Introdução
A arterite de Takayasu (AT) é uma doença inflamatória sistémica, crónica, progressiva, que resulta em dano de artérias de médio e grande calibre. Envolve maioritariamente a aorta e seus principais ramos, em particular as artérias carótidas, renais e subclávias, levando a estenoses, oclusões e aneurismas, que podem comprometer o fluxo sanguíneo a diversas partes do corpo.1 Este tipo raro de vasculite (incidência 0,3-4/milhão/ano) afeta predominantemente mulheres jovens, manifestando-se entre a segunda e a quinta décadas de vida. As manifestações clínicas são heterogéneas, surgindo muitas vezes associadas a hipersensibilidade da artéria carótida, claudicação dos braços, distúrbios da visão, enfraquecimento dos pulsos, diferenças na pressão arterial entre os braços, síncope e outros sintomas do sistema nervoso central.2 O tratamento inicial recomendado consiste em 40 a 60 mg/dia de prednisolona, até se atingir o controlo da atividade clínica da doença, após o que se reduz gradualmente até uma dose mínima eficaz. Se a doença for refratária ou exigir doses excessivamente altas de corticosteroides, recomenda-se associar um fármaco poupador de corticoide.3,4 Em algum momento da sua evolução, cerca de 25% dos doentes poderão necessitar de cirurgia vascular.5 A progressão da doença e resposta ao tratamento é variável. A taxa de mortalidade é baixa, mas tem elevada morbilidade, com impacto relevante na capacidade funcional dos indivíduos.6
Caso Clínico
Homem de 57 anos, leucodérmico, de nacionalidade portuguesa, residente no estrangeiro há vários anos, sem seguimento médico no nosso país. Antecedentes patológicos de hipertensão arterial sistémica, hipercolesterolemia e diabetes mellitus tipo 2; dois acidentes vasculares cerebrais (AVC) aos 49 e 54 anos, dos quais resultou paresia grau 4/5 (segundo a escala de avaliação da força muscular) do membro inferior direito; submetido a endarterectomia carotídea esquerda por estenose total aquando do segundo AVC; ex-fumador de 45 unidades maço ano, até à altura da endarterectomia.
Recorre ao serviço de urgência do nosso hospital, por quadro de diminuição da força no membro superior direito de agravamento progressivo ao longo de 6 dias, com surgimento de disartria e paresia facial central direita dois dias antes da observação, sem outras queixas associadas. Ao exame objetivo destacava-se, pressão arterial membro superior (MS) direito de 131/80 mmHg e no MS esquerdo de 92/89 mmHg; pulso braquial esquerdo não palpável e pulso braquial direito amplo. Pulso carotídeo esquerdo fino, com sopro carotídeo à direita e sopro aórtico abdominal. Ao exame neurológico com hemianopsia homónima direita, paresia facial central direita, disartria moderada, hemiparesia direita de predomínio distal no MS direito (grau 3/5) e hemiparesia grau 4/5 no membro inferior direito (sequelar), com reflexo cutâneo-plantar extensor à direita, e hemihipostesia no MS direito.
Analiticamente com velocidade de sedimentação (VS) de 33 mm/h, proteína C reativa (PCR) <0,5 mg/dL, anticorpos antinucleares positivos (1/160 padrão mosqueado); anticorpos anticitoplasma dos neutrófilos negativos; e testes VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) e IGRA (interferon gamma release assay) negativos.
A tomografia computorizada (TC) cranioencefálica revelou múltiplas sequelas de enfartes no hemisfério cerebral esquerdo e lesão isquémica subaguda na região da ínsula esquerda. Na angio-TC dos troncos arteriais supra-aórticos e artérias intracerebrais com exuberante ateromatose da crossa da aorta, obliteração da porção proximal da subclávia esquerda, com reabitação através da vertebral esquerda (síndrome de roubo); os troncos supra-aórticos restantes com grande calibre, trajeto tortuoso e marcado espessamento parietal (Figs. 1 e 2); aneurisma sacular da emergência da carótida esquerda, trombosado com obstrução total desta última; e reabitação do sifão carotídeo esquerdo através dos vasos do polígono de Willis, sugerindo a hipótese diagnóstica de lesões vasculíticas.
Estes achados foram confirmados por ecoDoppler carotídeo e vertebral, que revelou espessamento parietal difuso de ambos os eixos carotídeos.
Completou o estudo com angio-TC da aorta que revelou exuberante ateromatose da aorta torácica envolvendo a crossa e a aorta descendente, com espessamento parietal, condicionando em alguns locais uma redução significativa do lúmen; envolvimento da aorta abdominal até à bifurcação, com um pseudo-aneurisma trombosado com extensão ao longo da vertente posterior da emergência das artérias ilíacas, e irregularidades do contorno da artéria renal esquerda, em contexto de arterite (Figs. 3 e 4).
Com base nos elementos clínicos e nos achados imagiológicos, foi feito o diagnóstico de arterite de Takayasu. Após discussão do caso com a Cirurgia Vascular e com a Neurologia, decidiu-se iniciar tratamento com prednisolona na dose de 1 mg/kg/dia. Um mês após alta hospitalar o doente foi reavaliado em consulta externa de medicina interna, referindo melhoria dos défices neurológicos, incluindo referência a menor dificuldade da deambulação; força grau 4+/5 nos membros superior e inferior direitos. A pedido do doente, foi referenciado para o seu país de residência, tendo continuado o seguimento e tratamento lá.
Discussão
A arterite de Takayasu é caraterizada por vasculite granulomatosa de artérias de médio e grande calibre, principalmente da aorta e seus ramos, apresentando evolução crónica e progressiva. Embora inúmeras causas genéticas e ambientais tenham sido investigadas, os fatores de risco etiológico para a AT ainda não são bem compreendidos.6 As manifestações clínicas da AT são diferentes de acordo com o momento em que se avalia o doente ao longo do curso da doença. Numa fase inicial, em que há um processo inflamatório marcado, predominam os sintomas sistémicos inespecíficos, mantendo-se durante semanas ou meses, mas estes são frequentemente negligenciados ou atribuídos a outras doenças agudas mais comuns. Durante esta fase, surgem alterações granulomatosas na média e adventícia dos vasos, e o curso da doença pode seguir uma forma surto/remissão, tornando o diagnóstico difícil. A fase tardia e crónica é caraterizada por isquemia e sintomas secundários a oclusão arterial. Aproximadamente 20% dos doentes à data do diagnóstico apresentam sintomas neurológicos, podendo estes ser os sintomas de apresentação da doença.2
No que respeita aos estudos laboratoriais, não há achados característicos desta patologia, o estudo de autoimunidade é frequentemente negativo, a anemia de doença crónica, elevação da PCR e da VS são comuns. No entanto, até 11% dos doentes apresentam reagentes de fase aguda normais no momento do diagnóstico,7 como no caso do nosso doente. Uma vez que a biópsia de grandes artérias não é de fácil obtenção, o estudo imagiológico é essencial para o diagnóstico da AT, permitindo determinar a extensão da doença e fazer o diagnóstico diferencial com outras doenças, nomeadamente com outras vasculites ou com doenças não inflamatórias, como a displasia fibromuscular.7 As técnicas de imagem preferidas são a TC, a ressonância magnética, a ecografia com estudo Doppler e a tomografia por emissão de positrões. Atualmente, já não está recomendada a angiografia para diagnóstico desta entidade.8) A avaliação histológica não é realizada rotineiramente nos doentes com AT, pois isso só é possível se a cirurgia for necessária ou durante uma autópsia.4,9
Assim, para o diagnóstico desta vasculite deve-se correlacionar os dados clínicos com os achados dos exames complementares. Os critérios diagnósticos para AT, publicados pela American College of Rheumatology em 1990, têm uma sensibilidade de 91% e especificidade de 95%, e sugerem a presença de pelo menos 3 dos seguintes elementos: i) idade <40 anos; ii) claudicação das extremidades; iii) diminuição dos pulsos braquiais; iv) diferenças de >10 mmHg na pressão arterial sistólica entre os membros superiores; v) sopro na subclávia ou aorta; e vi) alterações angiográficas da aorta e dos seus ramos principais.10,11 No caso do nosso doente, à data do diagnóstico, cumpria 4 dos 6 critérios.
Para o diagnóstico diferencial foram consideradas outras causas de vasculite de grandes vasos, como aortite inflamatória (sífilis, tuberculose, lúpus, artrite reumatoide, espondiloartropatias, doença de Behçet e arterite de células gigantes).7,12
O tratamento de pacientes com AT visa suprimir a inflamação sistémica e vascular, com recurso a corticosteroides em elevada dose, metotrexato, azatioprina, micofenolato de mofetil, ciclofosfamida ou leflunomida. Em casos refratários existem bons resultados com agentes biológicos.3,4,13
Quando um paciente apresenta sintomas não controlados com terapêutica médica, o tratamento cirúrgico é uma opção que pode prevenir uma maior deterioração vascular e de órgão. No entanto, as indicações cirúrgicas na AT são controversas, dependem do número de vasos envolvidos, da extensão da oclusão, da presença de circulação colateral e das manifestações clínicas. Por outro lado, na fase de inflamação aguda a cirurgia apresenta elevado risco de complicações.14
A progressão da doença e resposta ao tratamento é variável; a maioria dos pacientes tem um curso crónico de recorrência e remissão. As taxas de sobrevivência aumentaram muito recentemente, rondando os 80% a 90% aos 10 anos. A morbimortalidade atribuível à doença ocorre mais frequentemente por insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral, enfarte do miocárdio, rutura de aneurisma, insuficiência renal ou complicações infeciosas do tratamento imunossupressor.6
É muito importante o diagnóstico oportuno da AT, pois a inflamação e a remodelação arterial progressiva aumentam as probabilidades de desenvolver estenoses, oclusões, dilatações ou aneurismas.15 Contudo, nos países em que a incidência desta doença é mais baixa, é frequente passarem-se meses a anos desde o início dos primeiros sintomas até que é feito o diagnóstico.12 No geral, as evidências apontam para um pior prognóstico em doentes com complicações vasculares importantes, curso de doença progressivo e idade avançada.4,9,16
Um provável fator confundidor que pode ter levado ao atraso no diagnóstico desta patologia no nosso doente, foram os antecedentes significativos de tabagismo e os outros fatores de risco vascular, como a hipercolesterolemia e a diabetes mellitus. De facto, o diagnóstico diferencial entre aterosclerose dismetabólica e vasculite pode ser difícil, sendo que a própria vasculite pode originar aterosclerose. Contudo, sabe-se que, somando ao risco cardiovascular, os doentes com AT apresentam um perfil lipídico mais aterogénico quando comparados com uma população sem esta patologia.10,15