Introdução
O médico assistente (médico de família ou pediatra) tem um papel fundamental na identificação de crianças com dificuldades de aprendizagem (DA). Segundo o Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ), médico é o profissional de saúde responsável pelo seguimento seriado das crianças ao longo das várias etapas de desenvolvimento, nomeadamente pela avaliação nas consultas de Saúde Infantil em idades-chave,1 tendo assim um papel de extrema importância na abordagem e avaliação global de crianças com dificuldades de aprendizagem.
O conceito de aprendizagem, apesar de ser um tópico muito investigado na área das Neurociências, não é consensual.2 É um conceito abstrato e, como tal, sujeito a várias interpretações. No entanto, pelo seu papel na ontogénese do ser humano, pode-se definir como uma mudança de comportamento provocada pelo ambiente para uma melhor adaptação do indivíduo ao meio que o envolve.3 De facto, a aprendizagem é um processo funcional e dinâmico que integra componentes essenciais do sistema nervoso central (SNC), tais como a perceção sensorial da informação (input), processamento (integração de habilidades cognitivas atencionais, mnésicas e linguísticas e do desenvolvimento emocional e comportamental), funções executivas (organização do pensamento e comportamento) e resposta efetora (output).4
O sucesso da aprendizagem exige a satisfação de funções nucleares do neurodesenvolvimento (atenção, memória, linguagem, coordenação motora, organização espacial-visual, organização sequencial-temporal e funções cognitivas superiores) e do cumprimento de alguns pré-requisitos (cognitivos, psicomotores, psicolinguísticos, socioemocionais),4 sendo que a motivação e o reforço positivo ao longo de todo o processo são também de extrema importância.
De igual forma, a definição de dificuldades de aprendizagem (DA) não é consensual,4,5 havendo inclusivamente confusão entre os termos dificuldade de aprendizagem e perturbação da aprendizagem.5 A National Joint Committee on Learning Disabilities, define as DA como um grupo heterogéneo de alterações que se manifestam em dificuldades em adquirir, organizar, reter, compreender ou utilizar a informação verbal e/ou não verbal.
Podem manifestar-se ao longo da vida e sua forma de expressão é variável, dependendo da interação entre as diligências do meio ambiente e as necessidades e capacidades de cada indivíduo. As DA são causadas por uma disfunção do SNC, podendo ter uma etiologia multifatorial.5,6 Podem ocorrer associadas a outras perturbações do neurodesenvolvimento ou a fatores externos ao indivíduo, mas não são o resultado dessas condições ou fatores.5 A própria definição d e p erturbação da a prendizagem não está isenta de controvérsias, e o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) utiliza como critério de diagnóstico a presença de dificuldades nas aptidões académicas e inclui apenas especificações detalhadas para as áreas da leitura, matemática e expressão escrita.5,6 Assim, as DA podem classificar-se em dificuldades de aprendizagem globais ou, segundo o DSM-5, em dificuldades de aprendizagem específicas com prejuízo da leitura (dificuldades na leitura de palavras, velocidade ou fluência da leitura ou compreensão da leitura), prejuízo da expressão escrita (dificuldades na precisão, ortografia, gramática, pontuação e/ou clareza ou organização da expressão escrita) ou prejuízo na matemática (dificuldades na interpretação numérica, memorização de fatos aritméticos, precisão ou fluência do cálculo e/ou precisão no raciocínio matemático).7,8
Uma criança com DA (global ou específica) pode ter baixo rendimento escolar, com risco de insucesso escolar e possíveis consequências noutras vertentes da sua vida, como exclusão social, conflitos familiares, ansiedade, depressão ou até mesmo limitações no percurso académico e profissional futuros. A existência de DA é habitualmente sugestionada pelo baixo rendimento escolar não expectável ou pela manutenção do rendimento escolar apenas conseguido com elevado nível de esforço e apoio. É um diagnóstico habitualmente feito após o início da escolaridade, mas por vezes podem ser identificados sinais de alarme na idade pré-escolar.
Abordagem a crianças com DA
A identificação precoce e a abordagem da criança com DA envolve uma equipa multidisciplinar com a participação dos pais, escola, equipa multidisciplinar de apoio à educação inclusiva (EMAEI), do médico e de outros profissionais de saúde. No entanto, é importante salientar, o papel fundamental que o médico assistente (médico de família ou pediatra) pode e deve ter na abordagem destas crianças, uma vez que é o médico que acompanha e avalia a criança de forma regular, sobretudo nos primeiros anos de vida e em idades-chave de transição de etapas de vida escolar1 e que tem a capacidade de determinar se as dificuldades identificadas não se devem apenas a dispedagogia ou acesso limitado a oportunidades educativas.
Uma história clínica e exame objetivo completo são essenciais para uma correta abordagem de uma criança com DA. Para além da colheita da história clínica pormenorizada habitual, salientamos alguns aspetos importantes para a abordagem das DA, nomeadamente os antecedentes pessoais, aquisições desenvolvimentais, história escolar, tarefas domésticas, rotinas diárias, atitude perante a escola, comportamento social interpares e com adultos, atividades extracurriculares, alimentação, padrão de sono e antecedentes familiares9 (Tabela 1). É importante também avaliar o comportamento da criança na consulta, a sua relação com os cuidadores, e realizar um exame geral completo com somatometria, exame objetivo, avaliação do desenvolvimento psicomotor e exame neurológico. Esta abordagem sistematizada permite-nos identificar a presença de fatores de risco biológicos,10-13 fatores de risco ambientais14,15 e fatores protetores16-19 (Tabela 1). Permite ainda ajudar a identificar alguns sinais de alarme, que podem ser indicadores de DA.9,20-22 Apesar do diagnóstico DA global ou DA específica ser habitualmente realizado após entrada no primeiro ciclo, há alguns sinais de alarme que podem ser identificados antes do início da escolaridade, como por exemplo dificuldades em rimar, contar, na motricidade fina (pega do lápis), dificuldades na nomeação de letras, números ou dias da semana ou mesmo resistência à participação em atividades educativas.7
As consultas de Saúde Infantil podem e devem ser uma oportunidade para a realização de métodos de rastreio de perturbações do neurodesenvolvimento (p. ex.: Escala de Avaliação de Desenvolvimento Mary- -Sheridan, Growing Skills, Modified Checklist for Autism in Toddlers),1,19-25 assim como testes de rastreio visual e auditivo.1 Antes da entrada no 1º ciclo está ainda preconizado o Exame Global de Saúde dos 5-6 anos,1,26 de forma a avaliar se a criança tem as condições físicas e do desenvolvimento psicomotor adequadas a esta nova fase de vida. Esta consulta inclui avaliação antropométrica e da tensão arterial e um exame objetivo completo com avaliação da higiene oral, acuidade visual, acuidade auditiva, postura, linguagem e restantes áreas do desenvolvimento psicomotor, para além da avaliação do cumprimento do plano vacinal. No entanto, este exame, numa idade-chave primordial do desenvolvimento e do percurso académico, não inclui ferramentas de rastreio dirigidas à avaliação das competências pré-académicas, como a atenção, memória auditiva, cognição não-verbal, consciência fonológica, linguagem ou o conhecimento das letras e números. Esta avaliação é muitas vezes realizada por psicólogos ou técnicos superiores de educação, em ambiente escolar, de acordo com o regulamento interno de cada estabelecimento de ensino, ou a pedido do médico assistente.
Em qualquer altura pode ser solicitada uma avaliação mais aprofundada das funções do neurodesenvolvimento (atenção, memória, linguagem, coordenação motora, organização espacial-visual, organização sequencial-temporal e as funções cognitivas superiores), que deve ser integrada numa abordagem multidisciplinar, com auxílio de outros técnicos da área da saúde. Os exames auxiliares de diagnóstico devem ser pedidos de forma individualizada e de acordo com a suspeita clínica.
Orientação de crianças com DA
As DA, sobretudo as que requerem a avaliação por um profissional de saúde, são muitas vezes um sinal de uma perturbação de base de etiologia variável. Alguns autores consideram mesmo que as DA se encontram no espectro das perturbações do desenvolvimento intelectual (PDI) e muitas vezes, uma PDI ligeira ou uma perturbação do espectro do autismo (PEA) ligeira pode passar despercebida apenas como DA.27 Assim sendo, cabe ao médico corretamente identificar, tratar e orientar todas as comorbilidades presentes.
A orientação inicial passa pela promoção do estilo de vida saudável, tratamento farmacológico em casos específicos, ou encaminhamento para outras especialidades,28 podendo ser ainda necessária a intervenção de técnicos de Medicina Física e Reabilitação, Terapia da Fala/ Terapia Ocupacional, Psicólogos ou de outros técnicos da área da saúde.9,28 Na presença de risco social, a criança deve ser sinalizada aos Núcleos de Apoio à Criança e Jovem em Risco ou projetos comunitários de apoio social (Fig. 1).28
Perante uma família com uma criança com DA é muito importante garantir que todo o apoio familiar está a ser fornecido, nomeadamente, clarificar quais os pontos fracos/ fortes da criança, diminuir os sentimentos de ansiedade e culpa por parte dos familiares,9 clarificar os direitos legais da criança e da família, delinear estratégias comportamentais e desmotivar tratamentos alternativos sem evidências científicas. É fundamental também que se avalie o grau de aceitação dos pais perante as dificuldades identificadas, uma vez que, se as suas expectativas permanecerem para além do potencial existente, o resultado inevitável é um sentimento de fracasso por parte da criança, prejudicando gravemente a sua autoestima e as relações familiares.9
Relativamente à idade pré-escolar, o Decreto-lei 281/09, prevê o apoio a crianças com idade entre os 0 e os 6 anos, que, em termos gerais, apresentem alterações nas funções ou estruturas do corpo que limitam o normal desenvolvimento e a participação nas atividades típicas, tendo em conta os referenciais de desenvolvimento próprios, para a respetiva idade e contexto social e crianças com risco grave de atraso de desenvolvimento pela existência de condições biológicas, psicoafectivas ou ambientais, que implicam uma alta probabilidade de atraso relevante no desenvolvimento da criança.29
Relativamente à idade escolar, em 2018 foi estabelecida como uma prioridade da ação governativa a aposta numa escola inclusiva, onde todos os alunos, independentemente da sua situação pessoal e social, encontrem respostas que lhes permitam a aquisição de uma educação e formação facilitadoras da sua inclusão social.30 A escola deve fomentar e garantir oportunidades de aprendizagem para todos os alunos, promovendo a equidade e a não discriminação no acesso ao currículo e na progressão ao longo da escolaridade obrigatória.30 Desta forma, a escola fica responsável pela identificação de crianças com DA e pela criação de estratégias para as ultrapassar através de medidas de suporte à aprendizagem e inclusão, ao abrigo do DL 54/2018, nomeadamente através de medidas universais (disponíveis para todos os alunos, com o objetivo de promover a participação e a melhoria da aprendizagem), medidas seletivas (com objetivo de dar um suporte adicional às dificuldades não supridas pelas medidas universais) e medidas adicionais (com objetivo de colmatar as dificuldades acentuadas e persistentes ao nível da comunicação, interação, cognição ou aprendizagem e que exigem recursos especializados).30
Está preconizado que cada agrupamento escolar tenha uma EMAEI e cabe a esta equipa a sensibilização da comunidade educativa para a educação inclusiva, propor medidas de suporte à aprendizagem, acompanhar e monitorizar a aplicação dessas medidas, prestar aconselhamento aos docentes na implementação de práticas pedagógicas inclusivas, elaborar um relatório técnico-pedagógico ou um programa educativo especial ou plano individual de transição.30 A constituição de base da EMAEI não obriga à presença de um médico, no entanto, a sua colaboração pode ser solicitada à equipa de Saúde Escolar do Agrupamento de Centros de Saúde da área de residência. A participação dos pais/ cuidadores deve ser encorajada, uma vez que estes têm o direito e dever de participar ativamente no que diz respeito com a educação do seu filho/ educando.9 Quando os pais/ cuidadores não exercem este poder, cabe à escola desencadear as medidas apropriadas a cada situação.
O médico deve, sempre que for vantajoso e com a autorização da família, colaborar com a equipa escolar, fornecendo as informações relativas ao estado de saúde e desenvolvimento da criança que possam ajudar na compreensão das suas dificuldades. Caberá, no entanto, à escola, definir quais as medidas educativas adequadas na promoção do seu sucesso escolar, de acordo com os princípios de uma escola inclusiva.
Conclusão
Cabendo à escola a última decisão no que respeita às medidas educativas a aplicar, o médico desempenha um papel essencial na abordagem global da criança, seja pela identificação de fatores de risco ou sinais de alarme, seja pela identificação de perturbações/ patologias associadas às DA. A confirmação do diagnóstico de DA envolve uma abordagem multidisciplinar entre o médico assistente e outros profissionais de saúde, no entanto, cabe ao médico determinar que as dificuldades identificadas não se devem apenas a dispedagogia e orientar cada caso de forma individualizada.