Introdução
O hematoma retroperitoneal espontâneo (HRE) é uma entidade clínica rara e potencialmente fatal, definida como uma hemorragia para o espaço retroperitoneal, na ausência de traumatismo ou manipulação iatrogénica.1,2
A apresentação clínica pode ser muito heterogénea, com sintomas que são frequentemente vagos e inespecíficos, podendo mimetizar várias patologias intra-abdominais e musculoesqueléticas.1,2 Por este motivo, o diagnóstico de HRE pode ser difícil e requer um elevado índice de suspeição. O atraso do diagnóstico não é infrequente e tende a associar-se a morbilidade e mortalidade significativas.2,3
O HRE é classicamente descrito como uma complicação da terapêutica anticoagulante,2,4 estimando-se que 2/3 dos casos se associem a este tipo de terapêutica.2 Embora mais raramente, a antiagregação plaquetária tem sido também associada ao HRE.2,5 Em doentes não hipocoagulados, a ocorrência de HRE associa-se principalmente a fatores de risco como hemodiálise, coagulopatias (em especial a hemofilia), formações retroperitoneais anómalas (quistos, tumores, aneurismas) ou vasculites.2,4,6
O mecanismo do HRE não é claro. Na maioria dos casos, no contexto de anticoagulação, coagulopatia ou outro fator de risco, a hemorragia ocorre a nível intramuscular, sobretudo no psoas-ilíaco, em particular na sua região posterior; alguns autores admitem como fatores precipitantes trauma minor, esforço ocasional, estiramento ou tração muscular triviais relacionados com decúbito prolongado ou mesmo com a prestação de cuidados de enfermagem.7-10
A literatura disponível sobre o tema ainda é limitada e bastante heterogénea, consistindo sobretudo em alguns estudos retrospetivos,2,3,11 algumas séries de menor dimensão4,8,10,12,13 e múltiplos casos clínicos individuais.
O objetivo deste estudo é caracterizar uma população de doentes com HRE, analisar as estratégias terapêuticas utilizadas e os outcomes clínicos, avaliar a sua relação com a terapêutica anticoagulante e identificar fatores preditores de mortalidade, através da revisão da experiência do nosso hospital.
Material e métodos
Realizámos um estudo retrospetivo incluindo todos os doentes com mais de 18 anos admitidos num hospital distrital entre janeiro de 2010 e dezembro de 2019 com diagnóstico (principal ou secundário) de HRE. O diagnóstico foi confirmado imagiologicamente em todos os casos. Foram excluídos doentes com história de traumatismo, procedimentos invasivos ou cirurgias nos 14 dias anteriores ao diagnóstico, de forma a excluir uma causa mecânica para a hemorragia. Doentes com rotura de aneurisma da aorta também foram excluídos, por se tratar de uma entidade com características e particularidades específicas.
Os doentes foram identificados através dos códigos do ICD-9 ou ICD-10 (International Classification of Diseases) compatíveis com HRE. Os dados foram obtidos através da consulta do processo clínico de cada doente, com re- colha de variáveis demográficas, clínicas, laboratoriais e imagiológicas: género, idade, grau de dependência nas atividades de vida diárias (AVDs), comorbilidades significativas, uso de terapêutica anticoagulante e/ou antiagregante plaquetária, sinais vitais à apresentação, sinais e sintomas sugestivos de HRE (dor abdominal, massa abdominal palpável, equimose do flanco, sintomas atribuídos a baixo débito), achados laboratoriais aquando do diagnóstico (hemoglobina, plaquetas, creatinina sérica - CrS - na altura do diagnóstico e CrS basal, INR - international normalized ratio -, tempo de protrombina e tempo tromboplastina parcial ativada), diagnóstico por tomo- grafia computorizada (TC) ou outro exame de imagem, tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico, trata- mento realizado (conservador ou invasivo), admissão na unidade de cuidados intensivos (UCIP) e outcomes (mortalidade global, mortalidade diretamente relacionada com o HRE, duração do internamento). Definimos trata- mento conservador como suspensão e/ou reversão da anticoagulação, fluidoterapia, transfusões sanguíneas.
Para todos os sobreviventes, existiu um período mínimo de follow-up de 6 meses, com o objetivo de avaliar o status funcional 6 meses após o diagnóstico de HRE e a incidência de novos eventos hemorrágicos durante esse período.
A análise estatística foi realizada recorrendo ao software SPSS versão 23. As variáveis categóricas foram caracterizadas através de proporções e as variáveis numéricas utilizando medidas de tendência central e dispersão: mediana e intervalo interquartil (IIQ) para variáveis com distribuição não normal. As diferenças de medianas entre os grupos foram testadas através do teste não paramétrico Wilcoxon. As diferenças entre proporções
foram testadas utilizando o likelihood ratio.
Resultados
Foram incluídos 11 doentes com HRE documentado, sete (63,6%) dos quais eram homens. A idade mediana foi de 81 anos. As características gerais dos doentes incluídos encontram-se resumidas na Tabela 1.
Total n=11 N | (%) | ||
---|---|---|---|
Sexo masculino | 7 | (63,6) | |
Idade, em anos (mediana, IIQ) | 81 | [70; 89] | |
Grau de dependência nas AVDs | |||
Totalmente dependente | 2 | (18,2) | |
Parcialmente dependente | 4 | (36,4) | |
Autónomo | 5 | (45,5) | |
Anticoagulação na altura do diagnóstico | 9 | (81,8) | |
HBPM | 4 | (44,4) | |
Antagonistas da vitamina K | 5 | (55,6) | |
Anticoagulação crónica | 8 | (88,9) | |
Antiagregação plaquetar | 1 | (9,1) | |
Anticoagulação + antiagregação | 1 | (9,1) | |
Indicação para anticoagulação (n=9) | |||
Fibrilhação auricular (FA)* | 6 | (54,5) | |
Tromboembolismo venoso | 2 | (18,2) | |
Valvulopatia* | 2 | (18,2) | |
Comorbilidades | |||
Hipertensão arterial | 8 | (72,7) | |
Insuficiência cardíaca | 8 | (72,7) | |
DPOC | 3 | (27,3) | |
Doença renal crónica | 2 | (18,2) | |
AVC prévio | 3 | (27,3) | |
Diabetesmellitus | 1 | (9,1) | |
Neoplasia | 1 | (9,1) | |
Serviço de internamento | |||
Medicina Interna | 6 | (54,5) | |
Cirurgia | 3 | (27,3) | |
Outro | 2 | (18,2) | |
HRE como motivo de vinda ao SU | 5 | (45,5) |
Legenda: M - masculino; F - feminino; IIQ - intervalo inter-quartis; AVDs - atividades de vida diárias; HBPM - heparina de baixo peso molecular; DPOC - doença pulmonar obstrutiva crónica; AVC - acidente vascular cerebral; SU - serviço de urgência. *Um doente tinha simultaneamente FA e doença cardíaca valvular.
Nove doentes (81,8%) estavam hipocoagulados na altura do diagnóstico, seis por fibrilhação auricular (FA), os restantes por doença cardíaca valvular ou tromboembolismo pulmonar. Cinco estavam sob antagonistas da vitamina K, quatro sob heparina de baixo peso molecular (HBPM), sendo esta em todos os casos a enoxaparina; nenhum estava sob anticoagulante oral de ação direta.
Nenhum doente estava sob mais do que um fármaco anticoagulante, mas um deles estava simultaneamente sob antiagregante plaquetário. A anticoagulação tinha sido instituída menos de 30 dias antes do diagnóstico de HRE em um caso, estando os restantes cronicamente hipocoagulados.
Todos os doentes apresentavam comorbilidades significativas, já conhecidas previamente ao diagnóstico de HRE. De salientar, oito doentes com insuficiência cardíaca, três com doença pulmonar obstrutiva crónica, dois com doença renal crónica, um com neoplasia e um doente com síndrome de Ehlers-Danlos. Nenhum doente tinha patologia primária da coagulação ou doença hepática crónica.
O HRE foi o motivo primário de admissão hospitalar em cinco casos (45,5%). Nos restantes, constituiu uma intercorrência de um internamento por outra causa. Na maioria dos doentes o internamento decorreu no departamento médico, em especial no serviço de medicina interna (54,5%). No entanto, o HRE foi o motivo primário de admissão em apenas dois destes casos. Quatro doentes (45,5%) ficaram internados no departamento cirúrgico, um no serviço de urologia e três no serviço de cirurgia geral, sendo que o HRE foi o motivo primário de recurso aos cuidados de saúde em todos, exceto num caso, em que a admissão foi por hematemeses e melenas.
Neste último doente, a anemia persistiu apesar da suspensão da hipocoagulação e múltiplas transfusões de glóbulos rubros, o que levou ao diagnóstico diferido do HRE possivelmente já presente à admissão. houve um agravamento da função renal em relação à situação basal.
O diagnóstico foi confirmado por TC em todos os casos.
Dois doentes tinham realizado ecografia abdominal.
Nove doentes (81,8%) apresentavam hematoma do músculo psoas-ilíaco (Fig.s 1 e 2). Não foram identificadas lesões estruturais associadas em nenhum destes casos. Em dois doentes o hematoma era perirrenal, um deles com origem na rotura de um quisto renal. O tempo mediano entre o início de sintomas e a realização do exame de imagem foi de 0,5 dias [IIQ, 0 - 3].
Total n=11 N | (%) | |
---|---|---|
Manifestações clínicas | ||
Dor abdominal/ flanco | 5 | (45,5) |
Dor lombar | 3 | (27,3) |
Massa abdominal palpável | 3 | (27,3) |
Equimose no flanco | 3 | (27,3) |
Neuropatia femoral | 2 | (18,2) |
Dor anca/ virilha | 1 | (9,1) |
Sintomas de baixo débito* | 4 | (36,4) |
Hipotensão arterial | 5 | (45,5) |
Taquicardia | 3 | (27,3) |
Sinais vitais à apresentação (mediana, IIQ) | ||
TA sistólica (mmHg) | 108 | [87 - 128] |
FC (bpm) | 84 | [73 - 107] |
SatO2(%) | 95 | [94 - 97] |
Achados laboratoriais (mediana, IIQ) | ||
Hb aquando do diagnóstico (g/dL) | 7,5 | [5,7 - 9,2] |
Plaquetas (x103 /mm 3) | 226 | [188 - 398] |
INR (n=10) | 1,65 | [1,2 - 3,4] |
< 2.0 | 6 | (60) |
2.0 - 2.9 | 1 | (10) |
≥ 3.0 | 3 | (30) |
TP, em segundos (n=10) | 16,4 | [14,5- 41,8] |
APTT, em segundos (n=10) | 38,4 | [30,7- 51,2] |
CrS aquando do diagnóstico (mg/dL) | 1,2 | [0,7 - 3,7] |
CrS basal (mg/dL) | 0,8 | [0,7 - 1,0] |
Tempo entre o início de sintomas e o diagnóstico | 0,5 | [0 - 3] |
Tratamento conservador | 11 | (100) |
Suspensão da anticoagulação (n=9) | 7 | (77,8) |
Reversão da anticoagulação (n=9) | 3 | (33,3) |
Transfusão de glóbulos rubros | 8 | (72,7) |
Outcomes | ||
Mortalidade global durante a admissão | 6 | (54,5) |
Mortalidade aos 30 dias pós-HRE | 4 | (36,4) |
Mortalidade diretamente pelo HRE | 2 | (18,2) |
Tempo de internamento (dias) | 35 | [16-53] |
Reintrodução da hipocoagulação (n=3) | 1 | (33,3) |
Novo evento hemorrágico aos 6 meses (n=5) | 0 |
Legenda: IIQ - intervalo inter-quartis; TA - tensão arterial; FC - frequência cardíaca; SatO2 - saturação periférica de oxigénio; Hb - hemoglobina; INR - international normalized ratio; TP - tempo de protrombina; APTT - tempo tromboplastina parcial ativada; CrS - creatinina sérica. *Sintomas de baixo débito: tonturas, fraqueza, síncope.
Todos os doentes foram tratados de forma conservadora, oito (72,2%) com necessidade de suporte transfusional e um (9,1%) de suporte aminérgico. A anticoagulação A apresentação clínica dos doentes foi variável (Tabela 2). A manifestação mais comum foi a dor abdominal (45,5%), seguida de sintomas de baixo débito, como tonturas, fraqueza ou síncope (36,4%). Foram observadas dor lombar, massa abdominal palpável e equimose no flanco, cada uma em 27,3% dos doentes. Menos comum foi o desenvolvimento de neuropatia femoral. A pressão arterial sistólica mediana foi 108 mmHg; cinco doentes apresentavam hipotensão arterial.
Em relação aos achados laboratoriais, apenas um doente apresentava valor de hemoglobina (Hb) normal, sendo a Hb mediana na altura do diagnóstico de 7,5 g/dL. Os valores de INR variaram entre 1,0 e 12, sendo supraterapêuticos (> 3) em 30% dos casos. Nos doentes hipocoagulados, o INR mediano foi de 2,1. Em 6 casos (54,5%) foi suspensa em sete (77,8%) doentes, e revertida em três (33,3%).
A mediana do tempo de internamento foi de 35 dias [IIQ, 16 - 53]. Apenas um doente foi transferido para a UCIP, tendo ficado internado nesse serviço durante 2 dias.
A mortalidade global aos 30 dias foi 36,4%. No entanto, a mortalidade durante a admissão foi 54,5% (seis dos 11 doentes). O HRE per se foi considerado a causa direta da morte em apenas dois casos (um terço dos óbitos durante a admissão). A mortalidade global aos 6 meses foi de 72,7% (apenas três doentes se mantinham vivos ao fim deste período).
Características | Sobreviventes | Não sobreviventes | Valor p | ||
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Idade, em anos | 75 | [24] | 86,5 | [24] | 0,247 |
Sexo Masculino | 3 | (60%) | 4 | (66,7%) | 0,819 |
Sexo Feminino | 2 | (40%) | 2 | (33,3%) | 0,819 |
Grau de dependência nas AVDs | |||||
Autónomo | 2 | (40%) | 3 | (50%) | 0,740 |
Total ou parcialmente dependente | 3 | (60%) | 3 | (50%) | 0,740 |
Anticoagulação | 3 | (60%) | 6 | (100%) | 0,054 |
Hipotensão arterial | 1 | (20%) | 4 | (66,7%) | 0,113 |
Hb ao diagnóstico (g/dL) | 7,5 | [5,9] | 6,6 | [2,9] | 0,537 |
Plaquetas (x103/mm3) | 219 | [304] | 232 | [114] | 1,000 |
CrS ao diagnóstico (mg/dL) | 0,7 | [0,9] | 2,6 | [3,1] | 0,052 |
INR | 2,29 | [2,84] | 1,38 | [5,71] | 1,000 |
Agravamento da função renal | 1 | (20%) | 5 | (83,3%) | 0,029 |
Transfusão GR | 3 | (60%) | 5 | (83,3%) | 0,385 |
Tempo entre início de sintomas e diagnóstico | 1,0 | [2,8] | 0 | [4,5] | 0,429 |
Tempo de internamento | 39 | [29] | 25,5 | [41] | 0,429 |
Legenda: AVDs - atividades de vida diárias; Hb - hemoglobina; CrS - creatinina sérica; INR - international normalized ratio; GR - glóbulos rubros; Os resultados são apresentados em mediana e intervalo inter-quartis, exceto quando indicação em contrário.
A idade mediana dos doentes que faleceram durante o internamento foi de 86,5 anos, em comparação com 75 anos no grupo dos sobreviventes (p=0,247). À semelhança da idade, também não houve associação entre o género ou o grau de dependência nas AVDs e a mortalidade (Tabela 3). Todos os doentes que faleceram estavam hipocoagulados na altura do diagnóstico. Não se observaram diferenças significativas na apresentação clínica dos doentes do grupo de sobreviventes versus o grupo de não sobreviventes. A Hb mediana foi de 6,6 g/dL [IIQ 2,9] para os não sobreviventes versus 7,5 [IIQ 5,9] para os sobreviventes (p=0,537). Não houve diferenças estatisticamente significativas na contagem de plaquetas, INR, TP e APTT entre os dois grupos.
O único fator que se associou a maior mortalidade foi o agravamento da função renal em relação ao estado basal (p=0,029), com uma CrS mediana de 2,6 mg/dL nos doentes que faleceram versus 0,7 mg/dL nos sobreviventes (p=0,052).
Em relação à morbilidade condicionada pelo HRE, observou-se que todos os sobreviventes mantiveram o seu status funcional basal. No entanto, realça-se que, dos dois doentes que apresentaram sinais de neuropatia femoral, complicação com elevado potencial de limitação funcional, um deles tinha monoplegia e veio a falecer ao fim de admissão longa e com múltiplas intercorrências, e outro teve um quadro leve, com recuperação.
Não houve registo de novo evento hemorrágico nos 6 meses seguintes ao diagnóstico.
Discussão
O uso de terapêutica anticoagulante, particularmente de anticoagulantes orais, tem vindo a crescer nas últimas décadas, em especial nas faixas etárias mais avançadas.14,15 A par da hemorragia gastrointestinal e intracraniana, o HRE constitui uma das mais sérias complicações da terapêutica anticoagulante.16 A conjugação do uso crescente de terapêutica anticoagulante nos idosos com a maior suscetibilidade desta população a complicações hemorrágicas16 explica a associação estreita entre HRE, idade avançada e anticoagulação refletida na literatura,1 também confirmada na nossa série. Para isto concorre a taxa elevada de polimedicação e de múltiplas comorbilidades entre os idosos com indicação para este tipo de terapêutica.
Na nossa série nenhum doente hipocoagulado estava sob um anticoagulante oral de ação direta (DOAC na sigla em língua inglesa), o que pode dever-se à sua menor utilização durante parte do período estudado ou à menor taxa desta rara complicação hemorrágica com este tipo de anticoagulantes. Globalmente, os DOAC são tão ou mais eficazes na prevenção de eventos embólicos cerebrais ou sistémicos e têm menor taxa de hemorragia major comparando com os antagonistas da vitamina K.17) As meta-análises dos grandes estudos utilizando DOAC não detalham especificamente esta complicação. Foram, no entanto, já descritos casos de HRE associados a DOAC.18,19) Apesar de a maioria dos doentes do nosso estudo ser hipocoagulada, destes, apenas 30% apresentavam um INR ou APTT supra-terapêuticos. De facto, INR supra-terapêutico não está universalmente presente nos casos de HRE.2 Dois doentes da nossa série (18,2%) não estavam sob anticoagulação: uma doente de 51 anos com síndrome de Ehlers-Danlos e episódios prévios de diátese hemorrágica espontânea, e outro, de 70 anos, com hemorragia com ponto de partida em quisto renal.
Esta percentagem aproxima-se da observada num importante estudo.2 Assim, ante a suspeita clínica, o diagnóstico de HRE deve ser considerado em doentes hipocoagulados com INR terapêutico, e mesmo em doentes sem terapêutica anticoagulante ou coagulopatia.2
A apresentação clínica mais comum foi a dor abdominal, em cerca de metade dos casos, seguida de sintomas inespecíficos que podem ser atribuídos a um estado de depleção de volume ou anemia. Sinais mais específicos, como massa abdominal palpável e equimose no flanco, foram menos frequentes. Estes resultados salientam que, à semelhança do descrito na literatura,1,2,4 o HRE tem uma apresentação muito diversa, frequentemente inespecífica, pelo que deve ser considerado em qualquer doente com dor abdominal e evidência de hipovolémia, na ausência de uma etiologia alternativa plausível.2
O tempo mediano entre o início de sintomas e o diagnóstico foi 0,5 dias, não existindo diferença estatisticamente significativa entre os sobreviventes e os não sobreviventes.
Apesar de a maioria dos estudos ser omissa a este respeito, numa das maiores séries este intervalo foi em média de 1,5 dias.3 No entanto, é importante notar que, no nosso estudo, este tempo foi de 12 dias em 1 doente (tratava-se de um doente acamado, com escassa vida de relação, dificultando a valorização dos sintomas). A TC abdominopélvica foi o exame de escolha para confirmar o diagnóstico em todos os casos. Este exame, amplamente disponível, permite deduzir a origem mais provável da hemorragia, a sua atividade, indicada pelo extravasamento, e identificar eventuais anomalias estruturais associadas (tumores, quistos, microaneurismas).2,6,13
Quando complementada por angiografia seletiva, pode ainda ter um papel fundamental na definição da estratégia terapêutica.13 Contudo, a maioria dos doentes hipocoagulados com HRE não tem lesões estruturais associadas,12 tal como verificámos no nosso estudo.
A abordagem terapêutica ideal permanece um tema de controvérsia, devendo ser sempre individualizada. No entanto, os pilares do tratamento continuam a ser o reconhecimento e diagnóstico precoces da situação clínica, com pronta instituição de medidas de suporte, incluindo fluidos e transfusões de concentrados de eritrócitos, a suspensão da anticoagulação e mesmo, se necessário, a sua reversão. Este tratamento médico conservador é suficiente para a maioria dos doentes com HRE de origem sistémica, como é o caso de doentes hipocoagulados sem anomalias estruturais associadas.2,3,20 Em casos selecionados podem ser consideradas medidas mais invasivas, apesar de o seu verdadeiro papel e as suas indicações ainda não serem claros.1
Na presença de hemorragia ativa persistente ou instabilidade hemodinâmica, a abordagem preferencial poderá ser a embolização arterial percutânea do vaso sangrante, através de angiografia seletiva.2,10,13,21 Quando este tipo de intervenção não está disponível ou se revela ineficaz, pode impor-se a cirurgia. Em casos de hematoma de grande volume e síndrome compartimental do abdómen9 ou de compromisso neurológico (neuropatia grave ou progressiva por compressão do nervo femoral), a evacuação cirúrgica imediata poderá ser a melhor opção, ainda que em casos selecionados se possa considerar primeiro a drenagem percutânea guiada por ecografia ou TC.8 Em alguns casos, a drenagem pode complicar-se de recidiva de hemorragia, por perda do efeito de tamponamento exercido pelo hematoma.5,12,13
Todos os nossos doentes foram tratados de forma conservadora, em contraste com outras séries.2,8,10,11,13,21
Dois doentes poderiam, virtualmente, serem candidatos a tratamento invasivo precoce: um doente com neoplasia do pulmão avançada, admitido por insuficiência respiratória aguda em contexto de infeção, que desenvolveu HRE com choque; outro de 88 anos com múltiplas comorbilidades, que desenvolveu HRE com compressão grave do nervo femoral. Em ambos, na avaliação interdisciplinar foi considerado não reunirem condições para qualquer tipo de intervenção invasiva, apenas para medidas paliativas.
A mortalidade global aos 30 dias da nossa série foi de 36,4%, e só 5 em 11 doentes sobreviveram ao internamento.
No entanto, à semelhança de outras séries, só em escassa minoria o óbito foi diretamente atribuível ao HRE. Esta mortalidade é claramente superior à descrita na literatura, que ronda os 20%.2,4,11,12 Contudo, as populações dos diferentes estudos são muito heterogéneas, dificilmente comparáveis. A mediana de idades da nossa série é significativamente superior à das que encontramos na literatura. A maior parte das séries é omissa em relação ao grau de dependência e às comorbilidades dos doentes, bem como ao momento de ocorrência do HRE.
Salientamos a elevada taxa de dependência e comorbilidades dos doentes da nossa série, e relembramos que mais de metade deles não foram admitidos devido ao HRE, tendo esta complicação ocorrido durante a admissão por patologia aguda ou descompensação grave de doença crónica.
No presente estudo, o único fator que se associou a maior mortalidade foi o agravamento da função renal.
Este declínio da função renal pode constituir o fator precipitante para a hemorragia em doentes hipocoagulados.22 Por outro lado, pode ser consequência do HRE, devido à repercussão hemodinâmica, ou à redução da perfusão renal devido ao aumento da pressão intra-abdominal,9 ou traduzir apenas maior morbilidade e menor reserva funcional do doente. Seja qual for a causa, a monitorização estreita da função renal é de especial importância em doentes sob terapêutica anticoagulante.22,23
Tanto quanto nos é possível saber, esta é a primeira série de casos de doentes com HRE publicada em Portugal. No entanto, apresenta algumas limitações. Trata-se de uma série pequena e que retrata a experiência de um único hospital, o que impede a generalização dos resultados. O desenho retrospetivo do estudo pode condicionar alguma imprecisão na descrição dos achados semiológicos e a existência de dados incompletos em algumas variáveis, nomeadamente alguns valores laboratoriais pontuais.
Finalmente, é impossível tirar conclusões acerca da eficácia e segurança de um tratamento conservador versus invasivo, uma vez que todos os doentes da nossa população foram tratados de forma conservadora.
Seria desejável a realização de estudos inclusivos preferencialmente prospetivos e multicêntricos, para clarificar melhor esta entidade clínica, em particular quanto aos elementos clínicos que possibilitem um diagnóstico mais precoce e quanto à melhor abordagem terapêutica, nomeadamente nos doentes com comorbilidades e dependência significativas.
Conclusão
O HRE é uma entidade clínica relativamente rara, com uma apresentação clínica que pode ser muito heterogénea, constituindo, por isso, um desafio diagnóstico. Ocorre sobretudo em doentes idosos e hipocoagulados. Associa-se a elevada mortalidade, mas tipicamente não é a causa direta da morte. É difícil identificar fatores preditores de mortalidade, parecendo, no entanto, que um agravamento da função renal se associa a maior risco. Assim, é de especial importância uma monitorização estreita da função renal em doentes sob terapêutica anticoagulante.