Introdução
A tuberculose é uma doença infeciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis.1 Pode atingir qualquer órgão, sendo a forma pulmonar a mais frequente.1 Nos últimos 10 anos em Portugal assistiu-se a uma diminuição de cerca de 40% da taxa de notificação e de incidência da tuberculose, com valores de incidência na população geral abaixo dos 20/100 000 habitantes.2 Estima-se que a incidência na gravidez seja semelhante à da população geral, uma vez que a gravidez não está associada a aumento do risco da doença. Pela sua clínica inespecífica, o diagnóstico torna-se difícil impondo uma elevada suspeição clínica.3,4 A terapêutica deve ser iniciada o mais precocemente possível, minimizando, assim, os riscos materno-fetais. A terapêutica anti-bacilar de primeira linha é considerada segura na gravidez, sendo o risco de toxicidade ultrapassado pela vantagem do tratamento.5-8
Caso clínico
Mulher de 24 anos, melanodérmica, desempregada, multípara, sem antecedentes pessoais e familiares relevantes. Negava história de consumos aditivos, contactos anteriores com a doença e viagens recentes. Gravidez vigiada nos cuidados de saúde primários, sem intercorrências. Às 32 semanas e 5 dias recorreu ao serviço de urgência com queixas de algias pélvicas e tonturas. Negava febre, cansaço ou dispneia. Referia acessos esporádicos de tosse não produtiva. A utente encontrava-se normotensa, normocárdica e subfebril. O exame ginecológico, toque vaginal, ecografia obstétrica e tocograma não revelaram alterações. À auscultação pulmonar constatou-se a diminuição do murmúrio vesicular à direita e analiticamente a elevação dos parâmetros inflamatórios (leucocitose com linfocitose e monocitose e elevação da PCR - proteína C reativa). A radiografia tórax revelou uma condensação na base direita com infiltrado micronodular difuso sugestivo de cavitações nos terços médios e superiores (Fig. 1).
Para esclarecimento diagnóstico foi realizada uma tomografia computorizada (TC) torácica que constatou a presença de múltiplas opacidades pulmonares bilaterais de provável natureza inflamatória, com extensas cavitações internas, a maior no lobo superior direito, associado a um espessamento intersticial peribroncovascular difuso bilateral e áreas extensas de confluência no lobo médio e lobos superiores, sugestivas de alterações inflamatórias em atividade (Fig. 2). A presença de bacilos álcool-ácido resistentes na expetoração em três amostras consecutivas e o isolamento do bacilo de Koch (BK) no exame cultural confirmaram o diagnóstico: tuberculose pulmonar (TP). Perante a suspeita, foi instituída de imediato terapêutica anti-bacilar com isonizida, rifampicina e etambulol cum prindo isolamento de contacto. Iniciou suplemento de 10 mg/dia de vitamina B6 (piridoxina). Manteve-se clinicamente estável e verificou-se uma evolução favorável. Foi assegurada a vigilância do bem-estar fetal com auscultação diária do foco fetal. Ao 26º dia de terapêutica, após a baciloscopia ter sido negativa em três amostras e ultrapassado o período de contágio, a grávida teve alta referenciada à consulta de Alto Risco e ao Centro de Diagnóstico Pneumaológico (CDP). Na alta foi realizada ecografia para avaliação do feto que constatou a presença de feto único, cefálico, crescimento no percentil 51 com dinâmica fetal, líquido amniótico e circulação fetal normais. O parto decorreu espontaneamente às 36 semanas e 3 dias, sem intercorrências à exceção da prematuridade tardia, com o nascimento de um recém-nascido com boa vitalidade e peso adequado à idade gestacional (2640 g, índice Apgar 10/10/10). Foi excluída tuberculose congénita com a realização de radiografia tórax que foi normal, a prova de Mantoux, hemoculturas para BK e PCR para BK no suco gástrico e urina negativas. De acordo com o preconizado cumpriu quimioprofilaxia com isoniazida e manteve seguimento em consulta de Pediatria. A mãe e o recém-nascido tiveram alta ao terceiro dia. A doente manteve seguimento no CDP e cumpriu a terapêutica anti-bacilar, tendo tido alta com resolução da doença.
Discussão
A gravidez não é uma condição predisponente para o desenvolvimento ou progressão da tuberculose pulmonar.9 Contudo, merece especial atenção pelo risco de tuberculose congénita e neonatal bem como a morbilidade obstétrica associada, nomeadamente aborto espontâneo, restrição crescimento fetal, pré-eclâmpsia, hemorragia pós-parto, parto pré-termo e fetos com baixo peso ao nascimento.3,5,10 O diagnóstico é, muitas vezes tardio pela apresentação insidiosa da doença e sintomas inespecíficos, mimetizando os próprios sintomas da gravidez. O caso clínico demostra que apesar da inespecificidade dos sintomas, a importância de um exame objetivo completo e a valorização dos fatores demográficos, mesmo numa doente sem contexto epidemiológico, é fulcral para a instituição de um diagnóstico célere.6) Perante a suspeita de tuberculose pulmonar, a marcha diagnóstica deve seguir o algoritmo habitual, incluindo a realização de exames de imagem.3,11 Assim sendo, o tratamento não pode ser diferido pela presença de uma gravidez e deve ser independente da idade gestacional. Relativamente à realização de exames de radiação diagnóstica é conhecido que a dose de radiação absorvida é bastante reduzida, não constituindo risco para o feto. A maioria dos exames de radiologia diagnóstica expõe o útero a doses de radiação inferiores a 20 mGy, sendo que a dose absorvida da radiografia tórax é 0,0005-0,01 mGy e da TC torácica de 0,01-0,66 mGy (Tabela 1).12,13
Exame imagiológico | Dose absorvida (mGy) |
---|---|
Exames de muito baixa dose (< 0,1 mGy) | |
Radiografia coluna cervical | < 0,001 |
Radiografia membros | < 0,001 |
Mamografia (duas incidências) | 0,001 - 0,01 |
Radiografia tórax (duas incidências) | 0,0005 - 0,01 |
Exames de dose baixa a média (0,1-10 mGy) | |
Radiografia | |
Radiografia abdominal | 0,1 - 3.0 |
Radiografia coluna lombar | 1,0 - 10 |
Tomografia computorizada (TC) | |
Cabeça e pescoço | 1 - 10 |
Tórax | 0,01 - 0,66 |
Medicina Nuclear | |
Cintigrafia óssea (Tc-99m) | 4 - 5 |
Angiografia pulmonar | 0,5 |
Exames de alta dose (10-50 mGy) | |
TC Abdominal | 1,3 - 35 |
TC Pélvico | 10 - 50 |
PET/TC | 10 - 50 |
Tabela modificada de Committee Opinion No. 723: Guidelines for Diagnostic Imaging During Pregnancy and Lactation. Obstet Gynecol. 2017;130:e210-6.
É considerado como limiar para a ocorrência de algum efeito do tipo determinístico a dose de radiação de 50 mGy, pelo que a dose associada aos exames realizados no caso, consideram-se nulos. Ainda assim, é importante o uso de protetores de chumbo sobre o abdómen e utilização de técnicas de baixa dosagem.12 O atraso no diagnóstico pela não utilização de exames radiológicos é, por si só, mais nocivo para a saúde materna e fetal do que os potenciais riscos da utilização de radiação.6,12 A terapêutica preconizada é múltipla e prolongada devendo ser instituída o mais precocemente possível, sendo os fármacos de primeira linha - isoniazida, rifampicina e etambulol - seguros na gravidez.1,8,9 É recomendada a suplementação com vitamina B6 em associação à isoniazida para prevenção de neuropatia periférica.3,9A estreptomicina e pirazimanida não são recomendadas, uma vez que, os seus efeitos no feto ainda não foram estudados.8 A amamentação é reconhecida como segura devendo ser encorajada nas mulheres sob terapêutica de primeira linha.3,7,10 Este caso ilustra a importância da existência de uma equipa multidisciplinar e do estabele cimento de um diagnóstico célere com a instituição precoce da terapêutica numa patologia que, quando diagnosticada tardiamente ou subdiagnosticada, se associa a uma morbimortalidade materno-fetal significativa.6,10
Conclusão
Apesar da incidência ser baixa nos países desenvolvidos, a TP continua a ser um problema de saúde pública nas mulheres em idade reprodutiva.2,3 Na gravidez a apresentação da doença é tipicamente insidiosa e, por isso, requer um elevado índice de suspeição. Perante a suspeita de tuberculose, importa realçar que a marcha diagnóstica deve seguir o algoritmo habitual com a instituição da terapêutica o mais precocemente possível. Os anti-bacilares de primeira linha são seguros na gravidez e amamentação.3,6,8,12 Apesar da gravidez não alterar o curso natural da doença, não constituindo por isso as grávidas uma população de risco, sabemos que o subdiagnóstico e o consequente atraso no tratamento aumentam significativamente a morbilidade materna e neonatal com consequentes desfechos desfavoráveis.