) associada (um tempo) ou seguida (dois tempos) de colecistectomia e reparação da fístula.
A terapêutica cirúrgica num só tempo, permite o tratamento definitivo, eliminando teoricamente o risco de “íleus biliar” recorrente, a colangite, o carcinoma da vesícula biliar e a necessidade de outro procedimento cirúrgico. Não obstante, está associado a uma taxa de morbimortalidade mais elevada, pelo que deve ser reservado a pacientes com bom estado geral.
A escolha entre tratamento endoscópico e cirúrgico é condicionada fundamentalmente pelo material disponível, tamanho do(s) cálculo(s), estabilidade hemodinâmica e/ou opção do paciente. Nos doentes com risco cirúrgico elevado, o tratamento endoscópico surge como uma alternativa adequada pela menor taxa de complicações. Contudo, perante o seu fracasso é obrigatório o tratamento cirúrgico.
No caso clínico exposto o tratamento cirúrgico impôs-se perante o fracasso da terapêutica endoscópica. Uma vez realizada laparotomia verificou-se que as condições locais e o estado de equilíbrio hemodinâmico do doente não permitiam o tratamento definitivo em um só tempo: colecistectomia, reparação da fístula e remoção do cálculo. Optámos por manter a fístula “in situ” e proceder ao manuseamento do cálculo até ao cólon descendente através do processo de “ordenha” - “milking” e confecionar uma colostomia lateral atendendo à deformidade do cólon sigmoide condicionada pelos episódios repetidos de diverticulite prévios.
Conclusão
Apesar de raro, a possibilidade do “cólon biliar” existe, e desta vez sem solução endoscópica, numa doente com várias comorbilidades e atraso no diagnóstico (a doente estava internada há 5 dias no Serviço de Medicina Interna).
A conduta e terapêutica corretas são fundamentais para evitar a morbimortalidade elevada inerente. A eleição do tratamento adequado para cada caso clínico, endoscopia e/ou cirurgia, é função de fatores clínicos e técnicos.
Em doentes de alto risco, somos da opinião que o tratamento de eleição é a abordagem em dois tempos, isto é, resolução da oclusão intestinal em primeiro tempo, deixando a colecistectomia e tratamento da fístula para o segundo tempo, se a condição clínica da doente permitir.9